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31.1.07

O combate na mídia

==== mensagem ao "Painel do Leitor" da Folha de S. Paulo ====

"A Folha noticiou: aliados do cel. Brilhante Ustra pretendem pedir que a Justiça declare serem terroristas aqueles que pegaram em armas contra a ditadura militar.

A resistência à tirania é um direito dos cidadãos. Jamais poderá ser considerado terrorista quem enfrentou os golpistas de 1964, usurpadores do poder que, eles sim, governaram sob terrorismo de estado, cometendo um sem-número de delitos, crimes e atrocidades: assassinatos; torturas; prisões ilegais; cárcere privado; perseguições de todo tipo; difamação e calúnia; extinção de entidades e associações; violação do direito de reunião e do direito de ir-e-vir; fechamento do Congresso e cassação de representantes do povo; censura à imprensa e às artes; banimento de cidadãos; desacato ao Judiciário e descumprimento de habeas-corpus; ocultação de cadáveres, etc.

Quem for à Justiça com ação tão descabida, nada receberá além de uma aula de Direito e das normas da vida civilizada. O cel. Ustra, que sabe muito bem disso, quer mesmo é contrabandear seus (pre)conceitos para o noticiário. Antes torturava os idealistas, agora tortura a verdade.

Eu desafio o cel. Ustra e seus paus-mandados a darem mesmo entrada nessa ação. Terei o máximo prazer em mostrar ao tribunal quem realmente era terrorista e quem ordenou práticas hediondas semelhantes àquelas que foram julgadas em Nuremberg."

==== mensagem à seção de "Cartas" do "Jornal do Brasil" ====

"Em seu artigo 'A Anistia Que Não Seu Certo', o coronel Jarbas Passarinho, que foi ministro no período mais escabroso da ditadura militar, faltou à verdade, ignorou o veredito da História e a posição oficial do Estado brasileiro, além de subestimar a nossa inteligência, ao escrever que a "reciprocidade da anistia, (...) no fundo, esquecia terrorismo e sua contrapartida, a tortura".

Não houve terrorismo no Brasil, além do terrorismo de estado praticado pelos golpistas de 1964, usurpadores do poder que cometeram um sem-número de delitos, crimes e atrocidades: assassinatos; torturas; prisões ilegais; cárcere privado; perseguições de todo tipo; difamação e calúnia; extinção de inúmeras entidades e associações, expurgos em outras; violação do direito de reunião e do direito de ir-e-vir; fechamento do Congresso e cassação de representantes do povo; censura à imprensa e às artes; banimento de cidadãos; desacato ao Judiciário e descumprimento de habeas-corpus; ocultação de cadáveres, etc.

A vanguarda armada, até então praticamente irrelevante, só assumiu a dianteira da luta contra a ditadura quando o AI-5 mergulhou o País no arbítrio total, inviabilizando todas as formas de luta pacíficas. Ou seja, passou para o primeiro plano quando a tortura já grassava solta.

E tinha as características inconfundíveis de um movimento de resistência, em tudo e por tudo equivalente à Resistência Francesa, que combateu basicamente o mesmo inimigo. Vale lembrar que a resistência à tirania é um direito de todo cidadão.

Pelo menos num ponto, a posição do coronel Passarinho evoluiu: agora admite explicitamente a existência da tortura. Curiosamente, ele tem defendido de público um dos piores torturadores do período. Coerência também não é o seu forte."


==== mensagem publicada pelo "Painel do Leitor" da Folha de S. Paulo em 08/02/2007

Ditadura

"A reportagem "Papéis da ditadura somem dos arquivos" (Brasil, 4/2) comprova o empenho dos culpados de práticas hediondas e de seus cúmplices em eliminar os registros dos crimes cometidos.

Evidentemente havia um responsável pela guarda desse material. Caberia ao governo federal determinar inquéritos e punições. Mas o presidente Lula já deu mostras de preferir que esse passado seja esquecido em vez de esclarecido, tanto que não ordena a abertura da caixa-preta da repressão.

O triste é que essa faina destrutiva impedirá que saibamos ao certo como morreram alguns companheiros para poder, eventualmente, localizar seus restos mortais.

Quanto ao fato de que a ditadura militar praticou torturas e cometeu assassinatos em larga escala, é tão inequívoco e unanimemente reconhecido pelos historiadores que nenhuma destruição de provas fará a mínima diferença."

CELSO LUNGARETTI, ex-preso político que restabeleceu a verdade num episódio de 34 anos atrás graças a um relatório secreto militar que veio a público (São Paulo, SP

A NOITE EM QUE O BRASIL SE F...

"Em que momento o Peru tinha se f...?", pergunta Mario Vargas Llosa na abertura de Conversa na Catedral. Talvez a indagação seja mais fácil de responder no caso brasileiro: foi em 25 de abril de 1984.

Era uma noite úmida e estávamos na Praça da Sé, esperando o País renascer. A Câmara Federal apreciava a Emenda Dante de Oliveira e um gigantesco placar fora erguido para permitir o acompanhamento voto a voto.

Antes, ouvimos discursos e mensagens augurando vitória. Depois, foi a derrota que se desenhou aos poucos, enquanto a garoa aumentava. Por fim, o longo caminho de volta para casa. Uns poucos exaltados e querendo briga, os outros cabisbaixos, sem ânimo para mais nada.

Fazia 11 dias que minha primeira filha nascera. Não lhe legaria o Brasil de meus sonhos. As músicas, as passeatas, as concentrações-monstro na Sé e no Anhangabaú, o amarelo que usávamos nas roupas para simbolizar a adesão às diretas-já... tudo em vão. Algumas centenas de deputados haviam permanecido alheias à vontade nacional.

Sairíamos da ditadura pela porta dos fundos, como parece ser nossa sina. Do descobrimento do que já se sabia existir à independência para inglês ver, todos os momentos solenes da nossa História têm um quê de farsa e bufonaria. Mas, por Deus, daquela vez quase todos fizeram sua parte!

No rescaldo da derrota entraram em cena os profissionais -- conforme anunciou Tancredo Neves, aludindo a si próprio e a seus iguais. E, se poucos votos faltaram para o restabelecimento imediato das eleições diretas, muitos apareceram para ungir, por via indireta, o candidato da Aliança Democrática.

É claro que, no primeiro caso, os congressistas eram convidados a abrir mão de seu próprio cacife; e a segunda ocasião significava a hora das recompensas. Que foram prodigamente distribuídas.

Não entrarei no mérito do Governo Sarney e da lenta agonia que consome até hoje a democracia brasileira, como se o nascimento espúrio tivesse lançado uma sombra sobre o seu futuro. Mas, quero deixar registrada -- mesmo que tanto tempo depois -- minha indignação com o aborto de uma esperança.

São raros os momentos em que há real interesse da população em influir nos destinos do País. E, cada vez que se ensaia um tímido despertar, surgem profissionais para conduzir os acontecimentos no sentido de um eterno retorno.

Nossa elite é sui generis: incapaz de formular um projeto nacional e de se unir em torno dele, alcança invejável coesão quando se trata de resistir às pressões que vêm de baixo. De empresários a políticos, passando por sindicalistas e acadêmicos, todos têm em comum a obstinação em não deixar a peteca escapar-lhes das mãos.

Daí o desencanto e o nilismo que grassam entre nosso povo. Quem ouve a voz das ruas sabe que o cidadão comum não se considera representado por nenhuma força do espectro político. Nenhuma.

E isto se deve, dentre outros motivos, ao balde de água fria sempre atirado no ânimo da multidão, como a garoa a nos castigar naquela noite em que acompanhamos mais uma traição à promessa de um futuro altaneiro, e voltei para casa sem palavras de amor para minha mulher nem paciência para ninar a criancinha, pois trazia a certeza, e os eventos posteriores só viriam confirmá-lo, de que naquele momento o Brasil tinha se f...

25.1.07

VAMOS FALAR DE FUTEBOL

Entre o Natal e o carnaval, uma das piores profissões do mundo é a de comentarista político no Brasil. Tenho pena dos colegas do jornalismo diário, obrigados a fingir que dão importância ao que não tem nenhuma. Que tortura ter de utilizar artifícios retóricos para tornar menos desinteressante os movimentos canhestros de personagens liliputianos!

Vejam este modorrento mês de janeiro. O que aconteceu de relevante? Nada.

Lula, como sempre, deixou transparecer sua preguiça de governar. Até hoje não anunciou seu novo Ministério, jogando mais algumas semanas no lixo. E, do parto do seu plano de aceleração do crescimento resultou, como os menos ingênuos já anteviam, um mísero rato. Tudo dependerá da boa vontade dos agentes econômicos, que são movidos pela ganância e não por compaixão, patriotismo ou respeito pelo interesse público. No final de 2007 ouviremos as tentativas habituais de explicarem por que as metas não foram atingidas.

