Para o cidadão comum, a intenção do Ministério do Planejamento de parcelar em dez anos o pagamento de indenizações a ex-presos políticos já aprovadas pelo Ministério da Justiça poderá parecer até razoável. Afinal, se faltam recursos para tantos programas essenciais, por que despender R$ 2 bilhões com os veteranos de uma guerra obscura? É o que a direita rancorosa trombeteia sem parar por meio de articulistas na imprensa, dos sites que mantém e de seus quadros que atuam intensamente nas comunidades de discussão política da Internet.
A questão está longe de ser tão simples como tentam fazer crer os defensores do arbítrio e as novas gerações de cuervos que eles estão criando. Como protagonista de uma luta pública pela anistia em 2004/2005, inclusive relatada no meu livro “Náufrago da Utopia”, tenho algumas considerações a fazer.
O coronel Jarbas Passarinho, ex-ministro da ditadura, afirma que não cabe sequer o pagamento de reparações a quem travou uma guerra contra o governo e perdeu. Omite que esse governo resultou da usurpação do poder por parte de golpistas que derrubaram o presidente legítimo, violentaram a Constituição, fecharam o Congresso, cassaram mandatos, extinguiram entidades, censuraram, prenderam, torturaram e assassinaram.
Alguns milhares de resistentes enfrentaram esse terrorismo de estado. A disparidade de forças era imensa e eles foram esmagados da forma mais brutal. Embora os partidos e organizações que se opunham à ditadura já tivessem sido desbaratados no final de 1970 e não representassem perigo real nenhum para os militares, estes não hesitaram em mover uma guerra de extermínio nos anos seguintes, para nenhum inimigo importante sobreviver. Os últimos combatentes foram aprisionados vivos, levados a centros de tortura clandestinos como a Casa da Morte de Petrópolis (RJ), supliciados e depois executados. De muitos não foi encontrado nem o corpo, pois os carrascos davam sumiço nos cadáveres.
A responsabilidade do Estado brasileiro pelos crimes praticados em seu nome ou com sua conivência é indiscutível. Mas, seus mecanismos de compensação às vítimas são lentos e inadequados. Só em 1995 começou a ser criado um programa para indenizar as famílias de mortos e desaparecidos políticos, com quantias variáveis entre R$ 100 mil e R$ 150 mil (como vale pouco uma vida no Brasil!). E em agosto de 2001 foi instalada a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, para contemplar os direitos dos ainda vivos.
Como tudo que é gerado pela corte de Brasília, esse programa tem distorções gritantes. Por exemplo, ao declarar um cidadão anistiado, reconhece oficialmente que ele sofreu danos morais, psicológicos, profissionais e, eventualmente, também físicos, mas só ressarce integralmente um dano profissional específico: a perda de emprego por perseguição política.
Então, quem ficou com uma lesão permanente e precisou fazer toda sua carreira em desvantagem poderá sair apenas com uma indenização em parcela única, de até R$ 100 mil. Todas as vítimas da ditadura que não foram demitidas de seus empregos públicos ou privados, por piores que sejam as seqüelas das torturas e perseguições, acabam recebendo somente isso.
Já a pensão mensal vitalícia para os adversários a quem a ditadura desempregou equivale à remuneração que teriam obtido se sua carreira houvesse continuado normalmente. E também lhes é concedida uma indenização retroativa, equivalente ao número de meses em que sofreram os efeitos da perseguição política, mais cinco anos.
Assim, o retroativo pode significar, p. ex., o valor da pensão mensal multiplicado por 120 (meses). É por aí que se chegou às tais indenizações milionárias – que não são tantas quanto se supõe, mas deram argumento para os interessados em desacreditar o programa e, implicitamente, todas as pessoas que arriscaram a vida, a liberdade e a integridade física lutando contra a ditadura.
As entidades de ex-presos políticos apontam algumas dezenas de casos de favorecimento a protegidos políticos e celebridades, tanto na ordem de marcação de julgamentos quanto nos valores concedidos. Mas, será mais uma grave injustiça utilizar esses casos aberrantes, que não chegam a 3% do total, como justificativa para retardar o pagamento de indenizações já decididas, relativas a abusos praticados há 35 ou 40 anos atrás.
Muitos já morreram sem receber aquilo a que tinham direito. Pouquíssimos estarão vivos em 2016. E, claro, há sempre a possibilidade de já terem sido pagos aqueles que importavam para o Planalto – afinal, em nossa Pasárgada, bom mesmo é ser amigo do rei.
Ademais, uma decisão tão inconsistente como essa só servirá para abarrotar ainda mais os tribunais, que tenderão a preservar os direitos atingidos. Bem melhor seria rever as indenizações suspeitas e pagar logo as justificadas.
A opção, mais uma vez, é entre Justiça e conveniência. Se o Brasil continuar preferindo os casuímos, os jeitinhos e os dois pesos e duas medidas, marchará celeremente para a ingovernabilidade – não é por acaso que, depois do mar de lama, os criminosos consideram os poderes públicos tão fragilizados a ponto de ousarem confrontá-los em ampla escala. A desmoralização das instituições abre caminho para o caos e para uma recaída autoritária.
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AMEAÇA AOS DIREITOS DOS ANISTIADOS (ago/2006)
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