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28.8.08

CANTO DO CISNE DOS GRANDES FESTIVAIS, O III FIC FAZ 40 ANOS

A época de ouro dos festivais de música popular vai até 1968, pois em dezembro daquele ano o Brasil entrou no inferno do AI-5 e os artistas, intimidados e censurados, não puderam mais exercer verdadeiramente seu ofício.

O canto do cisne do período de maior efervescência musical que o País já conheceu foi o III Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, realizado em setembro de 1968, em meio a passeatas que degeneravam em batalhas campais, mortes de opositores da ditadura, denúncias de torturas, ações armadas da esquerda, atentados dos grupos para-militares de direita (o Comando de Caça aos Comunistas acabara de espancar o elenco da peça Roda Viva) – a ante-sala do inferno, enfim.

O então influente Jornal da Tarde (SP), naquele final de 1968, dia após dia dedicava suas manchetes e principais matérias ao “terrorismo”, fazendo alarmismo para enlouquecer a classe média e favorecer a linha dura militar na luta interna em que se decidia o rumo do regime.

Pode-se pensar em festivais num momento desses?

Pode-se. E isto ficou claro quando Geraldo Vandré apresentou na eliminatória paulista sua “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores” (ou, simplesmente, “Caminhando”) – canção-desagravo, hino revolucionário, síntese e depuração de tudo que já se fizera em termos de protesto político no Brasil.

Vandré atravessava uma fase difícil, rompido com as emissoras de maior audiência junto ao público de MPB (TV Record e rádio Jovem Pan), amargando uma desilusão amorosa, sendo hostilizado e gelado pelos estudantes de esquerda.

Fora-lhe muito danosa a publicação de uma foto no jornal Folha da Tarde, na qual aparecia abraçado a Abreu Sodré, ajudando-o a escafeder-se do palco armado na praça da Sé, após ser apedrejado por manifestantes.

Governador de São Paulo por obra e graça da ditadura, Sodré tentara falar num ato comemorativo do 1º de maio, sendo surpreendido por uma reação organizada pelos movimentos operários do ABC e de Osasco, com o apoio dos estudantes.

Vandré era amigo do governador, que, inclusive, o esconderia mais tarde no próprio Palácio dos Bandeirantes, quando a repressão o perseguia. Mas, claro, preferia que essa ligação perigosa não se tornasse de domínio público. A mim e a alguns companheiros secundaristas, semanas depois, deu uma desculpa esfarrapada: “Estava bêbado. Não me lembro de nada do que fiz naquele dia”.

O certo é que, tido como artisticamente morto, Vandré enfrentou e venceu o maior desafio de sua carreira. Por conta disto, passou definitivamente à condição de mito, mas foi destruído como pessoa.

Questão de ordem: o tropicalismo se radicaliza

Para elevar ainda mais a temperatura, os baianos resolveram fazer uma correção de rumo no tropicalismo, que, ao ser lançado no ano anterior, parecia pregar o desengajamento dos jovens da política revolucionária, por que não?

O modelo 1968, entretanto, veio fortemente influenciado pela Primavera de Paris, o movimento neo-anarquista que levou a França às portas da revolução.

Aliás, foi um slogan das barricadas parisienses o ponto-de-partida da composição inscrita por Caetano Veloso no III FIC: “É proibido proibir”. O estribilho já veio pronto, mas os versos que ele criou foram corrosivos, geniais: “Me dê um beijo, meu amor/ Eles estão nos esperando/ Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar as prateleiras/ As estantes, as estátuas/ As vidraças, louças, livros, sim/ E eu digo sim/ Eu digo não ao não/ Eu digo, é proibido proibir”.

Gilberto Gil seguiu o mesmo diapasão em “Questão de Ordem”, enfocando situações vividas pelos contestadores agrupados nas comunidades alternativas da Europa: “Se eu ficar em casa/ Fico preparando/ Palavras-de-ordem/ Para os companheiros/ Que esperam nas ruas/ Pelo mundo inteiro/ Em nome do amor”.

A maior parte da esquerda brasileira, entretanto, via com desconfiança esse anarquismo de classe média do 1º mundo; e com franca hostilidade as roupas coloridas, os cabelos desgrenhados, as guitarras elétricas. Preferia os ritmos nativos, do samba carioca à riqueza musical nordestina; e o visual bem comportado, com os intérpretes se apresentando discretamente para não atrapalharem a compreensão da mensagem que os versos transmitiam. Era esta a tendência majoritária na eliminatória paulista, que teve lugar no Tuca.