De quebra, o Lula cansou de esnobar a esquerda, em palavras e atos. Além de achincalhar os sexagenários idealistas, de minimizar os horrores da ditadura militar no Brasil e de defender a inviolabilidade da lei que anistiou vítimas e carrascos ao mesmo tempo, acaba de mandar o Fórum Social Mundial às urtigas, comparecendo apenas ao banquete dos poderosos em Davos.

Enquanto isso, a disputa pela presidência da Câmara Federal se trava como mais um espetáculo de oportunismo e fisiologismo explícitos, contribuindo para desacreditar ainda mais – se isso for possível – o Poder Legislativo.

Então, vamos falar de futebol.

O que hoje se pratica no Brasil me faz lembrar um dos trechos mais marcantes do “Manifesto do Partido Comunista” de 1848. Peço aos leitores que tenham um pouco de paciência, pois explicarei adiante. Primeiro, relembremos Marx e Engels:

“Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’ ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu. as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.

“A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados.

"A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.”

O inferno pamonha – Sentimos a mesma perda de qualidade em todas as esferas da nossa existência ao ingressarmos plenamente na sociedade de consumo, a partir de 1970. O que ainda havia de nobre, belo e digno nestes tristes trópicos foi esmagado pelo rolo compressor do mercado, atirando-nos no “inferno pamonha” a que se referiu Paulo Francis: uma vida sem reais gratificações, na qual ninguém consegue verdadeiramente realizar-se como ser humano e como cidadão, além da danação de ter de suportar a tirania dos medíocres.

Até no futebol esse fenômeno se verificou. Bem ou mal, o Brasil conseguia evitar o êxodo de seus talentos. Um ou outro ia deslumbrar os europeus, mas tínhamos capacidade de manter times memoráveis como o Santos bicampeão do mundo (1962/63) e formávamos nossas seleções com quase todos os craques atuando no País.

Os campeonatos estaduais eram pujantes, os times do Interior às vezes conseguiam até contestar a hegemonia dos grandes. Havia campinhos de terra batida em todo lugar, crianças correndo horas a fio atrás de bolas de meia.

Futebol era arte e paixão, não apenas competição. O chapéu bem aplicado valia quase tanto quanto o gol. Os dribles infernais de Garrincha desmoralizavam mais os adversários do que os placares elásticos. Os torcedores ainda eram capazes de reconhecer e aplaudir as belas jogadas do time rival.

Lembro-me de um episódio emblemático. O grande Gento, ponta-esquerda do fantástico time do Real Madri do final da década de 1950 (de Puskas e Di Stefano), era o cobrador oficial de pênaltis. Certo dia, um árbitro viu infração num lance em que, o estádio inteiro percebeu, nada de errado acontecera. Gento calmamente encaminhou-se para a bola... e chutou-a na direção da bandeira de escanteio, desprezando altaneiramente a oportunidade de marcar um tento imerecido.

Outro gênio, Nilton Santos, arriscou-se a uma longa suspensão, que acabaria significando sua aposentadoria (pois já estava no fim de carreira), por uma questão de dignidade. Num Corinthians x Botafogo no Pacaembu, ele foi repreendido acintosamente pelo folclórico Armando Marques, que quase tocou com o dedo no seu nariz. Com a elegância que lhe era peculiar, Nilton Santos aplicou um tapa de mão aberta na cara do árbitro, atirando-o ao chão. E calmamente se dirigiu para o vestiário, sem esperar que o expulsasse.

Um repórter o interceptou, perguntando por que fizera aquilo. Ele disse que o filho dele estava assistindo à partida. “Como é que eu iria explicar ao meu filho que deixei um homem encostar o dedo no meu nariz, sem reagir?”

Times, seleções e craques do chamado futebol romântico serão lembrados para sempre. Já os atuais amontoados de novatos e refugos, os selecionados formados à base de milionários enfastiados e os jogadores que preferem ajeitar a meia do que marcar o adversário sobreviverão apenas enquanto estiverem no noticiário e forem úteis como garotos-propaganda. Não têm grandeza para impregnar o imaginário das gentes.

18.1.07

CASAL METRALHA NA CADEIA: A JUSTIÇA PODE RENASCER

“Não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes”
(Jesus Cristo, ao expulsar os vendilhões do templo – João 2,13-22)
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A boa notícia de janeiro é que começa a renascer a esperança de quem andava descrente na justiça terrena e divina: Estevam Hernandes Filho e Sônia Haddad Moraes Hernandes, fundadores de uma dessas seitas caça-níqueis que pululam entre nós, não só foram devidamente acusados de seus crimes pelas autoridades brasileiras, como fracassaram em sua tentativa de fugir com parte do butim para os Estados Unidos.

Aqui, eles respondem a processo por lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, evasão de divisas e estelionato. Seu prontuário inclui a abertura de empresas fantasmas para processamento da dinheirama extorquida dos crédulos.

Estavam foragidos até o final de dezembro, quando o Superior Tribunal de Justiça, inexplicavelmente, revogou a prisão preventiva que havia sido decretada contra eles. Sua primeira reação foi a de todo malfeitor: escafeder-se antes da sorte virar.

Mas, subestimaram a alfândega estadunidense, declarando apenas US$ 10 mil cada, quando, na verdade, carregavam um total de US$ 56 mil em espécie, ocultos na bagagem. Havia dólares enfurnados até na bíblia da Bispa Sônia, que parece adorar mesmo é o bezerro de ouro. Estevam, lembrando o vexame do assessor da família Genoíno, evitou esconder dólares na cueca.

Agora, deverão ser ambos extraditados para o Brasil, onde sua prisão preventiva foi novamente decretada.

Têm também alguns dos seus bens bloqueados – como um haras na região de Atibaia (SP). Apesar de possuírem uma fortuna estimada em R$ 19 milhões, incluindo uma mansão na Flórida, sua igreja acumula dívidas de R$ 12 milhões. Vários templos da Renascer em Cristo estão com os aluguéis atrasados.

A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR: E O EDIR?

Mas, como dizia uma velha marchinha carnavalesca, “zum, zum, zum, está faltando um”. Edir Macedo, bem mais hábil do que o Casal Metralha da Renascer, consegue driblar a Justiça há décadas.

Em 1992 ele chegou a ficar 12 dias detido, enquanto os principais veículos da imprensa brasileira, capitaneados por O Estado de S. Paulo, publicavam uma enxurrada de denúncias acachapantes contra a Igreja Universal do Reino de Deus. Em vão. Os fiéis enterraram a cabeça na areia como avestruzes, as autoridades foram omissas e ficou novamente comprovado que rico não passa muito tempo na cadeia em nossa pindorama.

Em 1995, o prestígio do autoproclamado bispo sobreviveu às imagens igualmente devastadoras de um videoteipe em que ele aparecia ajoelhado e rindo para a câmara, enquanto contava o dinheiro das ofertas num templo de Nova York.

Hoje, os avanços no estudo dos mecanismos de lavagem cerebral, que anulam a possibilidade de resistência dos que estão subjugados por manipuladores hábeis, justificariam uma atualização do Código Penal, de forma a possibilitar o enquadramento da Igreja Universal nesse quesito.

Mas, mesmo na desatualizada legislação de hoje, as práticas de Edir e sua gang podem perfeitamente ser punidas como estelionato e curandeirismo. O que falta é vontade para tanto – e aí entramos naquela espaço nebuloso em que os interesses da Justiça e da política se confundem, quase sempre em detrimento da primeira. Mesmo porque a bancada evangélica de três senadores e 29 deputados federais ainda poderá ser o fiel da balança em muita votação importante.

Só nos resta torcer para que o zelo mostrado no caso da Renascer continue sendo exibido pelas autoridades, contra contraventores muito mais poderosos.

E que Deus continue atento, como estava quando aqueles fujões tentaram burlar a alfândega de Miami.

17.1.07

RETROSPECTIVA: RÉQUIEM PARA UM GLADIADOR (1994)

São indignas de Senna as lágrimas de crocodilo de jorram da mídia, reduzindo uma morte épica à banalidade das telenovelas. Não foi vítima de um destino traiçoeiro nem assassinado pela incúria dos dirigentes do automobilismo mundial. O muro que se agigantou à sua frente o perseguia desde os primórdios da carreira: está nos pesadelos de todos os pilotos. Não existe segurança a 300 quilômetros por hora.

O fascínio da Fórmula 1 tem tudo a ver com o instinto de morte, que Freud detectou como sendo um dos componentes essenciais de nossa psique e de nossa cultura. O herói do volante desafia o perigo a cada curva e o público junto com ele, numa identificação tão mágica quanto cômoda.

São os gladiadores do século XX, correndo riscos em nosso lugar, para que tenhamos uma boa catarse (aliás, até seus trajes e os autódromos -- principalmente os circulares da Fórmula Indy -- lembram o visual das arenas romanas).

