[O Raul foi primeiramente num jornaleco colorido que pras gravadoras é uma canja: encarrega-se ele mesmo de fazer o press-release. Não tem críticos, portanto não tem opinião, portanto apenas ecoa o que as gravadoras querem passar sobre seus artistas e o que estes querem passar sobre si mesmos. Antes os house-organs: são de graça.]
E o Raul chegou ao meio-dia, muito discreto com sua jaqueta vermelha e seus óculos alaranjados. Ele, a Kika -- sua companheira -- e o Luís da CBS. O repórter tinha sido colocado numa brecha entre aquele matinal fornecimento de matéria-prima para divulgação (liquidação de primavera: duas páginas de entrevistas por uma de anúncio, quem vai nessa?) e um encontro mais sério, no Folhão, às duas da tarde. Sobrou o almoço. Mas, antes, um papo rápido, enquanto o fotógrafo trabalha.
Começamos. Por que o sarro com o presidente da WEA, André Midani ("André Ledani só faz confusão/ Sonhei com ele e mijei no colchão"), na faixa "Conversa Para Boi Dormir"? "Bom, quando ele saiu da Philips e quis me levar junto, pensei que reconhecesse meu valor. Mas, não sei por que, a WEA praticamente nem divulgou meu penúltimo LP, Por Quem os Sinos Dobram. Você ouviu falar nele? Alguém ouviu? Daí, achei que era hora de levantar acampamento. E agora estou na Columbia Broadcasting System. Very good!" [Dá um sorriso moleque e aponta com o olhar um diretor da CBS.]
O Raul parece o tempo todo interessado nas peripécias do fotógrafo, que tenta achar o melhor ângulo. "O que é que há, Raul, está estranhando?" Ele: "Sei lá, vai ver que sou meio tímido. Fico sempre inibido". O repórter se espanta, tenta captar se ele estava falando sério. Estava.
NOSSOS COMERCIAIS, PLEASE!
Começo de entrevista é sondagem de parte a parte. Então, pintam os lances mais formais, tipo "desde o tempo de 'Ouro de Tolo' até hoje, continuo fazendo o mesmo trabalho, dentro das mutações da civilização, como observador, contador de histórias, gostador de música"...
Ou: "Hoje é uma época caótica, não temos nada. Existiram duas décadas com ídolos saídos da terra, enraizados na terra -- a de Elvis e James Dean, depois a dos Beatles. E aconteceram todas aquelas mudanças de comportamento. Agora não há nada, não está acontecendo nada. Os anos 80 são isto: nada. Então, se no atacado a coisa dançou, a gente tenta salvar algo no varejo. O rock dos outros pode estar morto, mas o meu rock está vivo e com força total".
Além disso, há propostas, projetos: lançar seu atual LP, Abre-te Sésamo, não numa coletiva de imprensa, mas numa mesa-redonda sobre os anos 80, com a participação de Lula, D. Helder, Walter Clark e alguns jornalistas escolhidos a dedo ("Quero sentar-me e ficar ouvindo, para variar"); dar um show com sinfônica no Anhembi, marcando "my great come back"; gravar um LP nos EUA, chamado Opus 666, uma transa místico-poética em torno de uma visão atual do Diabo ("Depois esse disco chega como importado no Brasil e todo mundo compra. Santo de casa não faz milagre").
A ENTREVISTA DE VERDADE
Corte para um restaurante chinês. O Raul se descontraiu por completo depois de uma confissão do repórter. Estavam atravessados em sua garganta os necrológios infames que a grande imprensa cometeu por ocasião dos dez anos do maio francês, da Primavera de Praga e de tudo que iluminou sua mocidade no longínquo 68, então saiu o disco O Banquete dos Mendigos [registro de um magnífico espetáculo em prol dos direitos humanos, que passou muito tempo proibido pela censura] e o repórter se arrepiou todo quando ouviu o Raul cantar a já esquecida Cachorro Urubu: "E todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era,/ Que já não é mais primavera/ o baby, a gente ainda nem começou".
Então, Raul sentiu-se entre amigos. E a conversa deixou de ser oficial. Para começar, ele fez aparecer, num passe de mágina, uma garrafinha metálica cheia de uísque. Despejou-a inteira em seu copo, tomou um longo gole e depois passou-o adiante. O proprietário (um chinês velhinho, de cabelos brancos) notou a garrafa trazida de fora, veio olhar: "Que engraçada, essa amostra..."
O Raul não deixou por menos, caricaturizou: "Essa não vai na conta, no?!". Mais tarde explicou que o velho estava tirando uma com a cara dele. "Se é para ser filho da p..., então eu vou ser o maior de todos!"
A Kika quis saber: "Como é, vocês não vão acabar a entrevista?". O repórter se espantou: "Ora, mas é agora que nós estamos fazendo a entrevista de verdade". O Raul completou: "E ai de nós quando acabarmos!".