Ao final, quando da execução das cinco escolhidas para a final no Rio de Janeiro, Caetano Veloso, que já estava indignado com a não-classificação da música de Gil, explodiu de vez diante das ensurdecedoras vaias que o impediam de reapresentar adequadamente “É Proibido Proibir”. E fez o discurso célebre, que foi lançado até em disco:

– Mas, é isto que é a juventude que diz que quer tomar o poder? É a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote, o inimigo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada! (...) Nós tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair delas. Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos!

Injustiças de festival e sabiá intemporal


A finalíssima, no Maracanãzinho, iniciada no sábado (28 de setembro) e seguindo pela madrugada de domingo adentro, apresentou algumas músicas de qualidade superior. Como “O Sonho”, estréia daquele que seria um dos maiores nomes da MPB na década seguinte. O Jornal da Tarde se referiria ao ”menino Egberto Gismonti” como “um talento”, destacando a letra de “O Sonho” como a melhor dentre as inscritas por compositores que não atuavam em São Paulo, além da “muito boa harmonia e um ótimo arranjo”.

Os Mutantes compareceram com um trabalho de qualidade e impacto, “O Caminhante Noturno”, um dos ápices do seu início de carreira. O sexto lugar não lhes fez justiça.

Toquinho e Paulo Vanzolini foram prejudicados pelo clima de festival, com platéia e júri tomados por emoções fortes, sem paciência para apreciar a sutileza e cristalina beleza de “Na Boca da Noite” (“Cheguei na boca da noite, parti de madrugada/ Eu não disse que ficava nem você perguntou nada/ Na hora que eu ia indo, dormia tão descansada/ Respiração tão macia, morena nem parecia/ Que a fronha estava molhada”).

Vista retrospectivamente, a sua classificação em oitavo lugar, atrás de “Andança” (Danilo Caymmi e Edmundo Souto, 3º), “Passacalha” (Edino Krieger, 4º), “Dia da Vitória” (Marcos e Paulo Sérgio Valle, 5º) e “Dança da Rosa” (Maranhão, 7º) nos dá um testemunho eloqüente sobre a incompetência do júri mais vaiado da história dos festivais.

Outras injustiçadas: “Canção do Amor Armado”, concepção grandiosa de Sérgio Ricardo, relegada a um irrisório nono lugar; “Oxalá”, ótima elaboração de uma história de capoeiristas, de autoria de Théo de Barros; e “América, América”, épico com que César Roldão Vieira reverenciou a figura mítica de Che Guevara.

“Sabiá” é um capítulo à parte. Trata-se de uma música intemporal, como quase tudo que Chico Buarque fez naquele período conturbado. Não que “Carolina”, “Bom Tempo”, “Bem-Vinda” e que tais fossem desprezíveis, longe disto. Mas, com seu romantismo óbvio, sensibilizavam o público alheio à efervescência política de então e a toda a evolução da MPB nos anos 60.

Serviam de contraponto a uma realidade explosiva (críticos reacionários chegavam a apontar Chico como alternativa aos engajados e aos tropicalistas). Tanto nas idéias como na forma, eram músicas velhas – embora assinadas por um talento superior.

Não sem motivo, Chico Buarque se penitenciaria mais tarde, com a autocrítica “Agora Falando Sério” (“Agora falando sério/ Eu queria não mentir/ Não queria enganar/ Driblar, iludir/ Tanto desencanto/ E você que está me ouvindo/ Quer saber o que está havendo/ Com as flores do meu quintal?/ O amor-perfeito, traindo/ A sempre-viva, morrendo/ E a rosa, cheirando mal”).

Último ato: público indignado, júri pressionado

“Sabiá”, de Tom Jobim e Chico, na interpretação de Cynara e Cybele, foi a surpreendente vencedora. O grande repórter Walter Silva, que esqueceu um gravador ligado na sala de deliberação, revelou depois na Folha da Tarde que o presidente do júri, Donatelo Grieco, pressionou os demais jurados, advertindo-os de que os militares não aceitariam a vitória de “músicas que fazem propaganda da guerrilha”, como “Caminhando” e “América, América”.