Mas, na era da propaganda, tudo isso deve ficar implícito. Galvões e Lucianos se limitam a dissecar pequenos detalhes técnicos que reduziriam ou aumentariam as probabilidades de sobrevivência dos pilotos. Já os próprios, em rasgos de sinceridade, admitem que a linha separando acidentes superficiais dos fatais é tão tênue quanto um fio de cabelo.

Muitos poderiam ter morrido nos oito anos em que a F-1 não registrou óbitos, mas aqueles ínfimos milímetros que decidem a sina do acidentado foram favoráveis. Em Ímola, os deuses não estavam complacentes e tudo saiu da pior maneira possível.

Como Christian Fittipaldi ressaltou, descartando uma maior periculosidade em função da retirada do controle de tração e suspensão ativa: "Ano passado tinha tudo que vimos aqui mas, graças a Deus, ninguém se machucou. (...) O Berger, no GP de Portugal da última temporada, não se matou por milagre. (...) É relativo dizer que hoje o risco é maior".

Eles, os pilotos, sabem. Mesmo assim, entram naquelas estranhas máquinas e, em posições cujo desconforto beira a tortura, percorrem o fio da navalha em velocidades estonteantes, conscientes de que a mínima falha -- sua, dos outros ou do equipamento -- poderá ser fatal.

Pior: sua condição de ídolos depende não apenas de receberem a bandeirada na frente, mas de guiarem com arrojo e agressividade. Os fãs cobram esta atitude temerária. Ai dos Prosts que pensam antes na autopreservação, colocando a vitória em segundo plano! São tidos como covardes.

Senna era um típico gladiador. Assumia todos os riscos e jamais refugava nas ultrapassagens difíceis, nos duelos insensatos. Os mesmos que denunciam a insegurança de Ímola eram os que aclamavam Senna quando ele realizava brilhantes -- e perigosíssimas -- corridas em pista molhada. O muro esteve sempre muito perto dele, até que o alcançou.

Tímido, pouco à vontade no papel de celebridade, jamais aparentando satisfação maior com as coisas simples da vida, Senna atingia a plenitude na arena de suas conquistas e no pódio triunfal. É difícil imaginá-lo aposentado, remoendo o passado e amaldiçoando o presente.

Parafraseando os roqueiros Pete Townshend e Neil Young, talvez no caso de Senna fosse mesmo preferível morrer antes de envelhecer, consumir-se em chamas do que definhar aos poucos. Foi até o fim no rumo que escolheu: gladiador altaneiro, merece respeito e não lamúrias.

(artigo publicado no Jornal da Tarde, 04/05/1994)

15.1.07

RETROSPECTIVA: RAUL SEIXAS -- A TEIMOSIA BRABA DO GUERREIRO (1980)

O repórter era o compromisso das onze e meia da matina na agenda do Raul Seixas; aliás, da agenda que fizeram para ele e que se encarregaria logo, logo, de rasgar e transformar em aviãozinho de papel...

[O Raul foi primeiramente num jornaleco colorido que pras gravadoras é uma canja: encarrega-se ele mesmo de fazer o press-release. Não tem críticos, portanto não tem opinião, portanto apenas ecoa o que as gravadoras querem passar sobre seus artistas e o que estes querem passar sobre si mesmos. Antes os house-organs: são de graça.]

E o Raul chegou ao meio-dia, muito discreto com sua jaqueta vermelha e seus óculos alaranjados. Ele, a Kika -- sua companheira -- e o Luís da CBS. O repórter tinha sido colocado numa brecha entre aquele matinal fornecimento de matéria-prima para divulgação (liquidação de primavera: duas páginas de entrevistas por uma de anúncio, quem vai nessa?) e um encontro mais sério, no Folhão, às duas da tarde. Sobrou o almoço. Mas, antes, um papo rápido, enquanto o fotógrafo trabalha.

Começamos. Por que o sarro com o presidente da WEA, André Midani ("André Ledani só faz confusão/ Sonhei com ele e mijei no colchão"), na faixa "Conversa Para Boi Dormir"? "Bom, quando ele saiu da Philips e quis me levar junto, pensei que reconhecesse meu valor. Mas, não sei por que, a WEA praticamente nem divulgou meu penúltimo LP, Por Quem os Sinos Dobram. Você ouviu falar nele? Alguém ouviu? Daí, achei que era hora de levantar acampamento. E agora estou na Columbia Broadcasting System. Very good!" [Dá um sorriso moleque e aponta com o olhar um diretor da CBS.]

O Raul parece o tempo todo interessado nas peripécias do fotógrafo, que tenta achar o melhor ângulo. "O que é que há, Raul, está estranhando?" Ele: "Sei lá, vai ver que sou meio tímido. Fico sempre inibido". O repórter se espanta, tenta captar se ele estava falando sério. Estava.

NOSSOS COMERCIAIS, PLEASE!

Começo de entrevista é sondagem de parte a parte. Então, pintam os lances mais formais, tipo "desde o tempo de 'Ouro de Tolo' até hoje, continuo fazendo o mesmo trabalho, dentro das mutações da civilização, como observador, contador de histórias, gostador de música"...

Ou: "Hoje é uma época caótica, não temos nada. Existiram duas décadas com ídolos saídos da terra, enraizados na terra -- a de Elvis e James Dean, depois a dos Beatles. E aconteceram todas aquelas mudanças de comportamento. Agora não há nada, não está acontecendo nada. Os anos 80 são isto: nada. Então, se no atacado a coisa dançou, a gente tenta salvar algo no varejo. O rock dos outros pode estar morto, mas o meu rock está vivo e com força total".

Além disso, há propostas, projetos: lançar seu atual LP, Abre-te Sésamo, não numa coletiva de imprensa, mas numa mesa-redonda sobre os anos 80, com a participação de Lula, D. Helder, Walter Clark e alguns jornalistas escolhidos a dedo ("Quero sentar-me e ficar ouvindo, para variar"); dar um show com sinfônica no Anhembi, marcando "my great come back"; gravar um LP nos EUA, chamado Opus 666, uma transa místico-poética em torno de uma visão atual do Diabo ("Depois esse disco chega como importado no Brasil e todo mundo compra. Santo de casa não faz milagre").

A ENTREVISTA DE VERDADE

Corte para um restaurante chinês. O Raul se descontraiu por completo depois de uma confissão do repórter. Estavam atravessados em sua garganta os necrológios infames que a grande imprensa cometeu por ocasião dos dez anos do maio francês, da Primavera de Praga e de tudo que iluminou sua mocidade no longínquo 68, então saiu o disco O Banquete dos Mendigos [registro de um magnífico espetáculo em prol dos direitos humanos, que passou muito tempo proibido pela censura] e o repórter se arrepiou todo quando ouviu o Raul cantar a já esquecida Cachorro Urubu: "E todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era,/ Que já não é mais primavera/ o baby, a gente ainda nem começou".

Então, Raul sentiu-se entre amigos. E a conversa deixou de ser oficial. Para começar, ele fez aparecer, num passe de mágina, uma garrafinha metálica cheia de uísque. Despejou-a inteira em seu copo, tomou um longo gole e depois passou-o adiante. O proprietário (um chinês velhinho, de cabelos brancos) notou a garrafa trazida de fora, veio olhar: "Que engraçada, essa amostra..."

O Raul não deixou por menos, caricaturizou: "Essa não vai na conta, no?!". Mais tarde explicou que o velho estava tirando uma com a cara dele. "Se é para ser filho da p..., então eu vou ser o maior de todos!"

A Kika quis saber: "Como é, vocês não vão acabar a entrevista?". O repórter se espantou: "Ora, mas é agora que nós estamos fazendo a entrevista de verdade". O Raul completou: "E ai de nós quando acabarmos!".

Traçando um frango xadrez e bebendo muito saquê, o Raul começou a mostrar a mesma irreverência de suas músicas. "Já que estão falando de abertura, então vamos ver até onde vai. Por isso eu fiz Abre-te Sésamo, exatamente para questionar, porque o que está aí não é abertura nem nada. Depois, em Aluga-se, eu dou um bom conselho pro Delfim: se eu fosse ele, alugava o Brasil."

SERÁ QUE EU FALEI BOBAGEM?

Lá pelas tantas, o Raul colocou todo o resto de comida numa travessa só e nos convidou a comermos diretamente dali, como irmãos. O repórter ainda mandou ver umas garfadas, os outros já haviam encerrado. Os assuntos iam e vinham. A Kika falou de um germe recém-descoberto que comia ferrugem. O Raul aproveitou: "É, o bichinho come tudo que há de ruim nesta sociedade industrial -- o petróleo, a ferrugem, até os edifícios. Quando é que ele vai chegar no Figueiredo?" Aí, fingiu-se de assustado: "Será que eu falei bobagem, heim?".

