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28.6.07

PROPAGANDA ENGANOSA E PREGAÇÕES GOLPISTAS NA WEB

Celso Lungaretti
Colaborou: Ismar C. de Souza

Eis duas maneiras totalmente distintas de relatar a morte de um policial durante o assalto simultâneo a dois bancos por parte da Vanguarda Popular Revolucionária:

“Na enésima hora Lamarca resolve participar, temeroso do que poderia ocorrer com tantos calouros estreando de uma só vez. Estaciona o carro e fica bebendo café num bar, a 50 metros de distância dos bancos, com seu .38 cano longo de competição guardado na bolsa capanga.

“Um transeunte percebe o que está acontecendo e alerta um guarda de trânsito. Inexperiente, o policial saca a arma e vai para a porta do banco, pronto para atirar no primeiro assaltante que sair.

“Lamarca retira o revólver da bolsa e atira daquela distância mesmo, pois não tem tempo para posicionar-se melhor. Pensa ter errado o primeiro tiro e dispara novamente. Crava uma bala na testa e outra na nuca do guarda.

“Depois, joga o revólver no carro e pega um fuzil. Com uma rajada para o alto, pára o trânsito e facilita a fuga dos companheiros. E, mandando os motoristas continuarem imóveis, vai calmamente até seu carro e dá a partida.” (Celso Lungaretti, “Náufrago da Utopia”, Geração Editorial, 2005)

“Na tarde de 09 de maio, Lamarca comandou o assalto simultâneo aos bancos Federal Itaú Sul-Americano e Mercantil de São Paulo, na Rua Piratininga, bairro da Moóca, cujo gerente, Norberto Draconetti, foi esfaqueado e o guarda-civil, Orlando Pinto Saraiva, morto com dois tiros, um na nuca e outro na testa, disparados por Lamarca, que se encontrava escondido atrás de uma banca de jornais. No final da ação, disparou uma rajada de metralhadora para o ar, como a marcar, ruidosa e pomposamente, o seu primeiro assalto a banco e o seu primeiro assassinato.” (site Terrorismo Nunca Mais, “Lamarca: a Trajetória de um Desertor”, http://www.ternuma.com.br/lamarca.htm ).

Tal acontecimento foi notícia de primeira página nos jornais de todo o País em 1969. No entanto, durante a recente polêmica sobre a anistia do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca, muitos veículos da grande imprensa, desconsiderando a informação correta facilmente encontrável em seus próprios arquivos, encamparam a insinuação do Ternuma, que omite o fato de terem se tratado de dois disparos de enorme distância.

A impressão que o texto capcioso do site de extrema-direita transmite é a de que Lamarca sai de trás de uma banca de jornal e fulmina o policial com dois tiros à queima-roupa. E a mídia acaba de embarcar nessa canoa furada: a menção ao “tiro na nuca” foi generalizada; a referência ao “tiro de longe”, praticamente inexistente.

Curioso, recorri aos sites de busca, atrás das fontes que induziram redatores e editorialistas ao erro ou lhes deram inspiração para agirem com má fé. Não precisei procurar muito. Eram, evidentemente, os Ternuma, Usina de Letras, Mídia Sem Máscara e A Verdade Sufocada da vida, que colocaram no ar um sem-número de textos protestando contra o que apresentaram como uma afronta do Governo Federal aos militares, convenientemente omitindo que tanto a anistia quanto a promoção póstuma de Lamarca a coronel já haviam sido decididas pela Justiça.

A propaganda enganosa chegou ao ápice no texto “Atentado ao QG do II Exército” ( http://www.ternuma.com.br/qg-2exer.htm ), no qual o Ternuma faz uma comparação entre as trajetórias do recruta que morreu nessa ação da VPR e Lamarca, com toque melodramáticos do tipo “o destino dos dois vai se cruzar tragicamente”.

Para sustentar esse enredo folhetinesco, não hesita em mudar a cronologia dos acontecimentos. Logo na primeira linha, diz que “em 1969, o jovem Mário Kosel Filho, conhecido em sua casa como ‘Kuka’, é convocado para servir à Pátria e defendê-la”. Só se for o fantasma do pobre Kuka, já que o próprio morrera em junho de 1968!

Além disto, o boato de que tal atentado teria sido orquestrado por Lamarca, trombeteado até hoje pela direita troglodita, não sobreviveu à reconstituição da história do período, que só pôde ser empreendida com metodologia científica depois do fim da ditadura militar, quando provas e depoimentos ficaram, enfim, disponíveis.