Quando a preferida do público foi anunciada em segundo lugar, o Maracanãzinho explodiu numa monumental vaia (a maior da história dos festivais: 10 minutos), entremeada de gritos de “Vandré!”, “Vandré!”. Tom depois comentou com Chico, que escapou da saia justa por estar em viagem pela Europa: "Foi como se o Corcovado tivesse caído sobre mim".

Havia motivo para a indignação da platéia. Reprimindo uma manifestação de rua, soldados haviam submetido estudantes a terríveis humilhações (chegaram a urinar sobre os jovens rendidos e a bolinar as moças). Isto despertou indignação generalizada na cordialíssima cidade maravilhosa. O FIC aconteceu logo depois e os cariocas adotaram "Caminhando" como desagravo. Vandré teve muito mais torcida lá do que em São Paulo.

Por mais que tentasse, ele não conseguiu convencer o público a respeitar Chico, Tom e as duas meninas do Quarteto em Cy, direcionando sua ira apenas contra o "júri que ali está". E, com clarividência, proferiu a frase célebre: “A vida não se resume em festivais”. Só não adivinhou que seria uma das primeiras vítimas da vida pós-festivais, quando os holofotes da arte não conseguiriam mais espantar as trevas.

Em alguns bairros da Zona Sul, as pessoas saíram às janelas quando Vandré bisava a “Caminhando” e cantaram junto, a plenos pulmões, descobrindo uma comunhão cimentada pela dor e revolta – que tão cedo não se repetiria.

20.8.08

OLIMPÍADAS NO INFERNO PAMONHA

Celso Lungaretti (*)

Uma definição antológica do grande jornalista e escritor Paulo Francis foi a que deu para o capitalismo pós-industrial: inferno pamonha.

Além da desigualdade, das injustiças e do desperdício criminoso de recursos e riquezas que deveriam beneficiar a todos os seres humanos, temos de suportar este mico adicional: a nivelação cultural por baixo, bem por baixo, sob a influência mesmerizante da comunicação de massa.

Outro talento extraordinário, o cronista, escritor e compositor Sérgio Porto (AKA Stanislaw Ponte Preta), apropriadamente apelidou a TV de “máquina de fazer doido”. Perfeito.

Nas últimas duas semanas, os doidos têm discutido como nunca as Olimpíadas. Gente que ignorava a própria existência do atletismo agora deita falação apaixonada a respeito dos mais recentes fiascos dos atletas nacionais. Amarelaram ou não?

O complexo de vira-latas voltou com tudo: os brasileiros sentem imensa carência de qualquer espécie de afirmação. Se ganhar medalha de ouro em cuspe à distância, o escarrador-mor se tornará herói nacional durante alguns dias, com direito a desfile em carro aberto nas grandes capitais. E, na semana seguinte, ninguém lembrará sequer seu nome, claro.

É o tempo dos heróis efêmeros e inconsistentes, em todas as áreas. À falta de coisa melhor, qualquer um pode ser cultuado, até um juiz que dá aos policiais os meios para grampearem os telefones da totalidade dos cidadãos brasileiros e depois deixa percebermos que considera tal tratamento adequado para os nativos de países que não pertencem à civilização...

Então, no domingo passado, ao ler a notícia sobre um médico sexagenário que passou 51 horas seguidas lutando pela vida de um paciente, ocorreu-me que isto ocorreu apenas e tão-somente por se tratar de um cirurgião cujo caráter foi moldado em outros tempos.

Tempos em que o promotor Hélio Bicudo enfrentava quase sozinho o terrível Esquadrão da Morte, indiferente às ameaças e intimidações dos assassinos que, depois de enriquecerem executando traficantes a soldo dos traficantes concorrentes, foram dar vazão ao seu sadismo na repressão política.

Tempos em que o já idoso Ulysses Guimarães atravessava altaneiro uma praça (tornada) de guerra, indiferente aos cães policiais com que o ameaçavam, para manter acesa a chama da redemocratização.

Tempos em que o arcebispo Paulo Evaristo Arns desafiava o Planalto e o Vaticano, para honrar a memória de um mártir brasileiro e ferir de morte o terrorismo de estado que grassava no País.

E -- para incluir os esportistas, pois é deles que estávamos falando -- tempos em que o supercraque Sócrates, num ato público a favor da Emenda Dante de Oliveira no Vale do Anhangabaú (SP), comprometeu-se diante de meio milhão de manifestantes a recusar a oferta estratosférica da Fiorentina caso as eleições diretas fossem restabelecidas no Brasil.