A cada instante, a Kika e o Luís lembravam que estava ficando tarde para a entrevista na Folha. O Raul acabou desabafando: "A maioria dessas entrevistas é um saco, principalmente as coletivas!". O repórter comentou que as coletivas têm meia hora de papo formal sobre o disco ou o show que o artista está promovendo, depois fica tudo mais descontraído e até saem conversas interessantes; só que ninguém anota, pois os jornalistas de hoje só sabem trabalhar com o lado promocional. O Raul faz um gesto de "olhaí, eu não disse?". E interrompe: "Não precisa falar mais nada. A gente já se entendeu".

Bota-fora. Raul chama um último saquê, o repórter lamenta: "O diabo vai ser passar o resto da tarde na redação, escrevendo". O Raul não quis ouvir: "Não fala isso, irmãozinho, não fala isso! Eu fico muito triste". O repórter novamente estranhou e quis ver se havia algum traço de ironia no rosto dele. Nenhum.

PODE NÃO CANTAR NADA, MAS QUE COXAS!

Bêbados em pleno começo de tarde, na rua Teodoro Sampaio. Luís e Kika já estão longe, ansiosos por apanhar depressa o carro. Raul atrás, abraçado ao repórter, admirando os traseiros de quatro garotas que passam despreocupadas. "É demais! É demais!" Pergunta ao repórter o que acha de uma cantora da moda, bem medíocre. "Sei lá. Em que sentido?" Ele dá outro sorriso maroto e aponta as meninas: "Nesse mesmo. Eu vi na TV e não me aguentei. Pode não cantar nada, mas que coxas!"

[E o repórter se dá conta que, ao contrário de quase todos os artistas que conheceu, Raul Seixas é sincero. Tanto nas suas esculhambações políticas como no clima sensual de suas músicas. No deboche bem humorado do Rock das Aranhas. No conselho a uma baby de treze anos, de que se "quer deitar/ Não dar ouvido à razão, não/ Quem manda é o coração". Nos versos de sexo quase explícito de Ângela: "Rouba do meu leite agora/ O gosto da minha vitória" e também "Minha espada erguida para a guerra/ Com toda fúria que ela encerra". De forma alguma idéias tomadas de empréstimo a bons letristas como Paulo Coelho e Cláudio Roberto. Mas verdades, também para si. Principalmente para si.]

O Raul disse que estava há quatro noites sem dormir. Saiu bem atrasado para a Folha. Chegando lá, capotou. Desistiu de todas as entrevistas marcadas para a tarde. Foi para o hotel descansar.

***

O repórter só escreveria esta matéria alguns dias depois. Típico trabalhador da indústria cultural: salários aviltados, necessidade de fazer toneladas de matérias para sobreviver. Despersonalizando o estilo, prostituindo um dom.

No entanto, calou fundo nele a "teimosia braba do guerreiro", a imagem desse admirável guerreiro que insiste em manter a loucura dos anos 60 em meio ao marasmo e calculismo dos 80. E as sucessivas audições de Abre-te Sésamo lembraram-lhe tudo que a música era e ultimamente deixou de ser: alegria, revolta, paixão, coragem.

Então, o repórter resolveu, ao menos desta vez, fazer a matéria que tinha vontade de fazer, ao invés do texto bem comportado que as escolas ensinam e os editores recomendam. Saiu assim.

(texto publicado na edição 46 da revista "Música", em 1980, com a assinatura de André Mauro. Nas pegadas de Norman Mailler e do novo jornalismo dos EUA, eu me coloquei também como personagem da matéria. O Raul gostou tanto que depois me convidou para um happy hour da CBS e acabamos mantendo uma amizade de alguns meses)

RETROSPECTIVA: QUEM TEM MEDO DO ESTUDANTE? (1967)

E veio o povo à praça, falando em Deus, Família e Liberdade, numa marcha que seria a única manifestação popular a marcar a tomada do poder supremo do País pelos revolucionários de 1º de abril.

E veio a Revolução. Com a proteção de Deus, o apoio da Família, falndo em Liberdade. Num instante de crise tomaram-se várias medidas extremadas, algumas extremadas demais, mas, e daí? Deus aplaudia, a Família assistia, a Liberdade... bem, que importa a Liberdade ante a onipotência do Divino e a tranqüilidade da Família?

E, verídica ou não a existência de elementos de esquerda na UNE e nos sindicatos, extinguiu-se o órgão de representação estudantil e "sanearam-se" as entidades de classe dos trabalhadores. Os órgãos de representação operária continuaram existindo, mudados foram alguns de seus dirigentes. O órgão de representação estudantil foi sumariamente extinto.

Viu-se, então, toda a classe estudantil, após a Revolução de 1º de abril, sem uma representação efetiva, que lhe defendesse os direitos e advogasse as reivindicações. E isto sob a égide de Deus, da Família e da Liberdade.

Mas, não se pode amordaçar o idealista, não se pode calar toda uma classe em nome de uma Liberdade que não inclui a violência, de um Deus que simboliza acima de tudo a justiça e de uma Família que saiu às ruas para defender seu direito constitucional de expressar a opinião.

Sem outra arma que não a coragem e o apego às convicções, foi o estudante às ruas advogar os direitos que deveriam ser defendidos por uma representação legal da classe. E sangue jovem, sangue idealista, sangue de dignos descendentes de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo tingiu a calçada.

Eram os estudantes espancados e aprisionados em nome de uma justiça arbitrária, eram as palavras caladas pela força, era a batalha cruenta e desigual entre os argumentos e as agressões. Se Deus assistiu, não aprovou. A Família assistiu e chorou. A Liberdade não pôde assistir.

E quantas vezes saiu o estudante às ruas, em defesa de causas que eram suas e de sua classe, em todas ele foi agredido, pisoteado, amordaçado pelo direito da força, que substituiu a força do Direito, sem consentimento de Deus, sem a aprovação da Família, na ausência da Liberdade.

Mas, a violência só conseguiu solidificar ainda mais o ímpeto e decisão da classe estudantil, que continua a travar as batalhas de uma luta que só findará pela razão, que não será vencida nem pela força nem pela arbitrariedade, que proseguirá enquanto houver uma reivindicação a fazer, uma palavra a dizer, uma injustiça a reparar.

E, no instante em que o único órgão de representação estudantil, colocado na ilegalidade como que para comprovar ser o Direito cobertura legal para os interesses de grupos, tenta efetivar o seu 29º congresso, todo estudante tem compromisso firmado perante sua classe e perante si mesmo, de dar seu apoio, ainda que somente moral, a seus irmãos de ideais, que travam mais uma batalha de luta tão heróica quanto desigual.

E, aos que objetarem a respeito da legalidade ou não da UNE, cumpre dizer que uma entidade de classe é permanente, somente seus elementos são transitórios. Que, se elementos havia na UNE a abraçarem ideais esquerdistas, poderiam ser afastados tais elementos, mas nunca extinto o direito de representação da classe estudantil. E que, se a UNE não tem uma existência legal, tem-na real, até que seja substituída por qualquer entidade nacional que represente verdadeiramente os interesses dos estudantes, e não esteja colocada na ilegalidade.

E que Deus e a Família compreendam e aplaudam a luta do estudante em prol da Liberdade. Amém.

(artigo publicado na primeira página do jornal "Teos", "órgão oficial do Grêmio Estudantil do Colégio Estadual MMDC", em agosto de 1967)

RETROSPECTIVA: DEUS SALVE ESTA CASA SANTA (1972)

O som está se estendendo pela cidade, tomando conta dos teatros, começando a existir de verdade. É o Oficina, o Aquarius, o Equipe, o Band 13. Pode ser um começo. Mas, cuidado: por enquanto, ele ainda é um som pago.

Pelas ruas, a euforia: bandeiras, medalhes e sirenes passeiam sua morte por entre os escombros de acrílico e concreto armado. Vibram os cadáveres condescendentes e os monte-de-carne andantes.

Pelo undergroud, também a euforia: as viagens misturam-se ao sabor da moda e aos toques de intelectualismo oriental, zen, equilíbrio-consigo-mesmo, macrobiótica, Grotowsky e Jung, compondo um multicolorido painel de ilusões. Estamos numa boa, quem sabe de mim sou eu, o negócio é curtir, estou ligado nas coisas que pintam, falou?

A nação respira no compasso da monotonia asfixiante da Nova Era. O underground não sobrevive ao caos, despoja-se de sua característica de cultura alternativa e se torna cultura pitoresca-folclórica-consentida. Papai acha bonito os cabelos do filhinho e não liga que ele puxe um pouco, desde que ele continue estudando e não se meta em transas mais perigosas.

Quem não der muita bandeira, pode ser que escape. Se você não berrar, não sair muito louco pelas ruas, não fizer um som ouriçado demais, não disser palavrão e não fizer amor com a janela do quarto aberta, pode ser que os vizinhos não chamem a polícia.