Já se sabe que Lamarca, então ainda servindo como capitão no 4º RI, só passou a interessar-se pela VPR ao tomar conhecimento de que fora autora do roubo de armas de um hospital militar, quatro dias antes do episódio do QG.

Foi quando ele resolveu procurar contato com a VPR. Supor que, em tão curto espaço de tempo, ele conseguisse alcançar uma organização clandestina, convencê-la de que não era um espião inimigo e ser admitido no planejamento de uma ação armada é simplesmente inadmissível para quem conhece as práticas e as regras de segurança dos grupos guerrilheiros.

Lamarca ainda passaria meses indeciso entre a VPR e a ALN, só optando pela primeira no final do ano. E seu ingresso no Comando da VPR aconteceria em abril de 1969. Então, as decisões relativas àquela ação do QG devem, isto sim, ser imputadas aos comandantes da VPR em meados de 1968, principalmente o também falecido Onofre Pinto. Mas, para quem continua até hoje obcecado em satanizar Lamarca, o que importa a verdade histórica?

Aliás, há alguns anos tentei fazer o Ternuma corrigir uma dessas fantasias tendenciosas que coloca no ar. No artigo “O Fracassado Seqüestro do Cônsul dos EUA” ( http://www.ternuma.com.br/consusa.htm ), um tal F. Dumont afirma que, na iminência de seqüestrar o cônsul Curtis Carly Cutter, a VPR teria me incumbido de, antecipadamente, redigir um comunicado informando que o diplomata, interrogado pelos militantes, admitira sua condição de agente da CIA e a cumplicidade da espionagem estadunidense com a repressão da ditadura. Ou seja, atribuíram-me a participação numa farsa inconcebível tanto para mim quanto para a VPR.

Depois de um grande esforço de memória, consegui me lembrar de que o Juarez Guimarães de Brito realmente me pedira para escrever o texto do panfleto a ser deixado no local de uma não especificada ação de seqüestro (que acabou não acontecendo), para explicar seu significado político: a troca do diplomata por companheiros que estavam sofrendo torturas atrozes e correndo o risco de serem executados. Mandei um e-mail pedindo que corrigissem aquele besteirol ou o tirassem do ar. Em vão, claro.

Então, é assim que os sites dos antigos torturadores e dos novos integralistas tratam os acontecimentos dos anos de chumbo, infestando a Internet com proselitismo na linha de Goebbels ("Uma mentira dita mil vezes torna-se uma verdade"): as informações extraídas dos famigerados Inquéritos Policiais-Militares e da documentação secreta cujo paradeiro o Governo Lula diz desconhecer são misturadas a falsidades e interpretadas da forma mais distorcida possível, para servir aos objetivos propagandísticos da extrema-direita no presente.

“Militares no poder já!” – E quais são esses objetivos?

O principal deles é a acumulação de forças para um novo golpe militar, pregado ostensivamente por entidades como o Grupo Guararapes e o Partido Vergonha na Cara.

O primeiro, que faz proselitismo no seio das Forças Armadas desde 1991, acaba de lançar esta sediciosa conclamação “Às Forças Armadas do Brasil”
( http://www.fortalweb.com.br/grupoguararapes/msg.asp?msg=239 ), amplamente divulgada nos sites, blogs e comunidades dos radicais de direita:

“Não temos governo. A anarquia inicia-se dentro do Gabinete da Presidência da República, onde o ocupante maior usa a mentira para se defender. Não é um estadista e sim um medíocre. Um fantoche nas mãos daqueles que desejam implantar um regime de força no País. O caso Lamarca, que fere o pundonor e a honra militar, é de sua inteira responsabilidade, como o chefe maior (...), e que acoberta seu Ministro da Justiça, um conhecido marxista, leninista e gransmicista. O Presidente Lula não merece mais o nosso respeito (...). Não o consideramos nosso chefe, pois ele não respeita nem cumpre a Lei, não merecendo nossa subordinação. O Grupo Guararapes, em defesa da honra da Nação brasileira, espera que as Forças Armadas revertam tal afronta. A honra ou a morte!”

