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30.8.07

LANÇADO LIVRO COM A POSIÇÃO OFICIAL DO ESTADO BRASILEIRO SOBRE A DITADURA

Celso Lungaretti (*)

Desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2003, as vítimas da ditadura de 1964/85 esperavam do seu governo a postura coerente e firme que acaba de assumir no lançamento do livro-relatório Direito à Memória e à Verdade, uma confirmação oficial de tudo que os historiadores mais respeitados haviam estabelecido e os cidadãos bem informados já sabiam de cor e salteado:
• os militares praticaram a tortura em presos políticos como norma e não como exceção;
• causaram a morte de dezenas que, a exemplo de Vladimir Herzog, não resistiram aos maus tratos;
• executaram friamente outros tantos que, como Carlos Lamarca, haviam capturado com vida;
• estupraram mulheres e chegaram a abusar sexualmente de homens;
• decapitaram e esquartejaram prisioneiros;
• ocultaram os cadáveres que representariam provas de seus crimes.

"Queremos colaborar e contribuir para que a sociedade feche e vire a página desta história de uma vez por todas”, afirmou Lula, acrescentando que ações do gênero são indispensáveis para que esse passado “não se repita”.

Ele prometeu criar uma comissão para obter dos militares informações que possibilitem, finalmente, a localização dos restos mortais de opositores assassinados durante o período em que, segundo o livro, o Brasil esteve submetido ao “terror de estado”.

O presidente foi categórico: “Vamos continuar os trabalhos e daremos uma resposta aos familiares das vítimas. A história do Brasil precisa desta verdade, tal qual ela é".

Foi uma resposta às súplicas de parentes que até hoje não se conformam com o desaparecimento total de entes queridos, como Elzita Santa Cruz, de 94 anos. Seu filho Fernando sumiu em 1974, aos 24 anos, depois de ser preso e torturado.

Ela nunca deixou de lutar pelo esclarecimento do caso, o que lhe valeu, inclusive, a inclusão no grupo de 52 mulheres brasileiras indicadas para o Prêmio Nobel da Paz em 2005. Elzita pegou o microfone durante a cerimônia no Palácio do Planalto e pediu que, antes de morrer, lhe permitissem enterrar o filho.

A dramaticidade dos acontecimentos relatados e das lembranças evocadas provocou lágrimas nos ministros Dilma Rousseff, Franklin Martins e Tarso Genro.

Num aparente recado aos comandantes militares que teriam boicotado o evento, o ministro da Defesa Nelson Jobim disse que as Forças Armadas receberão com naturalidade essa iniciativa do governo em prol da reconciliação do País: "Não haverá indivíduo que possa reagir. E, se reagir, terá resposta".

ONU recomenda transparência – O resgate e disponibilização da verdade sobre a guerra suja que os militares travaram contra os opositores dos regimes ditatoriais latino-americanos são recomendados tanto pela ONU quanto pela OEA, segundo o procurador regional da República em São Paulo Marlon Weichert.

A ONU aponta três obrigações básicas para países que passaram por regimes ditatoriais: reparar os danos provocados, apurar a verdade e responsabilizar os culpados. Na avaliação de Weichert, só o primeiro item está sendo cumprido integralmente pelo Brasil. A dificuldade em avançar-se nos outros dois decorreria de um empenho em se “preservar a biografia de pessoas que estiveram envolvidas com os atos de repressão e com eventuais violações de direitos humanos".

Agindo diferentemente de outros países (como a Argentina, onde cerca de 700 pessoas já foram presas por crimes cometidos durante a ditadura militar), o Brasil “fica nessa situação extremamente desconfortável de proteger pessoas que violaram direitos humanos”, ressalta o jurista.

A produção e lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade é um passo significativo na direção certa.

Trata-se da síntese de 11 anos de trabalho da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, ((1995/2006)) complementada por outras informações reunidas pelo secretário especial de Direitos Humanos Paulo Vannuchi e sua equipe.