E se você obedecer ao saber museulógico de velhos mestres que passaram a vida toda fugindo do próprio corpo, se você aceitar que existam "professores" e "alunos", se você tiver saco de ler uma porrada de livros que só ensinam a se colocar de fora dos fenômenos, analisando-os como se fossem coisa morta, enfim, se você conseguir aturar uma universidade perdida nos escombros das primitivas eras, no museu de relíquias e antiguidades, na subserviência grotesca à indústria e ao poder, então você tem uma carreira, uma profissão, um canudo (pra substituir aquele que você não deve estar usando), um anel no dedo e uma argola no pescoço, além de uma profissão e um merecido status: F.P. (filho privilegiado...).

Sonhamos, não vivemos. Sonhamos na vitrola, nas viagens, nos corpos dos outros. Pelas ruas, a realidade se impõe com as forças do Sílvio Santos mais o delegado Bellot. E a propaganda é a alma do negócio. E quem não está comigo, está contra mim, não merece viver.

Em meio a tudo isso, vamos sobrevivendo, olhando embasbacados os irmãos lá da Amerika encarando o tempo todo. Mas, como nós (ainda) não temos saco pra encarar, então imitamos só o cabelo, as viagens, a gíria e a moda. E brincamos de homens maus, posando de loucos mas se cagando de medo só de ouvir uma sirene (até de ambulância).

As defesas, as barreiras e as repressões estão dentro e fora de nós; não dá pra arrebentar as de dentro sem suprimir as de fora. Precisamos de espaço pra execer a liber/sensualidade (re)conquistada, espaço vital, pra respirar. Ninguém é livre sem conquistar um território seu, onde o Esquemão já não possa atingi-lo.

Os irmãos pirados da Amerika mantêm suas comunidades lutando por elas e lutando fora delas, contra a guerra, a tecnologia destruidora, contra os porcos. Assim eles garantem o direito de existir.

(carta de leitor publicada pela Rolling Stone brasileira, com a assinatura de "André Mersault")

HUGO CHÁVEZ LANÇA O “HISTRIONISMO NUM SÓ PAÍS” (jan/2007)

Hegel disse em algum lugar que todos os grandes feitos e personagens da história universal acontecem, como diríamos, duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa.” Esta frase célebre de Karl Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, foi a primeira lembrança que me ocorreu quando li a arenga pronunciada por Hugo Chávez ao iniciar o terceiro dos infindáveis mandatos que pretende acumular.

Então, depois da tragédia soviética da tentativa de construção do “socialismo num só país”, teremos agora a farsa latino-americana do “histrionismo num só país”. Tanto que o juramento proferido pelo presidente venezuelano Chávez na cerimônia de posse caberia melhor na boca do humorista mexicano Chaves:

“Juro ante esta maravilhosa Constituição, juro ante os senhores, juro por Deus, juro pelo Deus de meus país, juro pelos meus filhos, juro por minha honra, juro por minha vida, juro pelos mártires, juro pelos libertadores, juro por meu povo e juro por minha pátria que não darei descanso a meu braço nem repouso à minha alma ao entregar meus dias, minhas noites e minha vida inteira na construção do socialismo venezuelano.

“Juro por Cristo, o maior socialista da história, juro pelas dores, amores e esperanças, que farei cumprir e que cumprirei com os mandatos supremos desta maravilhosa Constituição, com os mandatos supremos do povo venezuelano, ainda que à custa de minha própria vida e de minha própria tranqüilidade.”

Deus, Cristo, os filhos de Chávez, os mártires, os libertadores, o povo e a pátria que se cuidem, pois o valor das juras do bufônico aspirante a ditador pode ser aferido por sua fidelidade à “maravilhosa” Constituição: a nova Carta que ele fez aprovar em 2000 já não serve a seus propósitos e ele determinou ao Congresso uma ampla reforma constitucional, incluindo a aprovação da nova Lei Habilitadora, que lhe permitirá governar por decretos.

Curiosamente, poucos parecem notar os pontos de contato entre o militar venezuelano que liderou uma fracassada tentativa de golpe em 1992 e os militares brasileiros que foram bem-sucedidos na quartelada de 1964.

Os milicos daqui também eram estatizantes e governavam por decretos (os famigerados atos institucionais). E igualmente se outorgaram, na prática, a permanência no poder por quanto tempo quisessem, com a única diferença de que esse privilégio era conferido aos comandantes das Forças Armadas em regime de revezamento, e não a um deles em particular. O direito à “reeleição ilimitada”, que Chávez certamente arrancará da Assembléia Nacional, é um retrocesso ainda maior: a volta ao caudilhismo.

Inevitavelmente, a bandeira retórica de “pátria, socialismo ou morte” seduzirá alguns representantes da desnorteada esquerda latino-americana. Espero que bem poucos. Por mais exasperante que seja assistirmos dia após dia às demonstrações de poderio e arrogância do capitalismo globalizado, não podemos aderir ao primeiro tiranete que pareça confrontar o 1º Mundo e distribua algumas migalhas ao povo sofrido.

Se as trágicas experiências políticas do século passado nos ensinaram algo, foi que as tentativas de construção do socialismo em países isolados ou são anuladas pela força econômica e/ou militar dos inimigos, ou viram ditaduras as mais retrógradas, ou se tornam uma forma qualquer de capitalismo de estado.

A tarefa dos verdadeiros revolucionários continua sendo a de emancipar as massas trabalhadoras e torná-las o sujeito da História. E não a de tangê-las, como rebanho, ao paraíso desenhado na mente de um guia supremo.

QUEM É ESSA MULHER?

Quando Chico Buarque lançou a canção “Angélica”, não eram muitos os que sabiam ser Zuzu Angel “essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”.

A estréia do filme “Zuzu Angel” fez com que, três décadas depois, a saga da estilista que confrontou o regime militar se tornasse muito mais conhecida do que no momento dos acontecimentos e nos anos subseqüentes.

É uma história em quatro tempos:
* em 1971, no pior momento da ditadura, Stuart Angel, militante do MR-8, já muito debilitado pelas torturas, foi amarrado à traseira de um jipe da Aeronáutica e arrastado com a boca colada ao cano de descarga do veículo, o que ocasionou sua morte por asfixia e intoxicação por monóxido de carbono. O corpo foi atirado no mar;
* sua mãe, Zuzu Angel, denunciou incansavelmente o assassinato e a ocultação do cadáver de Stuart, até ser vítima de um acidente automobilístico extremamente suspeito, em 1976;
* Chico Buarque, amigo a quem ela escrevera uma carta levantando a possibilidade de ser também assassinada pelos militares, homenageou-a com a alusiva “Angélica”, lançada em 1981, quando o Brasil começava a desmontar a engrenagem repressiva dos “anos de chumbo”;
* agora, em 2006, em meio aos escândalos do Governo Lula, chegou às telas o tributo cinematográfico a Zuzu Angel.O formato do filme de Sérgio Rezende é convencional, bem ao gosto dos espectadores formados pelas novelas e minisséries de TV. Mas, o tema lhe garante deferência da crítica e aplauso dos bem pensantes. Afinal, o importante é mostrar às novas gerações quão horrível era viver debaixo das botas...

Há quem veja nesse tipo de cinema uma função catártica: ter existido uma Zuzu Angel nos lava a alma e tranqüiliza a consciência, desobrigando-nos de atuar sobre a realidade presente, igualmente opressiva, embora o uso desmedido e brutal da força tenha sido substituído por formas de controle mais sutis e impessoais.

Um jovem da atualidade poderá também ficar com a falsa impressão de que havia muitas mães brasileiras com o destemor de Zuzu. Na verdade, casos como esse foram bem raros entre nós, ao contrário da Argentina, com suas loucas da Praça de Maio.

E por que, afinal, o filme prefere destacar o episódio pouco comum de uma personalidade da alta costura que lutou contra o arbítrio apenas por ter sido pessoalmente atingida por ele, de preferência ao de milhares de brasileiros que lutaram contra o arbítrio por um ideal de justiça e solidariedade para com os explorados e oprimidos?

Ou, colocado de outra maneira: se o foco principal do filme fosse para a militância, prisão e morte de Stuart Angel, o filme teria os mesmos (vultosos) financiamentos e entraria num circuito igualmente amplo? Há dezenas de exemplos indicando que não. Como o recente “Araguaya, A Conspiração do Silêncio”, de Ronaldo Duque.

O fato é que uma parcela ínfima da população brasileira pegou em armas para enfrentar uma ditadura assassina, enquanto 80 milhões se dividiam entre preservar-se à espera de melhores tempos ou apoiar o regime em razão da uma bolha de consumo que se-lhes oferecia em troca da liberdade.