Já o Partido Vergonha na Cara, cujos integrantes atuam principalmente no Orkut e usam narizes de palhaço em atos públicos, acaba de divulgar uma “Carta Aberta aos Militares” ( http://br.geocities.com/partidovergonhanacara/ ), pedindo que “as Forças Armadas cumpram o seu papel histórico e constitucional de proteger o Brasil de comunistas e assaltantes e criminosos que ameaçam o nosso país”. E termina seu manifesto com a exortação de “Militares no poder já!”.

Mais explícito, impossível.

O RESCALDO DO "CASO LAMARCA"

Celso Lungaretti (*)

O tiroteio esquerda/direita não só torna difícil para os brasileiros que vieram depois a compreensão da realidade dos anos de chumbo, como confunde os cidadãos que querem formar opinião com imparcialidade e acabam perdidos num cipoal de argumentos jurídicos, políticos e éticos, além de muita propaganda enganosa.

O pior é que tudo ficou mal resolvido com a Lei da Anistia de 1979 (aquela que passou uma borracha no passado, igualando vítimas e carrascos) e com a redemocratização tímida de 1985. Então, os cadáveres insepultos teimam em voltar à tona.

O ideal para se fazer justiça, na minha opinião, teria sido estabelecer-se que:

1) Havia um governo legítimo e foi derrubado por conspiradores em 1964;

2) Os cidadãos tinham o direito e até o dever de resistirem por todos os meios possíveis aos governos ilegítimos de 1964/1985 e às suas arbitrariedades;

3) Todos os cidadãos que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da normalidade constitucional fazem jus a reparações do Estado (incluindo os agentes de segurança atingidos pelos resistentes);

4) Não se podem punir todos os responsáveis pelo terrorismo de estado desencadeado no período, mas caberia a responsabilização penal dos generais-presidentes, dos signatários do AI-5, dos comandantes das Forças Armadas e dos centros de tortura, dos efetivos da "repressão clandestina" (Casa da Morte de Petrópolis, etc.) e dos grupos paramilitares de direita que realizavam atentados terroristas (Riocentro, etc.), bem como dos agentes de segurança responsáveis por execuções à sangue-frio (ou seja, aqueles que abateram resistentes rendidos e desarmados, como foi o caso do Lamarca);

5) Independentemente da reparação a que fazem jus os resistentes (ou seus herdeiros) por terem sido vítimas do arbítrio, aqueles que praticaram violência excessiva ou inútil deveriam ser também processados criminalmente. Uma coisa não exclui a outra.

Numa luta de resistência como a que foi travada no Brasil, era lícito assaltar bancos para sustentar os militantes clandestinos e seqüestrar diplomatas para trocá-los por presos políticos que estavam sofrendo torturas brutais e correndo risco de serem assassinados pelos algozes (como o foi o Bacuri).

Mas não, p. ex., jogar um carro com explosivos ladeira abaixo na direção de um quartel cujo comandante lançara um desafio público aos guerrilheiros. Isso foi responder a uma bravata com outra, ou seja, uma puerilidade inaceitável em revolucionários. Merecia, sim, punição.

No entanto, este pacote só faria sentido na saída da ditadura, em 1985. Agora, que a maioria dos personagens importantes morreu, ficou impraticável.

Dos resistentes aos quais se poderiam imputar excessos, se há sobreviventes, contam-se nos dedos das mãos. Foram alvos preferenciais da política de extermínio que a ditadura implementou no período 1971/73.

Dos torturadores, quem ainda pode receber a punição merecida (ainda que somente moral) é o Brilhante Ustra.

Seria edificante se alguém propusesse uma ação civil contra os signatários do AI-5 ainda vivos, como o Jarbas Passarinho e o Delfim Netto. Não para prendê-los, mas para deixar bem clara sua responsabilidade pelo festival de horrores e tragédias que eles coonestaram. Tanto quanto o Brilhante Ustra, merecem figurar nos livros de História com o estigma da infâmia.

E o programa da anistia federal deve ser levado a bom termo, pois se trata de um avanço no sentido da civilização, assim como o foram o julgamento dos criminosos de guerra em Nuremberg e as indenizações que a Alemanha pagou às vítimas do nazismo.

Mas, exatamente por isso, não pode relaxar seus critérios para propiciar jogadas promocionais. E muito menos para favorecer celebridades e pessoas com bons contatos em Brasília. Tais casos são em número bem menor do que a direita alega, não passam de algumas dezenas, mas um único já seria demais!