Traz um resumo de 475 casos: os 339 apreciados por essa comissão (que deferiu 221 pedidos de indenização) e os de outros 136 cidadãos que já haviam sido reconhecidos como mortos ou desaparecidos pela lei 9.140 de 1995. Com 500 páginas e tiragem de 5 mil exemplares, será enviado a bibliotecas, ONG’s e às famílias das vítimas.

Vidas destruídas – Uma novidade foi o reconhecimento, por parte da comissão, da responsabilidade do Estado em casos de suicídio posterior de cidadãos que ficaram traumatizados em função do arbítrio instalado no País. Casos de Maria Auxiliadora Lara Barcellos ((1945-1976) e Massafumi Yoshinaga (1949-1976).

Maria Auxiliadora pertenceu à VAR-Palmares e ficou presa 14 meses, até ser trocada, com outros 69 presos políticos, pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Atirou-se nos trilhos de um trem numa estação de metrô berlinense cinco anos depois, sem nunca recuperar-se dos pesadelos vividos. Deixou relatos pungentes: "Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos”; Antonio Roberto Espinoza e Chael Charles Schreier [detidos juntamente com ela, tendo o segundo morrido sob tortura] estavam “visivelmente ensangüentados, inclusive no pênis, na orelha e ostentando corte na cabeça".

Massafumi foi um jovem militante secundarista que ingressou na luta armada abril/1969 e saiu em dezembro, por inadequação psicológica à vida clandestina. Confundido com o japonês da metralha que participara de várias ações armadas da VPR, passou a ser um dos resistentes mais perseguidos pela ditadura, com foto exposta em cartazes de procurados e freqüentes citações do seu nome na mídia. Tentou levar vida normal sob falsa identidade, trabalhou em colheitas, abrigou-se em barracas de feirantes no Mercado Municipal, mas concluiu que era impossível continuar sobrevivendo nessas condições. Negociou sua rendição, com a condição de não ser torturado nem delatar companheiros.

Utilizado como trunfo propagandístico pelos militares, nunca conseguiu reintegrar-se à sociedade. Foi perdendo a razão, a ponto de acreditar que seus pensamentos estivessem sendo captados nos órgãos repressivos da ditadura. Depois de se jogar embaixo de um ônibus e quase atirar-se de uma janela, foi bem-sucedido na terceira tentativa de suicídio, enforcando-se com a mangueira de um chuveiro.

A autocrítica necessária – Em off, militares criticaram a iniciativa do governo como parcial e revanchista. O ministro Vannuchi, também ex-preso político, respondeu que não se quis “criar uma coisa maniqueísta, de que o bem está de um lado e o mal do outro”. E justifica: “Todos fomos presos na armadilha da guerra fria e o relatório registra que aquelas pessoas que estavam lutando, também mataram”.

Curiosamente, essas mesmas fontes fardadas estariam alegando que tudo isso já é conhecido e não precisaria ser trazido novamente à tona. No entanto, há um intenso trabalho de deturpação da verdade, desenvolvido por apologistas da ditadura na imprensa e na Internet, exatamente para enaltecer carrascos e denegrir suas vítimas.

Então, o que falta mesmo para que essa página vergonhosa da História brasileira seja virada é a autocrítica das Forças Armadas, pois a esquerda, de diversas maneiras, já fez a sua.

Hoje é simplesmente irrefutável que um núcleo conspirador, depois da tentativa frustrada de 1961 e de cuidadoso planejamento conjunto com uma potência estrangeira, conseguiu usurpar o poder em 1964, submetendo as três Armas e o Estado brasileiro aos seus desígnios totalitários.

Não há motivo nenhum para as Forças Armadas continuarem identificadas com esses golpistas, assim como os militares alemães nenhum vínculo têm nem querem ter com o passado nazista.

Se admitirem corajosamente as atrocidades que foram cometidas em seu nome e pararem de brigar com a verdade, vão conquistar o respeito dos brasileiros.