Apesar da enorme disparidade de forças, esses poucos milhares de resistentes equilibraram a luta em 1969, conseguiram a duras penas assestar alguns golpes certeiros em 1970 e foram massacrados nos três anos seguintes.

A esquerda que emergiu dessa hecatombe criticou acerbamente o “vanguardismo” da geração anterior e se lançou à construção de um partido de massas, que acabou desembocando em outra desilusão.Então, quando pessoas envolvidas com a esquerda atual são surpreendidas com dólares na cueca ou recebendo Land Rovers de mão beijada, nota-se uma tendência artística de buscar no passado heróico da resistência à ditadura um exemplo e um contraponto às delinqüências atuais. Sintomaticamente, uma das primeiras perguntas feitas a Sérgio Rezende, em debate sobre “Zuzu Angel” que teve lugar sábado passado no cine Belas Artes, foi sobre o porquê da passividade da juventude atual.

Mas, tudo permanece num confortável meio-termo. Tanto que, no filme, os militantes do MR-8 são mostrados como bem-intencionados mas imaturos, enquanto a personagem principal tem o bom senso de não se meter com essas quixotadas até que lhe matam o rebento (ótima mãe, péssima cidadã!). E até o cinema em que se realizou o debate, marco da cultura paulistana, hoje pertence a um banco...

14.1.07

NADA ALÉM DE UM GOVERNO MOLUSCÓIDE (dez/2006)

“E agora, José?/ A festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou... /// ...o riso não veio/ não veio a utopia/ e tudo acabou/ e tudo fugiu/ e tudo mofou” (“E Agora José?”, Carlos Drummond de Andrade)

Começou melancolicamente o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva: sem público, sem planos e sem equipe, permitindo antever mais quatro anos de governo moluscóide.

O apelido que ele fez questão de incorporar ao nome acabou se revelando profético. As lulas são animais invertebrados de corpo mole e mucoso. Exatamente as características mais marcantes do Lula presidente.

Invertebrado, oscila entre a esquerda e a direita ao sabor dos interesses imediatos e do público que pretende cativar com cada discurso. No dia da posse, p. ex., repetiu o surrado blablablá contra a elite, sem perceber que esse linguajar de sindicalista não condiz com um presidente que propicia lucros estratosféricos para o capital financeiro (a menos que, em sua douta avaliação, os banqueiros não façam parte da elite). E falou em botar os milicos na rua, bandeira autoritária que provoca calafrios naqueles que sabem como começam as quarteladas no 3º mundo.

Mole com os amigos, ele permitiu que vicejasse em seu primeiro mandato o maior esquema de assalto aos cofres públicos e instrumentalização do Estado pelos companheiros de maracutaias já visto nestes tristes trópicos. Conseguiu superar em muito o mar de lama de Getúlio e o Collorgate, tanto no volume da dinheirama amealhada quanto na quantidade de pessoas envolvidas nas práticas mafiosas.

E espalhou seu muco a torto e a direito. Desmoralizou completamente o Executivo, tornado um balcão de negócios e um covil de tramóias, com destaque para a repulsiva mobilização de vários órgãos do Estado contra um humilde caseiro que ousou apontar a nudez do vice-rei; o Legislativo, com a compra de apoio parlamentar no atacado e varejo; o Judiciário, que compactuou com os escândalos denunciados e ainda aproveitou a esbórnia generalizada para beneficiar-se também; e a sociedade brasileira como um todo, ao desmentir o velho chavão de que o crime não compensa, dando a deixa para o “liberou geral”.

Mas, objetam aqueles que Nelson Rodrigues chamava de “idiotas da objetividade”, o Lula foi reeleito, e com votação expressiva.

Este é, na verdade, o seu maior pecado.

Primeiramente, porque tornou o eleitorado brasileiro cúmplice de suas ilicitudes. Cometeu, em escala ampliada, exatamente os mesmos delitos que custaram a Collor a perda do mandato. E foi anistiado nas urnas, o que veio confirmar a frase atribuída a De Gaulle: o Brasil não é um país sério, já que nele os assuntos mais importantes são tratados à base de dois pesos e duas medidas.

Além disso, dissipou nossas últimas ilusões de termos eleitores capazes de decidir, como cidadãos, qual o governante mais apropriado para o País. A maioria votou apenas em quem lhe pareceu mais indicado para melhorar suas condições materiais de vida – mesmo que de forma homeopática e quase irrisória face às oportunidades que a economia mundial oferece neste instante.

E mandou às urtigas valores fundamentais como a honestidade, pois, na percepção cínica que se disseminou entre as massas, todos os políticos roubam, então é preferível ter no Planalto um ladrão que veio do povo.

Daí a sensação de anticlímax na posse. Ninguém espera nada do novo governo moluscóide, além da continuidade do Bolsa-Esmola e de outras pequenas concessões palacianas para tornar a miséria menos insuportável.

Acreditávamos que Lula mobilizaria o povo para mudar o Brasil. Preferiu manter as massas em permanente abulia, dar continuidade à política econômica neoliberal e obter sustentação política por meio do toma-lá-dá-cá de sempre.

Era o Lula-Lá que personificava nossas esperanças. Hoje é, apenas, lula. Com inicial minúscula, em todos os sentidos.

VIVA A MORTE! (dez/2006)

Durante a Guerra Civil espanhola, os fascistas de Franco zurravam “abaixo a inteligência, viva a morte!”. A um ser humano equilibrado dificilmente ocorreria ovacionar a morte... exceto quando a ceifadora nos livra de alguém tão nocivo e vil quanto Augusto Pinochet Ugarte.

Ele conquistou merecidamente o primeiro lugar dentre os ditadores sanguinários latino-americanos: foi quem melhor personificou a monstruosidade dos regimes militares que se abateram sobre a região nas décadas de 1960 e 1970.

Nomeado chefe do Exército por Salvador Allende, tramava o golpe militar na surdina enquanto hipocritamente garantia ao presidente que a ordem seria mantida a qualquer preço e que sua corporação era leal à Constituição.

A tomada de poder foi a mais dramática daquele período: o bravo Allende entrincheirou-se com sua guarda pessoal e os assessores mais leais no Palacio de la Moneda, que os golpistas atingiram com obuses e depois invadiram. Aparentemente, Allende morreu com uma metralhadora na mão, resistindo aos militares desleais. Há quem diga que foi executado.

Ao massacre na sede do poder seguiu-se outro episódio que será sempre lembrado como um dos mais repulsivos do ciclo militar: dezenas de milhares de presos políticos amontoados num estádio de futebol. E a execução pública do extraordinário Victor Jara, cantor e compositor em muito semelhante ao nosso Geraldo Vandré.

Tentando humilhá-lo, os verdugos desafiaram-no a cantar para seus fãs naquele momento. Foi o que o altivo Jara fez, enquanto era espancado até a morte, tendo os companheiros como testemunhas impotentes de sua imolação.

Mais de 3 mil pessoas mortas, 28 mil torturadas, dissidentes assassinados até no exterior: esse banho de sangue jamais será esquecido.

Emblematicamente, o grande poeta Pablo Neruda, Prêmio Nobel de literatura, morreu logo após o golpe, com suas enfermidades agravadas pelo imenso desgosto.

A Unidad Popular estava longe de realizar um governo radical. Tendo como principais forças os socialistas e os comunistas de linha soviética, fazia algo semelhante às reformas de base de João Goulart e nacionalizava uma ou outra empresa estrangeira espoliadora.

Sua desestabilização foi uma clara reedição esquema golpista brasileiro, acrescida de um toque de mestre: o suborno aos caminhoneiros para que promovessem um interminável locaute, de forma que sempre estivessem faltando alguns itens nas prateleiras dos estabelecimentos comerciais. A consumista classe média chilena foi levada à loucura.

Trata-se da quartelada em que ficou mais evidente a instigação e o apoio financeiro dos EUA. Decididos a vencer a guerra fria com a URSS a qualquer preço, os estadunidenses violavam cinicamente a soberania de nações livres.

Um cidadão norte-americano, pai de um hippie assassinado no Chile, acionou seu governo, acusando-o de cumplicidade na morte do filho. Durante esse processo vieram à baila muitos detalhes do envolvimento da CIA e dos assessores militares estadunidenses no golpe. O episódio deu origem a um ótimo filme de Costa-Gravas: “Missing, o Desaparecido”.

A era Pinochet, iniciada em setembro de 1973, findou quando os chilenos disseram “não” à sua permanência no poder, em plebiscito realizado no mês de outubro de 1988. Nem o fato de haver conseguido a duras penas estabilizar a economia do país, colocando-a no rumo do crescimento sustentado, foi suficiente para que nuestros hermanos relevassem seus crimes contra a humanidade. Boa lição para nós.

A pá de cal no prestígio de Pinochet foi a revelação, em 2004, de suas contas secretas no exterior. Até então, era tão cultuado pelas viúvas da ditadura quanto seu congênere Brilhante Ustra no Brasil.

