Quando Chico Buarque lançou a canção “Angélica”, não eram muitos os que sabiam ser Zuzu Angel “essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”.
A estréia do filme “Zuzu Angel” fez com que, três décadas depois, a saga da estilista que confrontou o regime militar se tornasse muito mais conhecida do que no momento dos acontecimentos e nos anos subseqüentes.
É uma história em quatro tempos:
* em 1971, no pior momento da ditadura, Stuart Angel, militante do MR-8, já muito debilitado pelas torturas, foi amarrado à traseira de um jipe da Aeronáutica e arrastado com a boca colada ao cano de descarga do veículo, o que ocasionou sua morte por asfixia e intoxicação por monóxido de carbono. O corpo foi atirado no mar;
* sua mãe, Zuzu Angel, denunciou incansavelmente o assassinato e a ocultação do cadáver de Stuart, até ser vítima de um acidente automobilístico extremamente suspeito, em 1976;
* Chico Buarque, amigo a quem ela escrevera uma carta levantando a possibilidade de ser também assassinada pelos militares, homenageou-a com a alusiva “Angélica”, lançada em 1981, quando o Brasil começava a desmontar a engrenagem repressiva dos “anos de chumbo”;
* agora, em 2006, em meio aos escândalos do Governo Lula, chegou às telas o tributo cinematográfico a Zuzu Angel.O formato do filme de Sérgio Rezende é convencional, bem ao gosto dos espectadores formados pelas novelas e minisséries de TV. Mas, o tema lhe garante deferência da crítica e aplauso dos bem pensantes. Afinal, o importante é mostrar às novas gerações quão horrível era viver debaixo das botas...
Há quem veja nesse tipo de cinema uma função catártica: ter existido uma Zuzu Angel nos lava a alma e tranqüiliza a consciência, desobrigando-nos de atuar sobre a realidade presente, igualmente opressiva, embora o uso desmedido e brutal da força tenha sido substituído por formas de controle mais sutis e impessoais.
Um jovem da atualidade poderá também ficar com a falsa impressão de que havia muitas mães brasileiras com o destemor de Zuzu. Na verdade, casos como esse foram bem raros entre nós, ao contrário da Argentina, com suas loucas da Praça de Maio.
E por que, afinal, o filme prefere destacar o episódio pouco comum de uma personalidade da alta costura que lutou contra o arbítrio apenas por ter sido pessoalmente atingida por ele, de preferência ao de milhares de brasileiros que lutaram contra o arbítrio por um ideal de justiça e solidariedade para com os explorados e oprimidos?
Ou, colocado de outra maneira: se o foco principal do filme fosse para a militância, prisão e morte de Stuart Angel, o filme teria os mesmos (vultosos) financiamentos e entraria num circuito igualmente amplo? Há dezenas de exemplos indicando que não. Como o recente “Araguaya, A Conspiração do Silêncio”, de Ronaldo Duque.
O fato é que uma parcela ínfima da população brasileira pegou em armas para enfrentar uma ditadura assassina, enquanto 80 milhões se dividiam entre preservar-se à espera de melhores tempos ou apoiar o regime em razão da uma bolha de consumo que se-lhes oferecia em troca da liberdade.
Apesar da enorme disparidade de forças, esses poucos milhares de resistentes equilibraram a luta em 1969, conseguiram a duras penas assestar alguns golpes certeiros em 1970 e foram massacrados nos três anos seguintes.
A esquerda que emergiu dessa hecatombe criticou acerbamente o “vanguardismo” da geração anterior e se lançou à construção de um partido de massas, que acabou desembocando em outra desilusão.Então, quando pessoas envolvidas com a esquerda atual são surpreendidas com dólares na cueca ou recebendo Land Rovers de mão beijada, nota-se uma tendência artística de buscar no passado heróico da resistência à ditadura um exemplo e um contraponto às delinqüências atuais. Sintomaticamente, uma das primeiras perguntas feitas a Sérgio Rezende, em debate sobre “Zuzu Angel” que teve lugar sábado passado no cine Belas Artes, foi sobre o porquê da passividade da juventude atual.
Mas, tudo permanece num confortável meio-termo. Tanto que, no filme, os militantes do MR-8 são mostrados como bem-intencionados mas imaturos, enquanto a personagem principal tem o bom senso de não se meter com essas quixotadas até que lhe matam o rebento (ótima mãe, péssima cidadã!). E até o cinema em que se realizou o debate, marco da cultura paulistana, hoje pertence a um banco...
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15.1.07
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