* jornalista, escritor e ex-preso político anistiado pelo Ministério da Justiça

18.6.07

O “CASO LAMARCA”: MUITO BARULHO POR NADA

Celso Lungaretti (*)

“A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu anistia política ao capitão Carlos Lamarca (...). A viúva de Lamarca, Maria Pavan Lamarca, receberá pensão relativa ao salário de general de brigada, que hoje corresponde a cerca de R$ 12 mil...”

Assim começa a nota distribuída pela assessoria de Imprensa do Ministério da Justiça na tarde do último dia 13, intitulada “Família de Lamarca é indenizada pela Comissão de Anistia”, que suscitou reações exacerbadas dos porta-vozes da extrema-direita na mídia, um festival de desinformação e parcialidade de veículos da grande imprensa e comemorações ingênuas dos defensores dos direitos humanos.

Depois, no olho do furacão, o novo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão Pires Jr., em carta à Folha de S. Paulo, esclareceu que:
· “quem reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Carlos Lamarca foi a Comissão de Mortos e Desaparecidos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos, em (...) 1996”;
· “quem primeiro reconheceu a condição de anistiado político a Lamarca, afastando a tese da deserção, foi a Justiça Federal de São Paulo, em decisão transitada em julgado e confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça”;
· “quem o promoveu a coronel foi a 7ª Vara Federal de São Paulo, em 2006”;
· “a Comissão de Anistia (...) não concedeu o pedido da viúva requerente, que solicitava a progressão para general-de-brigada”, “manteve apenas a decisão proferida anteriormente pela Justiça, concedendo o posto de coronel”.

Então, o que realmente fez a Comissão de Anistia? As únicas novidades foram:
· conceder a Lamarca o privilégio de que desfrutam todos os oficiais ao passarem à reserva, de receber pensão equivalente ao soldo da patente imediatamente superior;
· considerar Maria e seus filhos César e Cláudia também anistiados, concedendo a cada um deles uma indenização de R$ 100 mil, em parcela única.

Como a indenização aos outros três não provocou celeuma, importando mesmo é a decisão relativa ao ex-guerrilheiro (cuja beneficiária foi a viúva), salta aos olhos que a imprensa gastou muito papel com algo que já havia sido quase inteiramente definido em outras instâncias. Muito barulho por nada, enfim.

O capcioso release do MJ não deixou de dar uma pista para os jornalistas, no quarto parágrafo: “Lamarca já havia sido considerado anistiado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, considera que agora um ciclo está fechado”.

Mas, os repórteres passaram batido, acompanhando o tom triunfalista do abre. Com isto, fizeram exatamente o que deles esperava a Comissão de Anistia: dar destaque exagerado à sessão de reabertura dos trabalhos desse colegiado, a primeira sob a batuta de seu novo presidente e com o número de conselheiros ampliado para 20.

Também se tratou da primeira sessão realizada desde a posse, como ministro da Justiça, de Tarso Genro, que fez o pronunciamento inicial.

Então, para colocá-la sob os holofotes, nada melhor do que marcar o julgamento de um caso polêmico. Mesmo que passando por cima dos critérios estabelecidos pela própria Comissão de Anistia para a priorização dos processos a serem julgados e do direito de anistiandos que estão há anos e anos na fila, enquanto esse caso foi concluído em apenas sete meses.

O pior é que o mesmo artifício já havia sido usado quando da comemoração do 25º aniversário da Lei da Anistia, em 2004. Para garantir a esse colegiado um bom quinhão do espaço que a imprensa dedicaria à efeméride, foi, por coincidência, programado o julgamento do caso de Anita Leocádia Prestes, cujo processo teve tramitação ainda mais acelerada: três meses e meio.

A filha de Luiz Carlos Prestes se mostrou à altura do pai. Explicou à imprensa que só pedira à Comissão de Anistia que os anos de perseguições por ela sofridas fossem acrescentados ao tempo cumprido em sua carreira de professora, para que ela pudesse requerer aposentadoria; e que, como não solicitara a indenização de R$ 100 mil que lhe concederam nem se considerava dela merecedora (já que não fora presa ou torturada), doaria esse valor para caridade.

Cobertura tendenciosa – Pequenos truques promocionais e favorecimentos indevidos a algumas celebridades e amigos da corte arranham a credibilidade de um programa basicamente correto em seus fundamentos e procedimentos. São 29 mil processos já julgados e em apenas algumas dezenas se verificaram distorções. Mas, é tudo de que os neo-integralistas e os saudosistas da ditadura precisam para alimentar sua grita histérica e demagógica.