Mas, precisam deixar bem claro que Passarinhos e Ustras já não falam em seu nome nem expressam o sentimento dominante na caserna, que hoje é de cumprimento da missão constitucional e respeito pela democracia.

* Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político, tendo conhecido pessoalmente cerca de 20 mortos e desaparecidos políticos citados no livro Direito à Memória e à Verdade. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

O RESCALDO DO MENSALÃO

Celso Lungaretti (*)

Graças ao Supremo Tribunal Federal, o Brasil tem um novo título de campeão moral para exibir, o do combate à corrupção governamental: em decisão exemplar, o STF resolveu tornar réus todos os 40 acusados de responsabilidade ou envolvimento com a organização criminosa desbaratada no escândalo do mensalão.

Mas, como no caso da Seleção Brasileira comandada por Cláudio Coutinho no Mundial de 1978, ficou faltando algo de suma importância. Voltamos da Argentina sem taça para colocar na sala de troféus e saímos do julgamento do ano com 99% de certeza de que o opróbrio será a principal (talvez única) punição dos 40 processados.

Os juristas eminentes são unânimes em descartar a hipótese de que os malfeitores acabem atrás das grades. Prevêem que a complexidade do caso e as manobras protelatórios dos advogados acarretem a prescrição dos crimes ou que, no máximo, os réus sejam condenados à suspensão de direitos políticos.

O que não significa muita coisa, pois salta aos olhos que Zé Dirceu, José Genoíno, João Paulo Cunha, Luiz Gushiken, Delúbio Soares e Sílvio Pereira vagarão doravante como cadáveres políticos insepultos, da mesma forma que Fernando Collor e Paulo Maluf. De um jeito ou de outro, o máximo a que podem aspirar é uma posição confortável como coadjuvantes na cena política.

O que houve no primeiro mandato do presidente Lula foi um conluio entre funcionários governamentais, quadros partidários e empresários privados. Ocorreram o saque dos cofres públicos, o desvio de recursos de estatais, concorrências fraudadas, favorecimentos indevidos, tudo isso para alimentar sabe-se lá que projeto mirabolante do ex-ministro Zé Dirceu.

O fato é que a dinheirama toda acumulada pelo PT com esses expedientes ilegais excedia em muito o necessário para a compra de apoio político no Congresso Nacional. E as investigações nem de longe chegaram ao âmago da questão.

Para a esquerda, fica a lição de que Moral e Revolução (Trotsky) ainda é melhor livro de cabeceira do que O Príncipe (Maquiavel), para quem quer construir uma sociedade mais justa e solidária.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

24.8.07

A BORRA: SERRA, RENAN, MAINARDI, MENSALEIROS, MENTIROSOS...

Celso Lungaretti (*)

A tropa de choque da Polícia Militar paulista certamente vai aparecer com destaque no noticiário do próximo dia 2 de outubro, quando o massacre do Carandiru completará 15 anos. A invasão intempestiva e desnecessária de um presídio deixou um saldo de 111 presos assassinados, num dos episódios mais escabrosos da História recente brasileira.

Comprovando que esqueceu completamente as leituras e os ideais da mocidade, o governador José Serra parece ansioso por fazer com que São Paulo receba outra vez a mesma lição. Acabará conseguindo.

Na madrugada de quarta-feira (22), a PM invadiu desnecessariamente a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para desalojar à força 400 manifestantes que lá estavam desde a tarde do dia anterior e sairiam naquele mesmo dia -- ou, o mais tardar, na 6ª feira, quando acontecerá o principal ato em SP da Semana de Jornada de Lutas, movimento nacional pela melhora do ensino promovido por 40 entidades, inclusive a União Nacional dos Estudantes.

Ou seja, para a retirada de jovens que ficariam lá pouquíssimo tempo e não impediam o prosseguimento das aulas, o ex-presidente da UNE colocou seres humanos em risco e igualou-se aos inimigos de outrora, como o famigerado secretário de Segurança Pública responsável pela invasão da PUC, exatamente em 22 de setembro de 1977.