Só um motivo o levaria a abrir mão daquela fortuna: contribuir para a reconstrução da nossa democracia. Mas, algumas centenas de parlamentares canalhas não só nos negaram uma saída da ditadura pela porta da frente, como nos privaram do nosso grande cidadão futebolista.

Não tenho a mínima idéia de quem mereça ser considerado o principal atleta do século passado, em termos estritamente esportivos. Mas, o maior cidadão que o esporte projetou foi, indiscutivelmente, Muhammad Ali.

Despontou, aliás, como campeão olímpico. Será que algum da safra atual lhe chegará aos pés? Tomara. Duvido.

Depois, como profissional, revolucionou o boxe peso-pesado, até então monopolizado pelos grandalhões fortes e lentos. Magro, ágil, defendia-se com a movimentação nos ringues, dando-se ao luxo de manter a guarda baixa. Ao ser golpeado, recuava rapidamente ou se desviava, para contra-atacar de forma fulminante.

Quando tudo indicava que teria um longo reinado pela frente, foi convocado para a Guerra do Vietnã. Em nome das suas convicções políticas e religiosas (era muçulmano negro, seguidor de Malcoln X), recusou o papel que o Exército dos EUA reservara para ele: o de servir como relações-públicas de uma guerra imunda.

Os militares nunca cogitaram expô-lo ao fogo inimigo, claro. O que não os impediu de acusarem-no de covardia, numa vã tentativa de empanarem o brilho de sua atitude.

Teve seu título e seu direito de lutar cassado pela máfia do boxe. Durante os 3,5 anos que ficou fora dos ringues, não só perdeu milhões de dólares, como foi tecnicamente alcançado pelos novos pugilistas que vieram nas suas pegadas.

Quando, finalmente, deixaram-no ir atrás da coroa roubada, já não enfrentava ursos pesadões, mas adversários ágeis como Joe Frazier e demolidores como George Foreman.

O que não o impediu de protagonizar a maior luta de boxe de todos os tempos, ao derrotar inacreditavelmente o segundo, parecendo um velho Davi a prostrar o mais terrível dos Golias.

Nem de dar um dos maiores exemplos de esportividade nos ringues, durante a terceira luta que travou contra Frazier. No 14º assalto de uma batalha extenuante, teve, finalmente, o adversário à sua mercê. Frazier já não conseguia se defender. Ali poderia nocauteá-lo como bem entendesse.

Em vez disso, pediu insistentemente ao juiz a decretação do nocaute técnico. Não sendo atendido, ainda assim evitou dar o golpe definitivo. Deixou um Frazier grogue terminar o round em pé. Aí, o staff decidiu que ele não tinha condições de voltar para o assalto final e Ali venceu por abandono.

À saída, cruzando com o filho de Frazier, o gentleman Ali lhe disse: “seu pai foi o homem mais corajoso que já enfrentei”.

Espero estar vivo quando surgirem novos esportistas como Sócrates e Muhammad Ali... se é que o inferno pamonha os propiciará.

* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Seus artigos e textos direcionados a público amplo estão disponíveis em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/. E comenta diariamente os últimos acontecimentos em http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/

19.8.08

1968: O CÉU COMO BANDEIRA E A HISTÓRIA NA MÃO

Celso Lungaretti (*)

No início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, a polícia da ditadura atacou barbaramente um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiros um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas setembradas de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas para ficar. Com a certeza na frente, tentando tomar a História na mão [1], marcaram fortemente sua presença ao longo do ano.

Aprofundando um pouco a análise, podemos dizer que o final da década de 1960 marca a transição da sociedade rígida e patriarcal característica da fase da industrialização para o amoralismo da sociedade de consumo, em que tudo e todos devem estar disponíveis para o mercado.

Então, de certa forma, a contestação à autoridade de autoridades, reitores, sacerdotes, "doutores" disso e daquilo, dos luminares da sociedade em geral, convinha ao próprio capitalismo, que estava passando da fase das grandes individualidades para a da liderança participativa. O foco passaria a ser o consumidor, o cidadão comum, em lugar do grande homem, a personificação da elite.

Respirava-se anti-autoritarismo. As artes passavam por um momento de ousadias e experimentalismo no mundo inteiro, a imprensa se modernizava a olhos vistos, a liberalização de costumes e a liberação sexual entravam com força total.O movimento estudantil, estimulado pelos ventos de mudança, foi fundo na tarefa de derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, as vidraças [2].