O pior é que a cobertura que a grande imprensa deu a este pífio “Caso Lamarca” pareceu provir diretamente dos sites de extrema-direita como o Terrorismo Nunca Mais. Caso da Folha de S. Paulo, que dedicou duas páginas de sua edição de 14/06 a uma reportagem que já começou errando no título: “Comissão de Anistia declara Lamarca coronel do Exército” (a Justiça é que o fizera, no ano passado).

Os textos da sucursal de Brasília e da redação qualificam cinco vezes Lamarca de “terrorista”, embora essa terminologia não seja pertinente para os resistentes que pegaram em armas contra a ditadura militar.

Em carta que foi publicada apenas no Folha On-Line, eu retruquei:

“...A utilização desse termo para designar, erronea e maliciosamente, os grupos de resistência à ditadura militar foi uma idéia dos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas e, hoje, é característica dos partidários da extrema-direita.
”...protesto contra o uso inadequado dessa terminologia no caso de um revolucionário que jamais quis provocar o caos, mas sim engajar as massas na luta contra o grupo militar que usurpou o poder em 1964.
”Lamarca jamais poderá ser equiparado aos narodniks do século 19 que atentavam contra o czar e seus ministros com bombas e tiros, nem aos Bin Ladens atuais. Se a Folha pretende qualificá-lo como 'terrorista', deveria também referir-se aos militares da ditadura como 'carrascos', 'déspotas', 'genocidas' ou 'tiranos'."

Em sua coluna dominical, o ombudsman Mário Magalhães apresentou uma justificativa bizarra: “Carlos Marighella, um dos líderes da luta armada, se dizia guerrilheiro e terrorista”. Como se o fato de o Marighella não perceber as diferenças entre ele próprio e Savinkov (o social-revolucionário russo que matou o tio do czar) determinasse a terminologia a ser utilizada pela Folha. Seria o caso de pedirmos ao jornal para adotar também os ideais de Marighella...

O ombudsman reconheceu, entretanto, outros erros, como o endosso à versão oficial (depois derrubada na Justiça) de que Iara Iavelberg, companheira de Lamarca, se suicidou. Mas, deixou passar um deslize sintomático: a afirmação de que “o guarda civil Orlando Pinto Saraiva foi morto com um tiro na nuca por Lamarca” quando da expropriação simultânea de dois bancos em maio/1969.

É exatamente assim, com ênfase no “tiro na nuca”, que tal acontecimento aparece na propaganda enganosa que a extrema-direita faz circular na Internet. Será que os redatores da Folha preferem aproveitar as informações encontradas nos sites de busca do que pesquisar nos arquivos do jornal?

O que se tenta, claro, é dar a impressão de que se tratou de uma execução à queima-roupa. Na verdade, Lamarca se encontrava a uns 40 metros de distância e, ao perceber que o policial se posicionava, com arma em punho, diante da porta pela qual sairiam os militantes da VPR, teve tempo apenas para dar dois disparos dificílimos, de onde estava. Só um atirador de elite como ele conseguiria acertar o alvo, salvando a vida de jovens secundaristas que haviam acabado de ingressar na luta armada. Foi, aliás, a partir daí que Lamarca se tornou um personagem em grande evidência no noticiário.

O editorial do dia seguinte, também muito infeliz, me obrigou a nova manifestação, que, desta vez, a Folha acolheu corretamente na edição escrita:

"...discordo da distinção que a Folha propôs (...) entre os militantes que foram torturados e/ou assassinados sob a custódia do Estado e os demais, só reconhecendo aos primeiros o direito a reparação. De imediato, por não levar em conta que muitos foram capturados, levados a centros clandestinos de tortura, supliciados e executados, sem detenção formal.

”Tal distinção só caberia se o Brasil não estivesse então submetido à ditadura e ao terrorismo de Estado.

”Quem, como Lamarca, ousou confrontar esse regime totalitário, nada mais fez do que exercer o direito de resistência à tirania. Então, não cabe recriminá-lo por assaltar bancos, seqüestrar embaixadores e matar agentes de segurança. Também durante a luta contra o nazi-fascismo foram descarrilados trens, explodidos quartéis, assaltados bancos e mortos policiais sem que a ninguém ocorra hoje vituperar os mártires e heróis da Resistência.

”É inexato, ainda, que todos os resistentes brasileiros objetivassem a instalação de uma ditadura socialista. Então, anda certo o Estado ao reconhecer como vítimas tantos quantos sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da normalidade constitucional em 1964, da qual decorreram todas as atrocidades e horrores subseqüentes.”