Agora, ele deixa a vida para entrar na História... na qual figurará como um carrasco comparável a Átila, Gengis Khan e Hitler.

O VELHO SENHOR INDIGNO (dez/2006)

Deu na imprensa: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi participar de um almoço de fim de ano com generais, no Clube do Exército, e pagou o convite dando declarações verde-oliva. Disse que a ditadura brasileira "não foi violenta como a do Chile e de outros países".

Alinhando-se à posição do cel. Jarbas Passarinho, ex-ministro de Médici, defendeu a intocabilidade da anistia imposta em 1979 pelos militares, que condicionaram a libertação de presos políticos e o retorno dos exilados ao perdão antecipado dos crimes contra a humanidade cometidos pelas forças de repressão. "No Brasil nós tivemos um processo de anistia negociado inclusive com as pessoas que participaram e foram vítimas", afirmou o presidente.

Impõe-se aqui uma breve recapitulação dos fatos, para aquilatarmos o quanto há de sordidez nessa agressão à verdade histórica e àquele mínimo de dignidade que os homens jamais devem negociar (parafraseando a fala mais marcante de uma peça sobre Galileu Galilei a que assisti na juventude e jamais esqueci).

Em 1980, quando o AI-5 já estava extinto e a pior fase do terrorismo de estado ficara para trás, o Lula passou 51 dias detido no Deops com outros sindicalistas. Os jornais publicavam fotos da turma toda disputando divertidas "peladas". Então, ele deve supor que os presos políticos anteriores a ele tenham recebido o mesmo tratamento vip.

No entanto, para efeito de pleitear reparação da Justiça, ele considerou bem grave a ofensa a seus direitos, já que foi dos primeiros a conseguir pensão vitalícia como perseguido pela ditadura, em 1996.

Bem, ele também foi desalojado da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos. Talvez as rendas de que foi privado equivalessem a 10 anos de uma pensão mensal que hoje supera R$ 4 mil. Quem sabe?

COMBATE NAS TREVAS

Não tivemos mesmo 3 mil companheiros mortos, como no Chile; o número seria de aproximadamente 400. Em contrapartida, lá foram cerca de 28 mil os torturados; cá, uns 50 mil.

A principal diferença é que o banho de sangue chileno se deu logo na tomada do poder e não pôde ser encoberto. Aqui, a aniquilação física, moral e psicológica daqueles que resistiam à tirania se deu nas trevas, sob o manto da censura, como bem ressaltou o Jacob Gorender.

No entanto, teve características extremamente brutais, culminando com a execução sistemática dos militantes presos a partir de 1971, quando os militares decidiram adotar a “solução final” para impedir que revolucionários valorosos pudessem eventualmente ser trocados por diplomatas e voltar à luta.

Para quem, como eu, conhecia pessoalmente uns 20 desses idealistas que foram assassinados durante os anos de chumbo, é simplesmente repulsivo ver o Lula desmerecendo o sacrifício de seres humanos muito melhores do que ele e fazendo média com os milicos.

Para os fardados, afagos, mesmo que tripudiando sobre as torturas que sofremos e o pesar que carregamos até hoje; para nós, a pecha de imaturos e inconseqüentes.

Durante a última campanha eleitoral, ao escrever que Lula estava tão distante dos ideais da esquerda quanto Alckmin, tive de enfrentar as tropas de choque petistas que atuavam no Orkut com tanta virulência quanto os néo-integralistas.

Preferiria que a evolução dos acontecimentos não tivesse me dado razão. Pois houve muito petista realmente de esquerda que foi vítima de mais esse estelionato eleitoral.

Quando sentiu-se ameaçado por Alckmin, logo após o 1º turno, Lula não teve vergonha de ir buscar a retórica de esquerda na lata de lixo onde a tinha jogado, reaproveitando-a da forma mais oportunista: acusou falsamente o adversário de pretender privatizar a Petrobrás.

Obtidos os resultados que almejava com seu jogo sujo, Lula "descobriu" que os sexagenários sensatos devem mesmo é ser centristas, amigos do Delfim Netto e puxa-sacos dos militares...

OS MOTIVOS DO TORTURADOR (dez/2006)

Embora seja impossível simpatizar com os motivos de um Brilhante Ustra ou, sequer, aceitá-los, eu compreendo muito bem o que o leva a sentir-se traído e injustiçado.

Ao comandar o DOI-Codi, ele fez exatamente o que dele esperava o Exército: combateu o inimigo por todos os meios a seu dispor, sem importar-se com os direitos humanos, as convenções de Genebra e outras "perfurmarias". Saiu-se vitorioso e foi aclamado por seus pares.

Veio a redemocratização e ele passou a ser estigmatizado como um monstro... sozinho. Levou merecidamente a culpa por tudo aquilo que seus comandados fizeram. Mas, ninguém se lembrou de cobrar de seus superiores a responsabilidade que tiveram nas atrocidades perpetradas pelo DOI-Codi durante os anos de chumbo. As conveniências políticas falaram mais alto do que o senso de justiça.

Se fosse um homem de caráter, Brilhante Ustra se rebelaria contra aqueles que lhe ordenaram que cometesse crimes contra a humanidade e depois se puseram a salvo, não carregando com ele o fardo do opróbrio. Mas, de quem fez o que fez durante 1970/1974 só poderia esperar-se o caminho tortuoso que preferiu trilhar depois: tentar convencer o Brasil inteiro de que as vítimas é que eram os algozes e ele, um pobre coitado sem culpa nenhuma no cartório.

Seus dois livros repulsivos, entretanto, atraíram contra ele a ira dos justos. Porque são montados a partir das informações arrancadas dos prisioneiros mediante as torturas mais cruéis, seja no próprio DOI-Codi, seja nos aparelhos clandestinos da repressão, de onde não se saia vivo. Era muita impudência utilizar o espólio de sua ignomínia para tentar justificar-se.

Então, eis Brilhante Ustra, mais do que nunca, sendo visto pelos brasileiros como o torturador-símbolo da ditadura militar.

Mas, não serei tão injusto com ele como ele sempre foi com os outros: afirmo, e assino embaixo, que seus comandantes tiveram culpa ainda maior pelas práticas desumanas e desonrosas do DOI-Codi, nessa que foi uma das páginas mais vergonhosas da História do Brasil.

LÊNIN E A RESSACA ELEITORAL (nov/2006)

O período pós-eleitoral costuma ser tedioso e previsível. O atual não foge à regra. De um lado, o anúncio dos aumentos de tarifas e preços que os governos federal, estaduais e municipais haviam represado para evitar danos a seus candidatos – o que, claro, é também uma forma de estelionato eleitoral. Mas, quem liga para isso no Brasil?

De outro, a encarniçada disputa por cargos e posições nos ministérios, secretariados, órgãos públicos e empresas estatais. Alianças políticas são despudoradamente costuradas em termos do naco de poder que caberá a cada partido. Bandeiras, plataformas, propostas para recolocar o País na trilha do crescimento econômico? Isso era só oratória para caçar votos. Dá vontade de vomitar.

As investigações de escândalos e punição dos culpados também perdem subitamente qualquer interesse. Corruptores e corruptos que conseguiram sobreviver até a ressaca das eleições, agora são efusivamente inocentados por seus pares. Bons cristãos, estes acreditam que só pode atirar a primeira pedra quem nunca pecou. E, como sabemos, certos Poderes no Brasil são como os botecos de malandros: basta alguém gritar “Polícia!” para todos saírem correndo...

Last but not least, a imprensa descobre insuspeitadas virtudes nos governantes que antes atacava. Quem vai empunhar a caneta que libera verbas por mais quatro anos merece todos os afagos. Assis Chateaubriand fez escola.

Nesse quadro desolador, pelo menos a “Folha de S. Paulo” mantém a compostura. Em dois dias seguidos desta última semana de novembro destacou assuntos indigestos para o Governo Lula nas matérias-de-capa, ajudando os leitores com espírito crítico a entenderem o que se passa no Brasil de hoje.

Na 4ª feira, 29, revelou que a empresa Gamecorp, da qual é sócio um dos filhos do presidente da República, recebe parte das verbas dos anúncios que o governo federal veicula na Play TV, antigo canal 21. No mínimo, é um caminho meio tortuoso para papai dar mesada ao filhinho...

E, na 5ª feira, 30, a Folha mancheteou que os bancos foram os principais financiadores da campanha de reeleição de Lula, com doações que somam R$ 10,5 milhões. O porquê dessa generosidade foi sugerido logo no 3º parágrafo: “Os bancos, como o próprio Lula disse em discurso recente no qual citava os juros altos, nunca ganharam tanto. No ano passado, lucraram R$ 28,3 bilhões, recorde histórico – e só no primeiro semestre deste ano, R$ 22,2 bilhões (43% a mais do que em 2005)”.