E, no hiato entre a etapa capitalista que terminava e a que ia começar, muitos jovens sonharam com algo maior: uma sociedade sem classes, em que não existisse a exploração do homem pelo homem e na qual a economia se voltasse para a satisfação das necessidades humanas em vez de ser regida pela ganância. Um ideal simbolizado por Che Guevara, o último revolucionário internacionalista de dimensões míticas, com seu corpo cheio de estrelas e tendo el cielo como bandera [3].

Mas, a repressão brutal desencadeada pela ditadura, principalmente após a assinatura do AI-5, inviabilizou a mudança maior que muitos pretendiam. Então, sobre a terra arrasada, o que floresceu foi mesmo a sociedade de consumo.

A classe média, eufórica com o milagre brasileiro, tratou é de enriquecer. E a esquerda estava tão debilitada pela perda de seus melhores quadros que pouco pôde fazer contra a conjugação de boom econômico e terrorismo de estado.

O ME de 1968 foi, portanto, resultado de circunstâncias especiais e únicas. Daí não poder ser comparado com (como muitos fazem, para depreciar) o de hoje, quando os jovens, ademais, têm de esforçar-se no limite de suas forças para começarem bem uma carreira, o que acaba fazendo-os desinteressarem-se por quase todo o resto.

COMPETIÇÃO OBSESSIVA

Essa própria dificuldade insana que encontram para afirmar-se profissionalmente deveria levá-los a refletir sobre as distorções da sociedade atual. A competição obsessiva que aborta talentos e condena tanta gente a não desenvolver seu potencial é um dos horrores do capitalismo globalizado, em que há sempre mais postulantes do que vagas no mercado.

Talvez seja, aliás, este o momento em que os estudantes começam a se indagar sobre a validade de se continuar nesse funil perverso, passando por cima dos despojos dos que tombarem no caminho.

Da mesma forma que as setembradas de 40 anos atrás, a onda de ocupações de reitorias iniciada no ano passado é um indício de que o movimento estudantil brasileiro pode renascer.

E há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não agüenta viver indefinidamente sem esperança, solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se viver sob o neoliberalismo. Algo tem de mudar – e essa mudança poderá suceder a partir de agora.

Lembrando o Caetano dos bons tempos: por que não? [4]

Lembrando o Vandré dos bons tempos: quem sabe faz a hora, não espera acontecer [5].

Lembrando o Raul Seixas dos bons tempos: a gente ainda nem começou [6].

* Celso Lungaretti, jornalista e escritor, participava do movimento secundarista paulistano em 1968.

[1] Geraldo Vandré, "Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores"
[2] Caetano Veloso, "É Proibido Proibir"
[3] Gil, Capinan e Torquato, "Soy Loco Por Ti, América"
[4] Caetano Veloso, "Alegria, Alegria"
[5] Geraldo Vandré, "Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores"
[6] Raul Seixas, "Cachorro Urubu"

11.8.08

UMA PROPOSTA PARA O ACERTO DAS CONTAS DO PASSADO

Em 1979, as altas autoridades de uma ditadura negociaram com suas vítimas uma anistia recíproca que não passou da imposição da vontade dos vencedores sobre os vencidos: o preço da libertação de presos políticos e da permissão para que exilados voltassem a salvo de represálias foi o perdão eterno das atrocidades cometidas pelos agentes do Estado e seus cúmplices.

A barganha espúria teve a conseqüência de manter o passado insepulto: há quase três décadas seus fantasmas teimam em assombrar a Nação brasileira.

Os remanescentes daqueles embates têm vindo constantemente a público para, uns, exigirem a justiça que lhes foi sonegada no momento certo, qual seja, o da redemocratização do País; e os outros, por falta de argumentos, para atirarem sobre as vítimas as culpas que eram exclusivas dos algozes, numa tentativa de justificar o injustificável.

Para a grande maioria dos cidadãos, isso tudo é tão remoto quanto o movimento constitucionalista de 1932 ou a participação da Força Expedicionária Brasileira na II Guerra Mundial. Há desafios, carências e injustiças demais no presente para que as mazelas distantes sensibilizem os que vieram depois.

Então, o tiroteio retórico decorrente da audiência pública que o ministro da Justiça promoveu para discutir a punição de torturadores, bem como as manifestações de apoio ou repúdio ao acerto das contas do passado, mobilizam intensamente alguns milhares de brasileiros, enquanto os muitos milhões se mantêm distantes, ou por não entenderem o que realmente está sendo debatido, ou por não lhe atribuírem importância.