Traçando um frango xadrez e bebendo muito saquê, o Raul começou a mostrar a mesma irreverência de suas músicas. "Já que estão falando de abertura, então vamos ver até onde vai. Por isso eu fiz Abre-te Sésamo, exatamente para questionar, porque o que está aí não é abertura nem nada. Depois, em Aluga-se, eu dou um bom conselho pro Delfim: se eu fosse ele, alugava o Brasil."
SERÁ QUE EU FALEI BOBAGEM?
Lá pelas tantas, o Raul colocou todo o resto de comida numa travessa só e nos convidou a comermos diretamente dali, como irmãos. O repórter ainda mandou ver umas garfadas, os outros já haviam encerrado. Os assuntos iam e vinham. A Kika falou de um germe recém-descoberto que comia ferrugem. O Raul aproveitou: "É, o bichinho come tudo que há de ruim nesta sociedade industrial -- o petróleo, a ferrugem, até os edifícios. Quando é que ele vai chegar no Figueiredo?" Aí, fingiu-se de assustado: "Será que eu falei bobagem, heim?".
A cada instante, a Kika e o Luís lembravam que estava ficando tarde para a entrevista na Folha. O Raul acabou desabafando: "A maioria dessas entrevistas é um saco, principalmente as coletivas!". O repórter comentou que as coletivas têm meia hora de papo formal sobre o disco ou o show que o artista está promovendo, depois fica tudo mais descontraído e até saem conversas interessantes; só que ninguém anota, pois os jornalistas de hoje só sabem trabalhar com o lado promocional. O Raul faz um gesto de "olhaí, eu não disse?". E interrompe: "Não precisa falar mais nada. A gente já se entendeu".
Bota-fora. Raul chama um último saquê, o repórter lamenta: "O diabo vai ser passar o resto da tarde na redação, escrevendo". O Raul não quis ouvir: "Não fala isso, irmãozinho, não fala isso! Eu fico muito triste". O repórter novamente estranhou e quis ver se havia algum traço de ironia no rosto dele. Nenhum.
PODE NÃO CANTAR NADA, MAS QUE COXAS!
Bêbados em pleno começo de tarde, na rua Teodoro Sampaio. Luís e Kika já estão longe, ansiosos por apanhar depressa o carro. Raul atrás, abraçado ao repórter, admirando os traseiros de quatro garotas que passam despreocupadas. "É demais! É demais!" Pergunta ao repórter o que acha de uma cantora da moda, bem medíocre. "Sei lá. Em que sentido?" Ele dá outro sorriso maroto e aponta as meninas: "Nesse mesmo. Eu vi na TV e não me aguentei. Pode não cantar nada, mas que coxas!"
[E o repórter se dá conta que, ao contrário de quase todos os artistas que conheceu, Raul Seixas é sincero. Tanto nas suas esculhambações políticas como no clima sensual de suas músicas. No deboche bem humorado do Rock das Aranhas. No conselho a uma baby de treze anos, de que se "quer deitar/ Não dar ouvido à razão, não/ Quem manda é o coração". Nos versos de sexo quase explícito de Ângela: "Rouba do meu leite agora/ O gosto da minha vitória" e também "Minha espada erguida para a guerra/ Com toda fúria que ela encerra". De forma alguma idéias tomadas de empréstimo a bons letristas como Paulo Coelho e Cláudio Roberto. Mas verdades, também para si. Principalmente para si.]
O Raul disse que estava há quatro noites sem dormir. Saiu bem atrasado para a Folha. Chegando lá, capotou. Desistiu de todas as entrevistas marcadas para a tarde. Foi para o hotel descansar.
***
O repórter só escreveria esta matéria alguns dias depois. Típico trabalhador da indústria cultural: salários aviltados, necessidade de fazer toneladas de matérias para sobreviver. Despersonalizando o estilo, prostituindo um dom.
No entanto, calou fundo nele a "teimosia braba do guerreiro", a imagem desse admirável guerreiro que insiste em manter a loucura dos anos 60 em meio ao marasmo e calculismo dos 80. E as sucessivas audições de Abre-te Sésamo lembraram-lhe tudo que a música era e ultimamente deixou de ser: alegria, revolta, paixão, coragem.
Então, o repórter resolveu, ao menos desta vez, fazer a matéria que tinha vontade de fazer, ao invés do texto bem comportado que as escolas ensinam e os editores recomendam. Saiu assim.
(texto publicado na edição 46 da revista "Música", em 1980, com a assinatura de André Mauro. Nas pegadas de Norman Mailler e do novo jornalismo dos EUA, eu me coloquei também como personagem da matéria. O Raul gostou tanto que depois me convidou para um happy hour da CBS e acabamos mantendo uma amizade de alguns meses)
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