O ombudsman, justiça seja feita, restabeleceu a verdade quanto a outro trecho do malfadado editorial, no qual se afirmou que "a morte em combate (...) é risco natural para quem escolhe pegar em armas". Magalhães observou:

”Assim, a Folha bancou o relato do regime militar. Em 1996, a União concluiu que o guerrilheiro foi assassinado quando -- desnutrido, doente e exausto -- já não tinha condições de reagir. Não teria, portanto, havido combate algum, mas homicídio, em vez da prisão possível”.

“Facínora desertor”?! - Já O Estado de S. Paulo deu menos destaque ao assunto, mas seu editorial “Prêmio ao facínora desertor”, de 16/06, foi uma peça de propaganda de um dos lados envolvidos na polêmica e não, como deveria, uma reflexão eqüidistante. Começando pela ênfase dada à “deserção” de Lamarca, sem em nenhum momento apresentar o outro lado da questão: ele se engajou, na década de 1950, no Exército de um país democrático e se desligou, em 1969, da força repressiva de um estado totalitário. Quem estava mais errado, Lamarca ao desertar do Exército ou o Exército ao desertar da democracia?

Como não poderia deixar de ser, o Estadão, que reconhece e se orgulha de haver conspirado para a derrubada do presidente João Goulart, insiste na desmoralizada tese do contragolpe preventivo, atacando pessoas pelo que presume que elas fariam -- e omitindo que aquilo que a ditadura militar realmente fez foi muito pior do que quaisquer elocubrações imaginosas.

“Carlos Lamarca, Yara Iavelberg e seus companheiros militantes da Vanguarda Popular Revolucionária ou do MR-8 (...) queriam era derrubar uma ditadura para implantar outra, mais cruel e liberticida”, afirma o editorial/oráculo de um futuro que não houve. Como se isso justificasse as execuções de Lamarca, Yara e outros militantes que foram verdadeiramente abatidos como animais.

E, como vem se tornando uma triste rotina, o texto mais raivoso e panfletário foi o da Veja, que acusou Lamarca até de estar “a soldo de uma potência estrangeira”. Mas, aí já saímos do terreno jornalístico. E nem tampando o nariz uma pessoa decente consegue acompanhar essa revista por seus descaminhos atuais...

* Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político, foi companheiro de Carlos Lamarca na VPR.

15.6.07

RESPOSTA AO EDITORIAL DA FOLHA DE S. PAULO

Como companheiro de lutas que fui de Carlos Lamarca na Vanguarda Popular Revolucionária, peço à Folha de S. Paulo que cumpra o dever jornalístico de me dar espaço para expressar o "outro lado" em suas páginas -- e não, apenas, no Folha On-Line, de repercussão enormemente inferior, atingindo parcela ínfima do público que leu as reportagens de ontem e o editorial de hoje.

"O editorial 'O Caso Lamarca' (15/06/2007) já começa errando ao afirmar que, por conta da uma 'decisão' da Comissão de Anistia, a viúva de Lamarca terá direito a pensão equivalente ao soldo de general. Na verdade, a decisão final cabe ao ministro da Justiça, que pode acatar ou não a sugestão da Comissão de Anistia (já houve casos em que não a seguiu).

Pior ainda foi a distinção que a Folha propôs, entre os militantes que foram torturados e/ou assassinados sob a custõdia do Estado e os demais, só reconhecendo aos primeiros o direito à reparação do Estado. De imediato, por não levar em conta que dezenas de militantes foram capturados, levados a centros clandestinos de tortura, supliciados e executados, sem terem sido colocados formalmente sob a custódia do Estado.

E, em termos gerais, tal distinção só caberia se o Brasil não estivesse, no momento dos acontecimentos, submetido à ditadura e ao terrorismo de estado por parte de um bando armado que usurpou o poder em 1964 e violou de todas as formas os direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros: prendeu ao arrepio da Justiça, torturou, baniu, assassinou, deu sumiço em restos mortais, fechou o Congresso e assumiu suas funções, cassou mandatos legítimos, extinguiu entidades e partidos, cerceou a produção do conhecimento, censurou, permitiu a atuação impune de grupos paramilitares que atentavam contra pessoas e instituições, etc.