O Governo Federal e o Congresso Nacional, a quem caberia oferecer alguma solução para o problema, estão igualmente divididos. Há evidente temor de que a radicalização possa comprometer a sempre frágil democracia brasileira, criando condições para a volta do totalitarismo que assolou o País por 36 anos no século passado.

Nestas condições, é irrealista a insistência em levar alguns torturadores à prisão, para o cumprimento de penas indiscutivelmente merecidas. Por alguns motivos simples:

· se a punição de notórios carrascos já esbarra em tanta resistência, mesmo tendo cometido crimes contra a humanidade, o que dizer da punição dos mandantes, sempre os maiores culpados? É inimaginável que se consiga colocar nos bancos dos réus os altos comandantes militares que arrancaram a coleira desses pittbuls e apontaram-lhes os alvos, bem como os que a eles se acumpliciaram na instalação do arbítrio mais bestial (caso dos signatários do AI-5);

· pinçar alguns bodes expiatórios para purgarem as culpas de toda uma cadeia de comando (desde os generais-ditadores até os mais ínfimos cabos-da-guarda, todos têm sua parcela de responsabilidade nas atrocidades cometidas) será apenas tentar corrigir uma injustiça com outra injustiça, além de ferir o princípio da igualdade perante a lei;

· a idade avançada dos réus e os infinitos recursos protelatórios da Justiça brasileira permitem antecipar que pouquíssimos (talvez nenhum) chegarão vivos ao cumprimento das penas.

Então, é hora de pensarmos numa alternativa, em vez de continuarmos patinando sem sair do lugar, com o risco de causarmos estrago ainda maior.

Num Brasil cada vez mais inclinado ao rancor e a novas formas de autoritarismo, a esquerda comete um grave erro ao associar sua imagem à demanda por punições, aliando-se a policiais, procuradores, promotores e juízes, como se cabeças cortadas sanassem problemas estruturais. Esquece, ademais, que quem tem compulsão por castigos e humilhações públicas, na hora da decisão, tende quase sempre para o outro lado.

Os melhores seres humanos querem esperanças, não vingança; soluções reais, não catarse; humanidade, não beligerância. A esquerda precisa voltar a ter um ideário positivo, encarnando, para o cidadão comum, a promessa de um futuro melhor; e não revolver exaustivamente o sangue e a lama, concorrendo também para o clima negativo que faz a maioria concluir que é inútil lutar pelo bem comum e mais sensato zelar pelos próprios interesses.

O que importa mais, afinal, para aqueles cujo sacrifício foi o componente heróico e trágico da luta pela redemocratização do Brasil? O principal, penso, é consolidar-se a conquista de 1985, no sentido de que o totalitarismo seja mantido, doravante, no lugar a que pertence: a lixeira da História.

Daí as propostas abaixo alinhavadas, que me parecem as mais viáveis para passarmos a limpo o passado sem causarmos comoções no presente nem legarmos maus exemplos para o futuro:

· a revogação da Lei da Anistia de 1979, por ser juridicamente aberrante e moralmente inaceitável a igualação das vítimas a seus algozes;

· o reconhecimento oficial, por parte do Estado brasileiro, de que houve usurpação do poder em 1964, tendo os governos ilegítimos que se sucederam até 1985 cometido crimes generalizados e de extrema gravidade;

· que, portanto, todos aqueles que ordenaram, autorizaram, cometeram, concorreram para ou foram coniventes com esses crimes, são criminosos aos olhos da História e da Nação brasileira;

· que, não tendo tais criminosos sido punidos no momento apropriado por omissão do Estado, este, reconhecendo sua incúria e priorizando a pacificação nacional, conceda-lhes anistia de suas responsabilidades criminais; e

· que os cidadãos brasileiros acusados de “subversão” e “terrorismo” com base em inquéritos contaminados pela prática generalizada da tortura e condenados por tribunais militares que aplicavam leis de exceção, passem a ser considerados, para todos os efeitos, inocentes dos crimes que lhes foram imputados, pois exerciam o legítimo direito de resistência à tirania.

Para desarmarmos uma mina que, enferrujada ou não, ainda ameaça explodir-nos na cara, compensaria deixarmos que uns velhos torturadores morressem fora dos cárceres onde mereceriam estar – torcendo para que eles fossem atormentados, até o fim dos seus dias, pelo horror dos atos que praticaram.

