Entre o Natal e o carnaval, uma das piores profissões do mundo é a de comentarista político no Brasil. Tenho pena dos colegas do jornalismo diário, obrigados a fingir que dão importância ao que não tem nenhuma. Que tortura ter de utilizar artifícios retóricos para tornar menos desinteressante os movimentos canhestros de personagens liliputianos!
Vejam este modorrento mês de janeiro. O que aconteceu de relevante? Nada.
Lula, como sempre, deixou transparecer sua preguiça de governar. Até hoje não anunciou seu novo Ministério, jogando mais algumas semanas no lixo. E, do parto do seu plano de aceleração do crescimento resultou, como os menos ingênuos já anteviam, um mísero rato. Tudo dependerá da boa vontade dos agentes econômicos, que são movidos pela ganância e não por compaixão, patriotismo ou respeito pelo interesse público. No final de 2007 ouviremos as tentativas habituais de explicarem por que as metas não foram atingidas.
De quebra, o Lula cansou de esnobar a esquerda, em palavras e atos. Além de achincalhar os sexagenários idealistas, de minimizar os horrores da ditadura militar no Brasil e de defender a inviolabilidade da lei que anistiou vítimas e carrascos ao mesmo tempo, acaba de mandar o Fórum Social Mundial às urtigas, comparecendo apenas ao banquete dos poderosos em Davos.
Enquanto isso, a disputa pela presidência da Câmara Federal se trava como mais um espetáculo de oportunismo e fisiologismo explícitos, contribuindo para desacreditar ainda mais – se isso for possível – o Poder Legislativo.
Então, vamos falar de futebol.
O que hoje se pratica no Brasil me faz lembrar um dos trechos mais marcantes do “Manifesto do Partido Comunista” de 1848. Peço aos leitores que tenham um pouco de paciência, pois explicarei adiante. Primeiro, relembremos Marx e Engels:
“Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’ ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu. as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.
“A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados.
"A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.”
O inferno pamonha – Sentimos a mesma perda de qualidade em todas as esferas da nossa existência ao ingressarmos plenamente na sociedade de consumo, a partir de 1970. O que ainda havia de nobre, belo e digno nestes tristes trópicos foi esmagado pelo rolo compressor do mercado, atirando-nos no “inferno pamonha” a que se referiu Paulo Francis: uma vida sem reais gratificações, na qual ninguém consegue verdadeiramente realizar-se como ser humano e como cidadão, além da danação de ter de suportar a tirania dos medíocres.
Até no futebol esse fenômeno se verificou. Bem ou mal, o Brasil conseguia evitar o êxodo de seus talentos. Um ou outro ia deslumbrar os europeus, mas tínhamos capacidade de manter times memoráveis como o Santos bicampeão do mundo (1962/63) e formávamos nossas seleções com quase todos os craques atuando no País.
Os campeonatos estaduais eram pujantes, os times do Interior às vezes conseguiam até contestar a hegemonia dos grandes. Havia campinhos de terra batida em todo lugar, crianças correndo horas a fio atrás de bolas de meia.
Futebol era arte e paixão, não apenas competição. O chapéu bem aplicado valia quase tanto quanto o gol. Os dribles infernais de Garrincha desmoralizavam mais os adversários do que os placares elásticos. Os torcedores ainda eram capazes de reconhecer e aplaudir as belas jogadas do time rival.
Lembro-me de um episódio emblemático. O grande Gento, ponta-esquerda do fantástico time do Real Madri do final da década de 1950 (de Puskas e Di Stefano), era o cobrador oficial de pênaltis. Certo dia, um árbitro viu infração num lance em que, o estádio inteiro percebeu, nada de errado acontecera. Gento calmamente encaminhou-se para a bola... e chutou-a na direção da bandeira de escanteio, desprezando altaneiramente a oportunidade de marcar um tento imerecido.
Outro gênio, Nilton Santos, arriscou-se a uma longa suspensão, que acabaria significando sua aposentadoria (pois já estava no fim de carreira), por uma questão de dignidade. Num Corinthians x Botafogo no Pacaembu, ele foi repreendido acintosamente pelo folclórico Armando Marques, que quase tocou com o dedo no seu nariz. Com a elegância que lhe era peculiar, Nilton Santos aplicou um tapa de mão aberta na cara do árbitro, atirando-o ao chão. E calmamente se dirigiu para o vestiário, sem esperar que o expulsasse.
Um repórter o interceptou, perguntando por que fizera aquilo. Ele disse que o filho dele estava assistindo à partida. “Como é que eu iria explicar ao meu filho que deixei um homem encostar o dedo no meu nariz, sem reagir?”
Times, seleções e craques do chamado futebol romântico serão lembrados para sempre. Já os atuais amontoados de novatos e refugos, os selecionados formados à base de milionários enfastiados e os jogadores que preferem ajeitar a meia do que marcar o adversário sobreviverão apenas enquanto estiverem no noticiário e forem úteis como garotos-propaganda. Não têm grandeza para impregnar o imaginário das gentes.
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