Então, nas duas efemérides negativas que se aproximam, Serra deverá ser comparado, respectivamente, ao ex-secretário Erasmo Dias e ao ex-governador Luiz Antônio Fleury Filho. E, convenhamos, fez por merecer.

* * *

A novela sem fim em que se transformou o caso de Renan Calheiros desmoraliza a democracia brasileira. Como qualquer cidadão, ele tem todo direito de se defender das gravíssimas acusações que lhe são feitas. Como presidente do Senado, ele jamais deveria permanecer nessa posição enquanto se procede, com lentidão exasperante, a apuração desses episódios.

Se Renan se respeitasse e quisesse fazer-se respeitar, tomaria a iniciativa de licenciar-se não só da presidência do Senado, como do próprio mandato, até que não pairassem dúvidas sobre sua honestidade.

Se o Senado se respeitasse e quisesse fazer-se respeitar, manteria Renan fora da presidência enquanto pairassem dúvidas sobre sua honestidade e o reconduziria a essa posição na remotíssima eventualidade de ele ser inocentado.

* * *

Chamado de “pistoleiro” por Zé Dirceu, Diogo Mainardi reagiu, na Veja de 22/08/2007, utilizando sua coluna inteira para apresentar e discutir os dados de uma agenda telefônica do desafeto. Publicou nomes, datas, algarismos de telefones e anotações, para daí extrair conclusões policialescas.

Disse apenas ter recebido a agenda, sem esclarecer como e de quem. Zé Dirceu, no seu blog, garante que se trata de “acesso ilegal que [Mainardi] teve a dados que foram enviados à CPI”.

Tenha ele bisbilhotado o conteúdo de uma agenda perdida por (ou roubada de) Zé Dirceu, ou sido municiado por algum parlamentar que jamais poderia lhe repassar dados sigilosos de uma CPI, o certo é que Mainardi atropelou a ética jornalística, comportando-se como um reles araponga. Deveria mudar de profissão.

* * *

A imprensa exumou o caso do mensalão, por conta da apreciação, por parte do Supremo Tribunal Federal, da denúncia que o procurador-geral da República apresentou contra a “organização criminosa" que atuava para "desviar dinheiro público e comprar apoio político".

Moralmente, a aceitação da denúncia e conseqüente abertura de ação penal contra os 40 mensaleiros significará muito.

Em termos práticos, quase nada. Eles vão ter de pagar advogados caros e comparecer a algumas audiências tediosas, mas é quase certo que seus casos se arrastarão inconclusos por tanto tempo quanto os de Paulo Maluf.

Ou se criam mecanismos para evitar que os ricos e poderosos abusem de recursos protelatórios para escapar das grades, ou continuaremos sendo o país terrivelmente injusto e até anedótico no qual só os pobres vão para a prisão.

* * *

No dia seguinte à tragédia de Congonhas, eu já escrevia que a responsabilidade maior era das empresas aéreas e sua ganância criminosa: “Dinheiro é mais importante do que seres humanos, na lógica capitalista levada às últimas conseqüências”.

Houve, como sempre, os que me acusaram de parcial e tendencioso. E as minúcias e irrelevâncias foram discutidas ad nauseam pela imprensa, bombardeando os cidadãos comuns com um tal volume de informações que a maioria acabou não conseguindo separar o joio do trigo. A mídia atordoante cumpriu seu papel de promover espetacularização e propiciar catarse, mas não esclarecimento.

A saturação sobreveio e a atenção da maioria silenciosa se voltou para outras atrações, de forma que só a minoria esclarecida está acompanhando a elucidação do crime: um aeroporto inseguro foi colocado em operação por força do poder de persuasão que as empresas aéreas exerceram sobre a Infraero e a Anac, a ponto da diretora da agência reguladora haver mentido à Justiça para agilizar a liberação da pista.