E que nosso legado à posteridade fosse esse repúdio inequívoco que o Estado brasileiro teria dado à quebra da normalidade constitucional e ao festival de horrores dela decorrente, só deixando de punir exemplarmente seus responsáveis por haver demorado a amadurecer o entendimento sobre como enquadrar tais episódios.

O que, evidentemente, não beneficiaria os que tentassem reincidir: o paradigma estaria estabelecido, funcionando, a partir de então, como inibidor do golpismo e do terrorismo de estado.

4.8.08

O ACERTO DAS CONTAS DO PASSADO

Celso Lungaretti (*)

O mérito do audiência pública promovida no último dia 31 pelo Ministério da Justiça foi abrir o debate sobre a punição dos responsáveis pelas atrocidades cometidas na última ditadura.

Como sempre, há gente demais falando coisas demais ao mesmo tempo, o que acaba confundindo o cidadão comum. Vamos sistematizar a discussão:

· conspiradores militares e civis deram um golpe de estado contra o governo legítimo do presidente João Goulart em 1964, usurpando o poder e submetendo o Legislativo e o Judiciário à vontade do Executivo;

· a ditadura de 1964/85 foi responsável por arbitrariedades, truculência, torturas e assassinatos desde o início, mas em escala bem menor no período de 1964/67, até por não ter enfrentado, de imediato, uma resistência mais efetiva por parte da esquerda e dos democratas;

· a partir de 1968, quando ressurgem os movimentos de massa, a escalada repressiva foi se acentuando cada vez mais, com a generalização das torturas e o aumento dos casos de assassinato (repressão “oficial”), além das intimidações e atentados cometidos impunemente pelas organizações para-militares de extrema-direita (repressão “oficiosa”);

· em 1968, umas poucas dezenas de militantes de esquerda começaram a confrontar a ditadura por meio da luta armada, assaltando bancos, lojas de armas e pedreiras, cometendo atentados com explosivos, etc.;

· a assinatura do AI-5, em dezembro de 1968, radicalizou ao máximo o regime de exceção, concedendo ao aparato repressivo poderes ilimitados;

· com o País submetido ao terrorismo de estado, os movimentos de massas e outras formas de resistência pacífica se tornaram suicidas (para os que teimavam em continuar atuando de peito aberto), ou inócuas (caso, p. ex., do abandono de panfletos nos banheiros de locais de trabalho, escolas e casas de espetáculo);

· foi quando a luta armada passou para o primeiro plano na resistência à ditadura, com os partidos e organizações guerrilheiros recebendo a adesão de um considerável número de cidadãos antes dedicados aos movimentos de massa;

· ao final de 1970 a guerrilha já estava militar e politicamente derrotada, passando então a repressão a exterminar sistematicamente os últimos combatentes, inclusive prendendo-os com vida, levando-os a centros clandestinos de tortura, executando-os depois de arrancar-lhes as informações que possuíam (ou de concluírem que nada falariam) e dando sumiço em seus restos mortais;

· a Lei da Anistia de 1979, promulgada ainda sob regime de exceção, constituiu-se numa imposição dos vencedores aos vencidos, já que a contrapartida da libertação de presos políticos e da permissão de volta dos exilados foi a colocação das barbaridades praticadas pelos agentes do estado fora do alcance da Justiça.

Este é o tabuleiro. Vejamos, agora, os movimentos das peças.

A esquerda e uma ala do Governo Lula querem o levantamento do embargo às punições de torturadores. Mas, ainda não sabem exatamente como proceder: revogando ou contornando a anistia de 1979.

O ministro da Justiça Tarso Genro sustenta que tal lei cobriu apenas as práticas policiais legalizadas; quem torturou e executou resistentes, teria extrapolado os poderes que lhe foram concedidos pela própria legislação de exceção, cometendo crimes comuns pelos quais deve responder individualmente.

É uma tese conveniente, mas falaciosa. Evidentemente, o AI-5 não iria ao cúmulo de consignar que “ficam autorizados a tortura e o assassinato de subversivos”, mas era isto que se lia nas entrelinhas, começando pela suspensão dos habeas-corpus para os ditos “crimes políticos”.

Têm razão os militares que alegam ter cumprido ordens. Toda a cadeia de comando, desde o presidente da República até o mais ínfimo cabo da guarda, compactou com as práticas hediondas e com o extermínio de resistentes.