Os cidadãos brasileiros que ousaram confrontar esse regime totalitário, em condições de enorme desigualdade de forças, nada mais fizeram do que exercer o direito de resistência à tirania, que existe e é reconhecido há tanto tempo quanto a própria democracia, já que também remonta à Grécia antiga. Então, não cabe recriminá-los por assaltar bancos, seqüestrar embaixadores e matar agentes de segurança. Também durante a luta contra o nazi-fascismo foram descarrilados trens, explodidos quartéis, assaltados bancos e mortos policiais e traidores, sem que a ninguém ocorra hoje vituperar os mártires e heróis da Resistência.

Também não é verdade que todos os combatentes da resistência brasileira objetivassem a instalação de uma ditadura socialista no Brasil. Essa generalização provém dos saudosistas da ditadura, como Jarbas Passarinho e Carlos Alberto Brilhante Ustra, na vã tentativa de justificarem o injustificável.

Anda certo o Estado ao reconhecer como vítimas todos aqueles que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da normalidade constitucional em 1964, da qual decorreram todas as atrocidades e horrores dos anos seguintes.

Finalmente, Lamarca, eu e os demais militantes da VPR jamais fizemos opção alguma pelo terrorismo. Não pretendíamos criar o caos e impedir a classe dominante de governar, como os narodniks que caçavam o czar e seus ministros por toda a Rússia, ou, mais recentemente, Bin Laden explodindo torres gêmeas. Nossas ações de propaganda armada visavam engajar a população na luta contra a ditadura. O uso incorreto e malicioso do termo 'terrorista' não passou de um ardil goebbeliano dos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas para jogar a população contra os resistentes. Foi propaganda enganosa na época e continua sendo agora, quando é martelado dia e noite pelos porta-vozes da extrema-direita e seus sites obscurantistas."

Celso Lungaretti, 56, jornalista, escritor e ex-preso político anistiado pelo Ministério da Justiça

O RESCALDO DA OCUPAÇÃO

Celso Lungaretti (*)

As greves de estudantes, professores e funcionários de várias universidades e a ocupação da reitoria da USP vão chegando ao fim, da melhor maneira possível: sem mortos nem feridos e com a vitória de quem estava com a razão.

O governador paulista José Serra conseguiu minimizar as perdas, mesmo tendo cometido três erros crassos:
  • editar decretos extremamente questionáveis sem discuti-los previamente com a comunidade acadêmica (nem sequer com os reitores das universidades estaduais, que se submeteram à vontade palaciana, mas deixavam perceber seu desagrado);
  • estimular ou autorizar a reitora da USP a pedir à Justiça a reintegração de posse do prédio da reitoria;
  • e determinar ou permitir o “excesso de zelo” da PM contra os grevistas que pretendiam fazer uma manifestação de protesto pacífica diante do Palácio dos Bandeirantes.

Mas, redimiu-se parcialmente ao resistir ao canto-de-sereia da direita truculenta, que queria porque queria ver o sangue jorrar na Cidade Universitária. Permitir a entrada no campus dos brutamontes responsáveis pelo massacre do Carandiru teria um efeito simbólico devastador, trazendo logo à lembrança os tempos sombrios da ditadura.

Além disto, como os ocupantes da reitoria se declaravam dispostos a resistir, as conseqüências seriam imprevisíveis.

Entre a defesa de patrimônio público ou privado e a integridade física de seres humanos idealistas, não há nem o que pensar: coisas podem ser respostas, “mas, com gente é diferente” (como dizia o Vandré).

Serra também agiu bem ao recuar, corrigindo as impropriedades dos decretos polêmicos, com a desculpa de que atendia sugestões dos reitores.

Em suma, não saiu incólume do episódio, mas perdeu só os anéis, depois de ter estado bem próximo de ficar sem os dedos.

Já o balanço da cobertura jornalística é bem pior. Com honrosas exceções e tendo como destaque negativo a revista Veja (cada vez mais próxima do proselitismo e distante do jornalismo), a imprensa foi burguesa como nunca.

Tratou os estudantes como arruaceiros, baderneiros e vândalos, embora estes estivessem certos ao defender a autonomia universitária e tenham se organizado cuidadosamente para evitar danos às instalações.

Mancheteou que “partidos de ultra-esquerda controlam a invasão da USP”, levando os incautos a suporem que se tratariam de carbonários sinistros com os bolsos cheios de granadas -- e não, apenas, dos prosaicos PSOL e PSTU.