Mandantes, lobbistas e funcionários do Estado que se deixaram subornar deveriam todos ser acusados de homicídio culposo e punidos exemplarmente, para as 199 mortes não terem sido em vão.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

O RESCALDO DO "CANSEI"

Celso Lungaretti (*)

Tenham sido 2 mil ou 5 mil os cidadãos presentes ao ato público do Cansei na Praça da Sé, o certo é que, para uma metrópole como São Paulo, isto equivale a uma gota d’água no oceano.

Na verdade, as próprias lideranças do movimento não esperavam grande coisa depois que a OAB Nacional pulou fora, deixando a decisão de apoiá-lo ou ignorá-lo às seccionais. E o que se viu não deu nem para salvar as aparências. Outros enterros já tiveram participação mais expressiva.

O fracasso teve muitas causas.

João Doria Jr. tentou transpor para a política as fórmulas publicitárias que costumam dar certo nas campanhas eleitorais. Então, face à comoção provocada pela tragédia de Congonhas, supôs mecanicamente que se tratasse da gota d’água para a classe média passar dos resmungos virtuais ao protesto aberto. A virulência dos posts na Internet deixava exatamente essa impressão.

E foi com visão de publicitário que ele estruturou seu projeto, desde o título mais próximo dos slogans propagandísticos do que das palavras-de-ordem políticas (e que acabou se revelando extremamente inadequado, pois propiciava piadas dos adversários) até o foco demasiadamente difuso: querendo atingir o máximo de consumidores, Doria pretendeu enfeixar num único movimento todas as insatisfações por mazelas de responsabilidade do Executivo, Legislativo e Judiciário, em âmbito federal, estadual e municipal.

Para piorar, a idéia foi prontamente apoiada pela extrema-direita golpista que faz proselitismo na Internet e pelas correntes que até hoje não se conformam com o fato de Lula haver escapado do impeachment. Com Brilhante Ustra, Olavo de Carvalho, o Partido Vergonha na Cara e o Fora Lula apoiando o Cansei, ficou fácil para os governistas apontarem-no como uma nova Marcha da Família, com Deus, Pela Liberdade.

Afinal, além de ter essas ligações perigosas, o Cansei se voltava contra muitas iniqüidades e não propunha solução para nenhuma delas. O que resolveria tantos problemas de uma só vez? Fazia sentido supor-se que sua verdadeira meta fosse, como em 1964, um golpe de estado contra a subversão e a corrupção.

De quebra, o apoio da Fiesp, da Febraban e da Associação Comercial de São Paulo reforçou a suspeita de que se tratasse de uma conspiração dos endinheirados contra o presidente metalúrgico. E a OAB, respeitada por sua atuação exemplar durante os anos de chumbo, não acompanhou o presidente da seccional paulista em sua aventura.

Os erros crassos cometidos pelos que se propuseram a representá-la não devem, entretanto, fazer crer que a classe média esteja indiferente em relação a um governo que prioriza os muito ricos e os muito pobres, pouquíssimo oferecendo a quem está no meio, exagerando na carga tributária e descurando de serviços essenciais.

Bem farão os lulistas se encararem o Cansei como um alerta e iniciarem algumas correções de rumo. Nem todos os movimentos de classe média serão tão trapalhões.

João Goulart também sentia-se perfeitamente seguro depois da estrondosa vitória obtida no plebiscito que lhe restituiu poderes presidenciais plenos. Um ano e meio depois, era derrubado.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

17.8.07

CASO DOS ATLETAS CUBANOS TERÁ SOLUÇÃO HUMANITÁRIA?

Celso Lungaretti (*)

Eder Jofre e Eduardo Matarazzo Suplicy, respectivamente o maior boxeador brasileiro de todos os tempos e o parlamentar petista mais identificado com a defesa dos direitos humanos, divulgaram carta aberta a Fidel Castro, na qual fazem “um apelo humanitário ao governo de Cuba”, pedindo-lhe que dê “uma nova oportunidade, como merecem todos os seres humanos”, aos atletas Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara.