O contra-ataque dos militares da ativa e (principalmente) da reserva que, por terem cometido, endossado ou se omitido face às atrocidades, esforçam-se para mantê-las impunes, será óbvio: acusar de crimes comuns os ex-guerrilheiros, principalmente os que hoje integram o Governo Lula. É o que os sites de extrema-direita já vêm fazendo há tempos.

Então, se houver real empenho oficial no sentido de que o Brasil siga os passos da Argentina, Chile e Uruguai, de nada vai adiantar a tentativa de contornar a Lei da Anistia, pois acabaremos desembocando na mesma situação que se quer evitar. Melhor adotarmos logo a solução mais apropriada e digna: revogá-la.

É claro que tal decisão não poderá ser tomada pelos ministros da Justiça e dos Direitos Humanos, enquanto o da Defesa aglutina seus opositores. O Governo Lula, como um todo, deverá assumi-la e responder por ela.

REGRA, E NÃO EXCEÇÃO – E a quem, afinal, processar-se, se tais crimes eram regra e não exceção nos anos de chumbo?

Pinçar alguns torturadores-símbolo para pagarem por todos os criminosos têm o inconveniente maior de não passar realmente esse período a limpo. E o menor, mas não desprezível, de dar aos ditos cujos um poderoso argumento jurídico: o de estarem servindo como bodes expiatórios de algo que se constituiu, na verdade, numa política de estado. Será mais ou menos esta, aliás, a linha de defesa de Brilhante Ustra nas ações a que já está respondendo na Justiça Civil.

Aqui também a melhor opção é agirmos corretamente, como fizeram os países sul-americanos mais adiantados nesse acerto das contas do passado: levarmos aos tribunais não só os executores, mas também os mandantes.

Os ditadores do período já estão todos mortos, mas restam, seguramente, altos comandantes militares que, por decisão ou omissão, respaldaram a repressão bestial.

E não se pode esquecer que, se um Ustra ou um Curió são responsáveis respectivos pelos crimes cometidos num Estado e num palco de luta, os signatários do Ato Institucional nº 5 deram sinal verde para a totalidade dos crimes perpetrados em todo o território nacional, tendo responsabilidade imensa pelas atrocidades do período.

Quanto aos ex-guerrilheiros, é justo e praticamente inevitável que percam a proteção automática da Lei da Anistia. Mas, já não seria sem tempo uma definição inequívoca do Estado brasileiro acerca daqueles que exerceram, em nosso país, o direito milenar de resistência à tirania, travando uma luta heróica, em terrível desigualdade de forças.

A extrema-direita pretende, p. ex., que os assaltos a bancos e seqüestros de diplomatas, plenamente justificáveis numa luta de resistência (para prover os clandestinos dos recursos que não poderiam obter por vias legais e sem os quais seriam logo aniquilados, no primeiro caso; e para salvar os companheiros presos das torturas e de possíveis execuções, no segundo) sejam tipificados como crimes comuns. Isto deve ser enfatica e definitivamente rechaçado.

Quanto aos que incorreram em excessos inadmissíveis, como demonstrações gratuitas de força, devem, sim, responder por seus atos.

Mas, como os Inquéritos Policiais-Militares do período foram contaminados pela prática generalizada da tortura e as auditorias militares não passavam de tribunais de exceção aplicando uma legislação de exceção, todo esse acervo autoritário, à luz do Direito civilizado, só cabe num lugar: a lixeira da História.

Os acusados desses excessos têm o direito de se defenderem segundo as regras de uma democracia, com os processos começando do zero, pois nada do que foi feito durante a ditadura é juridicamente aceitável.

E, claro, as penas que quase todos já cumpriram terão de ser computadas.

O mais provável é que, passando isto também a limpo, só alguns gatos pingados sejam encarcerados, e por pouco tempo. Já os ganhos moral e político serão incomensuráveis.

Na Nova República, muito se falou em passar o Brasil a limpo, mas faltou vontade política (e – por que não dizer? – coragem) para tanto.

Temos agora uma nova oportunidade de fechar com dignidade essa página trágica de nossa História, para podermos seguir adiante sem sermos a cada momento assombrados pelos fantasmas do passado.

Mas, só a aproveitaremos se colocarmos nosso senso de Justiça acima dos receios, interesses, conveniências e cálculos mesquinhos.

* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista, escritor e ex-preso político. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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