E defendeu incondicionalmente os decretos da discórdia, fazendo coro à versão governamental de que se limitavam a impor mais transparência na gestão dos recursos das universidades. Depois, ficou com a cara no chão quando o próprio Serra implicitamente deu razão às críticas dos estudantes e professores.

Da mesma forma, muitos antigos militantes da esquerda não fizeram jus às suas biografias.

Desde Serra, que nem parecia um ex-presidente da UNE, até os muitos catedráticos que agora defendem encarniçadamente suas prerrogativas como membros da torre de marfim, esquecendo os ideais que professavam em 1968.

Nada há a estranhar em que o torturador-símbolo do Brasil, Carlos Alberto Brilhante Ustra, afirme que “o jovem, inocente útil, é usado como bucha de canhão”; trata-se da mesma cantilena reacionária dos anos de chumbo (dos quais, espiritualmente, ele nunca saiu).

Mas, foi uma terrível decepção ver a receita sugerida pelo ex-guerrilheiro Fernando Gabeira para pôr fim à ocupação da reitoria: “um processo de negociação no qual, simultaneamente, se retiram as condições de sobrevivência da invasão”. E explicitou: “Tira a luz, a água, vai tornando a situação insustentável para os estudantes. E aumentando a negociação”.

Nem mesmo os agentes da repressão da ditadura agiram assim, ao descobrirem a localização do aparelho em que Gabeira e seus companheiros mantinham seqüestrado o embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick. Preferiram ceder, para não expor a vida do diplomata a riscos desnecessários.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

5.6.07

AOS QUE VIERAM DEPOIS DE NÓS

(carta aberta aos universitários que estão reerguendo o movimento estudantil, livremente inspirada na poesia “Aos Que Virão Depois de Nós”, de Bertold Brecht)

Jovens companheiros,

recebam o abraço de um náufrago da utopia de 1968, quando os melhores brasileiros, muitos deles tão novos como vocês, percorreram esses mesmos caminhos de idealismo e esperança, sem conseguirem levar a bom termo a jornada.

Eram tempos sem sol, em que só tinham testas sem rugas os indiferentes e só se davam ao luxo de rir aqueles que ainda não haviam recebido a terrível notícia.

Num país de tão gritante desigualdade social, eu e meus amigos chegávamos a ser tidos como privilegiados. E, tanto quanto a vocês, os reacionários empedernidos e os eternos conformistas nos diziam: “Come e bebe! Fica feliz por teres o que tens!”.

Da mesma forma que vocês agora, um dia percebemos que nada do que fazíamos nos dava o direito de comer quando tínhamos fome. Por acaso, estávamos sendo poupados – ao preço de silenciarmos sobre tanta injustiça.

E cada um de nós se perguntou: “Como é que eu posso comer e beber, se a comida que eu como, eu tiro a quem tem fome? Se o copo de água que eu bebo, faz falta a quem tem sede?”.

Escolhemos o caminho árduo dos que têm espírito solidário e senso de justiça.

Poderíamos, é claro, nos manter afastados dos problemas do mundo e sem medo passarmos o tempo que se tem para viver na terra. Mas, não conseguíamos agir assim. Viéramos para o convívio dos homens no tempo da revolta e nos revoltamos ao lado deles.

Foi uma luta desigual e trágica. Muitos daqueles com quem contávamos preferiram a “sabedoria” de seguir seu caminho sem violência, não satisfazendo seus melhores anseios, mas esquecendo-os. E se tornaram inacessíveis aos amigos que se encontravam necessitados.

No final, desesperados, trocávamos mais de refúgios do que de sapatos, pois só havia injustiça e não havia mais revolta.

Os que sobrevivemos, ainda amargamos a incompreensão dos que se puseram a falar sobre nossas fraquezas, sem pensarem nos tempos sem sol de que tiveram a sorte de escapar.

E assim transcorreram anos e décadas. Só nos restava confiar em que o ódio contra a vilania acabaria endurecendo novos rostos e que a cólera contra a injustiça um dia ainda faria outras vozes ficarem roucas.

A espera chegou ao fim. Saudamos esse movimento que vocês iniciaram e estão sustentando contra todas as incompreensões e calúnias, como o renascer da nossa utopia.

Nós, que tentamos e não conseguimos preparar o terreno para a amizade, temos agora a certeza de que a luta prosseguirá. E a esperança de que vocês vejam chegar o tempo em que o homem será, para sempre, amigo do homem.

CELSO LUNGARETTI
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