Ambos desertaram da delegação cubana durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, com a intenção de se tornarem pugilistas profissionais na Alemanha. Como amadores, os dois são campeões mundiais de suas categorias e Ringondeaux detém também o título olímpico.

Estiveram desaparecidos por 12 dias, aliviando sua tensão com prostitutas, enquanto esperavam que os aliciadores criassem condições para sua viagem à Europa.

Localizados pela Polícia Federal, passaram dois dias em liberdade vigiada, tendo sido mantidos inacessíveis à imprensa e até a juristas (o presidente da OAB/RJ tentou, em vão, falar com eles e acabou se contentando com as palavras tranqüilizadoras de um delegado e um procurador). Em seguida, foram recambiados a toque de caixa para Cuba, numa operação muito criticada pelos defensores dos direitos humanos.

Caso de Miguel Vivanco, diretor-executivo da Human Rights Watch, que enviou carta ao ministro da Justiça Tarso Genro levantando a possibilidade de que o governo brasileiro não teria tomado “medidas suficientes para assegurar que Rigondeaux e Lara recebessem as proteções legais às quais eles pudessem ter direito como refugiados em potencial".

O principal – praticamente único – argumento dos defensores da lisura do comportamento das autoridades brasileiras é o de que os boxeadores não solicitaram asilo. Vivanco foi taxativo:

– Ainda que os dois atletas não tenham requisitado asilo político explicitamente, pedidos de obtenção do status de refugiado podem ser sinalizados por ações, e não apenas por pedidos explícitos. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) reconhece que um pedido de obtenção de status de refugiado pode ocorrer sur place no caso de indivíduos que, “devido aos seus próprios atos”, têm temor fundamentado de que serão perseguidos em seu país-natal. O Manual de Procedimentos e Critérios para Determinar a Condição de Refugiado, do Acnur, afirma: 'Quando há razão para acreditar que uma pessoa, em virtude da sua partida ilegal ou permanência no estrangeiro sem autorização, é passível de tais penas, o seu reconhecimento como refugiado se justifica”.

Lembrou, ainda, ser “prática rotineira do governo cubano, violando a legislação internacional, acionar cidadãos criminalmente por viagens não-autorizadas, incluindo casos nos quais indivíduos permanecem mais tempo do que o autorizado em suas visitas ao estrangeiro”. As sentenças, acrescentou, chegam a três anos de prisão.

MORAL MILITAR

Não será esta, entretanto, a punição de Ringodeaux e Lara. Num julgamento sumário, Fidel os considerou implicitamente culpados de traição à pátria, já que, nas suas palavras, “o atleta que abandona sua delegação é como um soldado que abandona seus companheiros em meio do combate”. E lavrou a sentença:

– A Revolução cumpriu sua palavra. Prometeu oferecer aos atletas um trato humano, reuni-los imediatamente com seus familiares, facilitar-lhes o acesso à imprensa se o desejarem, e oferecer-lhes um emprego decoroso de acordo com seus conhecimentos. (...) Já eles desejam ir embora, juntamente com seus familiares. Chegaram ao ponto em que deixarão de fazer parte da delegação cubana nesse esporte.

Ou seja, não defenderão seus títulos no campeonato mundial de boxe nem disputarão as Olimpíadas de Pequim. Sua carreira de pugilistas termina e eles passarão a trabalhar em alguma atividade ligada ao esporte. No entanto, reconhece o próprio Fidel, o que eles desejam mesmo é “ir embora, juntamente com seus familiares”. Serão atendidos?

Enfim, há que se louvar as boas intenções de Eder Jofre e Suplicy, mas não é desse tipo de magnanimidade que Ringodeaux e Lara precisam.

Fidel deixou claro que, caso eles tivessem se mostrado sinceramente arrependidos de sua heresia, receberiam outro tratamento. A imprensa cubana foi incumbida de registrar-lhes a humilhação pública, mas ambos não se fragelaram o suficiente para expiarem culpa tão imensa. À fogueira, pois! Mas, como os tempos são outros, os homens não serão incinerados, apenas suas carreiras.

Pode ser até que o clamor da opinião pública mundial acabe levando Fidel a conceder-lhes a graça, como faziam os soberanos medievais. Mas, enquanto o castrismo perdurar em Cuba, serão sempre vistos como ovelhas negras, desprezados e estigmatizados. Só conseguirão reconstruir verdadeiramente suas vidas no exterior, se puderem sair junto com os (reféns?) parentes. Esta seria a real solução humanitária para o episódio.

De resto, é lamentável que tantos cidadãos ditos de esquerda tenham tomado partido nessa questão segundo a lógica da finada guerra fria: apesar de todos os seus desvios em relação ao socialismo que Marx e Engels ensinaram, ainda assim o governo do PT e o regime cubano devem ser defendidos de críticas justificadas, para não se fazer o jogo do inimigo. Pouco importando que isso implique fragilizar um valor tão sagrado para os revolucionários como o direito de asilo.

Foi em nome dessa lógica viciada que os socialistas compactuaram com os crimes de Stalin. E o que resultou de toda essa omissão? Um castelo de cartas que desabou em 1989.

A lição a ser tirada dos fracassos do século passado é que os revolucionários devem colocar suas duas grandes bandeiras em plano de igualdade, lutando ao mesmo tempo e na mesma medida pela liberdade e pela justiça social. Não se pode sacrificar a primeira em nome da segunda, pois os melhores seres humanos não aspiram apenas a ser bem tratados, como os animais de uma fazenda-modelo. Querem ser os artífices de sua própria história.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

10.8.07

EPISÓDIO DOS ATLETAS CUBANOS MERECE REPÚDIO

Celso Lungaretti (*)

Dois dos princípios que, segundo a Constituição, regem as relações internacionais da República Federativa do Brasil podem ter sido violados quando se despacharam os boxeadores Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara de volta para Cuba: a prevalência dos direitos humanos e a concessão de asilo político.

Tratou-se de um episódio nebuloso. Eles desapareceram durante a disputa do Pan no Rio de Janeiro. O açodamento com que os cubanos providenciaram o retorno de outros atletas evidencia que chegaram a temer uma debandada mais ampla. A hipótese de deserção foi, ainda, reforçada pela versão desabonadora para os pugilistas que logo estava em circulação: teriam sido aliciados para exercer seu ofício na Alemanha, ganhando muito mais.

Ambos reapareceram nas mãos de policiais e a notícia inicial foi de que teriam sido detidos por falta de documentos. No dia seguinte já seguiam para Cuba. E, respondendo às críticas surgidas, a Polícia Federal divulgou um depoimento em que os boxeadores disseram ter sido abordados por dois estranhos, convencidos a acompanhá-los a um bar (?) para deles adquirirem um videogame (?), dopados, levados a um apartamento em Copacabana, depois a uma pousada em Araruama e, finalmente, abandonados, quando, por iniciativa própria, teriam contatado as autoridades.

Sintomaticamente, a PF não fez nenhuma menção a diligências para identificar e prender esses indivíduos que teriam drogado e seqüestrado os boxeadores, dois delitos gravíssimos. Não foram feitos retratos falados dos criminosos, nem as vítimas permaneceram por algum tempo no Brasil, para tentar identificá-los quando fossem efetuadas prisões.

Para quem não é ingênuo, fica claro que os pugilistas quiseram mesmo desertar e arrependeram-se ou foram coagidos a desistir desse intento, tendo em seguida sido armada uma farsa para preservar a imagem de Cuba e do governo brasileiro.

A atitude correta, obviamente, teria sido a de colocá-los em contato com entidades como a Anistia Internacional e a OAB, que lhes prestassem todos os esclarecimentos necessários para tomarem a decisão mais adequada e se dispusessem a defender seus direitos humanos, no caso de terem sido ou poderem ser atingidos. O isolamento em que foram mantidos e a pressa com que foram embarcados são altamente recrimináveis.

O comportamento do nosso Governo deve, obviamente, ser repudiado por todos os democratas, já que, explicita ou implicitamente, desrespeitou a Constituição cuja vigência plena foi restabelecida ao preço da vida e de sofrimentos inenarráveis de alguns dos melhores seres humanos que nosso país já produziu.

E, mais ainda, pelos revolucionários, pois constituiu uma lamentável reincidência em práticas características da guerra fria, quando o direito de asilo era espezinhado ao sabor de conveniências políticas e o acobertamento oficial campeava impune.

Se até hoje choramos os mortos pela Operação Condor, quando a cooperação dos serviços de inteligência das ditaduras sul-americanas permitia que militantes da resistência fossem caçados e abatidos fora de seus países, não podemos transigir com a abertura de precedentes como esse, que, como um bumerangue, acabará se voltando contra nós e vitimando cidadãos muito mais valorosos do que esses pugilistas cubanos.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor

2.8.07

EU CANSEI, TU CANSASTE... QUEM NÃO SE CANSOU?

Celso Lungaretti (*)

De um lado, o "Cansei" da OAB. Do outro, o "Cansamos" da CUT. E os cidadãos brasileiros, que carregam o cansaço de décadas e séculos perdidos, onde ficam? Assistindo à briga de cachorro grande, sem se comprometerem. Desta vez, até que com razão.

As vaias ao presidente Lula na abertura do Pan e a tragédia de Congonhas foram superdimensionadas pela direita golpista que viceja na Internet e pela direita engravatada da grande imprensa.

Os panfletos virtuais circularam como nunca e atingiram o grau máximo de radicalização verbal, enquanto os posts nas comunidades de discussão política fervilhavam de indignação.

E na mídia escrita (principalmente) o viés do noticiário e editoriais começou a evocar a informação distorcida e os "chega!", "basta!" e "fora!" que antecederam o golpe militar de 1964.

No entanto, seria um erro igualar o eternamente conspirador Grupo Guararapes com, p. ex., O Estado de S. Paulo - embora um editorial infeliz do jornalão tenha causado calafrios em quem ainda se lembra do papel por ele desempenhado na última virada de mesa institucional.

A direita radical que jamais engoliu a redemocratização do País e os neo-integralistas por ela formados apostam mesmo todas as fichas numa nova quartelada. As pregações golpistas daí advindas há muito ultrapassaram os limites da legalidade e deveriam ser coibidas, com a imputação penal de quem espalha por toda a Web exortações sediciosas do tipo "militares no poder já!".

A grande imprensa, no entanto, mais reverbera a insatisfação da classe média e a amplifica. Ou seja, afaga o seu público-alvo e dá uma força para os principais partidos de oposição, o PSDB e o DEM. O Lula estava certo ao dizer que são apenas os primeiros movimentos da campanha eleitoral de 2010, mas logo depois voltou à retórica oportunista sobre os endinheirados que não suportam ver um torneiro-mecânico no poder...

Espertamente, os petistas estão procurando reaproximar-se dos cidadãos idealistas que lutaram a seu lado contra a ditadura e foram se distanciando à medida que o partido abandonava suas bandeiras históricas. Utilizam o mal maior – a ameaça de recaída autoritária – como espantalho para tangê-los de volta ao redil.

Então, o posicionamento mais lúcido acaba sendo o de quantos estão apontando a guerra dos cansados como uma mera disputa de poder entre dois segmentos da elite que, no essencial, convergem: ambos mantêm a mesma fidelidade canina ao capitalismo globalizado, tanto que a política econômica de FHC vige até hoje. A diferença se dá apenas nos detalhes, como o de que um é mais inclemente e o outro prefere colher os dividendos eleitorais do assistencialismo.

Quem não faz parte da elite nem é dela caudatário, tem todos os motivos para defender a democracia se e quando ela estiver realmente ameaçada, mas nenhum para servir de peão no tabuleiro político em que se defrontam os responsáveis pelo cansaço nacional.


* Celso Lungaretti é jornalista, escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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