Um livro que saiu de moda mas continua bem atual é “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”, de Lênin, um verdadeiro libelo contra o parasitismo do sistema financeiro e o papel dominante que ele passou a exercer na economia mundial.

Vide, p. ex., este trecho: “O capital financeiro, concentrado em muito poucas mãos e gozando do monopólio efetivo, obtém um lucro enorme, que aumenta sem cessar com a constituição de sociedades, emissão de valores, empréstimos do Estado, etc., consolidando a dominação da oligarquia financeira e impondo a toda a sociedade um tributo em proveito dos monopolistas”.
O que são as taxas astronômicas de juros praticadas em nosso país, se não um tributo imposto a toda a sociedade brasileira em proveito dos monopolistas?

Lênin também foi profético ao escrever em 1916 que “o monopólio [do sistema financeiro], uma vez que foi constituído e controla milhares de milhões, penetra de maneira absolutamente inevitável em todos os aspectos da vida social, independentemente do regime político e de qualquer outra particularidade”.

Pois não é que penetrou até na política econômica do PT, um partido que chegou ao poder com a promessa de dar um basta à sangria do povo brasileiro por parte de banqueiros e rentistas?!

Por essas e outras é que a retórica das campanhas eleitorais, parafraseando Shakespeare, cada vez mais soa para nós como histórias contadas por idiotas, cheias de som e fúria, mas que nada significam...

O WESTERN, QUEM DIRIA, JÁ FOI REVOLUCIONÁRIO E CONTESTADOR... (nov/2006)

Muitos dos que hoje se deslumbram com as estilizações de duelos e a extraordinária trilha musical de “Kill Bill” (Kill Bill: Vol. 1, 2003, e Kill Bill: Vol.2, 2004, d. Quentin Tarantino), ignoram que as primeiras inspiraram-se diretamente nas coreografias dos filmes do diretor Sergio Leone, enquanto várias músicas foram compostas há quatro décadas atrás, por Ennio Morricone, para os bangue-bangues italianos. É que Quentin Tarantino estava prestando um comovido tributo a esses dois mestres, que devem ter-lhe inspirado sonhos e brincadeiras nos seus tempos de menino.

Nascido em meados da década de 1960, o spaghetti-western lavou a alma de todos nós que gostávamos dos bangue-bangues, mas não da caretice dos norte-americanos. Teve surpreendente sucesso nas bilheterias: "O Dólar Furado" (Un Dollaro Bucato, 1965, d. Giorgio Ferroni), p. ex., chegou a ficar em cartaz por cerca de um ano num cinema de São Paulo. Isto se deveu não só a ter ocupado um espaço vazio, já que os norte-americanos haviam deixado de fazer westerns, como também a haver trazido um novo enfoque e uma nova moldura para o gênero.

Tirando obras de exceção como "Matar ou Morrer" (High Noon, 1952, d. Fred Zinneman), "Sem Lei e Sem Alma" (Gunfight at O.K. Corral, 1957, d. John Sturges), "O Matador" (The Gunfighter, 1950, d. Henry King), "Estigma da Crueldade" (The Bravados, 1958, d. Henry King) e "Rastros do Ódio" (The Searchers, 1956, d. John Ford), os faroestes made in USA de até então tinham o insuportável defeito de tentarem nos impingir aquela ladainha da luta eterna do Bem contra o Mal -- um tédio!

O mocinho não fumava, não bebia, não praguejava e nem trepava. A mocinha era recatada donzela. O xerife, pachorrento mas digno. Os índios, selvagens bestiais que tinham de ser tirados do caminho para não atrapalharem o progresso. Os mexicanos, beberrões subumanos.
Mesmo no mato, conduzindo boiada, o mocinho tinha a decência de manter-se sempre limpo e escanhoado. Bah!

O western italiano surgiu meio por acaso. A indústria cinematográfica italiana conseguira nos anos anteriores faturar uma boa grana com filmes épicos e mitológicos. Hércules, Maciste, Ursus, Golias, fundação de Roma, guerra de Tróia, etc. O filão, entretanto, estava esgotando-se e a Cinecittà saiu à cata de um novo produto.

Sergio Leone, então com 34 anos, tinha começado a carreira no neo-realismo italiano (como assistente de direção e diretor de segunda unidade), mas não conseguira alçar-se à direção. Era difícil abrir um espaço entre mestres como Vittorio De Sica, Lucchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, etc.

Então, entre atuar eternamente à sombra dos medalhões do cinema de arte e mostrar seu trabalho no cinema dito comercial, escolheu a segunda opção. Depois de dirigir os épicos “Os Últimos Dias de Pompéia” (Gli Ultimi Giorni di Pompei, 1959, creditado, entretanto, a Mario Bonnard) e “O Colosso de Rodes” (Il Colosso di Rodi, 1961, d. Sergio Leone), teve a sorte de estar no lugar certo, no momento exato, para dar o pontapé de partida num novo ciclo.

Adaptou para o Oeste a história de “Yojimbo” (Yojimbo, 1961), um filme de Akira Kurosawa sobre samurai que açula a discórdia entre dois senhores feudais para prestar-lhes serviço alternadamente, sem que percebam seu jogo duplo. O que Leone fez em “Por Um Punhado de Dólares” ((Per un Pugno di Dollari, 1964), basicamente, foi mudar a ambientação e colocar um pistoleiro caça-prêmios no lugar do samurai.

O protagonista também teve aí seu grande golpe de sorte. Clint Eastwood não emplacara em Hollywood como mocinho, ficando relegado a papéis secundários em séries de TV e a filminhos classe “B” e “C”. Leone percebeu nele um bom anti-herói. Compôs seu personagem (o “Estranho Sem Nome”) com barba rala, chapéu sobre os olhos, charuto na boca, fala arrastada e um poncho. Com isto, acabou alçando-o ao estrelato e fazendo jus à homenagem que depois Eastwood lhe prestaria, ao dedicar-lhe sua obra-prima “Os Imperdoáveis” (Unforgiven, 1992, d. Clint Eastwood).

O que diferenciou o western italiano foi exatamente ter sido feito por cineastas bem diferentes dos tarefeiros hollywoodescos (os ditos “artesãos”, que se limitavam ao feijão-com-arroz artístico que lhes garantisse o dito cujo gastronômico).

Damiano Damiani, Carlo Lizzani e Sergio Corbucci eram outros talentos com a cabeça feita pelo cinema de arte, assim como o superlativo roteirista Sergio Donatti (aliás, até os grandes diretores Bernardo Bertolucci e Dario Argento chegaram a desenvolver uma história para western). Então, não se limitaram a realizar filmes com muita ação e nenhuma vida inteligente; fizeram questão de deixar sua marca, passando mensagens cifradas, dando toques, propondo outra abordagem para o western.

Em vez de um palco em que o Bem vence sempre o Mal, o bangue-bangue italiano mostrou o velho Oeste como uma terra de ninguém, primitiva e selvagem, em que todos perseguem seus objetivos como podem. Evidentemente, há muito mais verossimilhança nesse enfoque do que no norte-americano. O Oeste do século 19 seria algo como o garimpo de Serra Pelada no seu apogeu. Um grotão selvagem e sem lei.

Em vez do herói, o western italiano consagrou o anti-herói: barbudo, desgrenhado, com roupas sinistras, muitas vezes um caça-prêmios, quase sempre um mau-caráter. No fundo, só se diferencia dos bandidos por agir sozinho enquanto os outros atuam em bando.

Lembrem-se: era a década de 1960, quando havia um imenso desencanto com a ordem estabelecida. Rebeldes eram tudo que queríamos ver Não suportávamos mais os heroizinhos c.d.f. de Hollywood. Os Djangos, Sabatas e Sartanas nos cativaram à primeira vista (os únicos mocinhos nos moldes estadunidenses eram os protagonizados por Giuliano Gemma).

E, enquanto os poderosos viraram vilãos, os índios e os peões mexicanos passaram a ser mostrados como vítimas e heróis. Afinal, vários cineastas italianos tinham inclinações revolucionárias, mas não havia nada revolucionário para destacar nos EUA do século 19. A solução foi transferir a ação para o efervescente México, como em "Quando Explode a Vingança" (Giù la Testa, 1971, d. Sergio Leone), "Gringo" (El Chuncho, Quién Sabe?, 1967, d. Damiano Damiani), "Reze a Deus e Cave Sua Sepultura" (Prega Dio... e scavati la fossa, 1968, d. Edoardo Mulagia), "Réquiem Para Matar" (Requiescant, 1967, d. Carlo Lizzani), "Companheiros" (Vamos a Matar, Compañeros, 1970, d. Sergio Corbucci) e "O Dia da Desforra" (La Resa dei Conti, 1966, d. Sergio Sollima).

Toques esquerdistas, sim, eles podiam inserir em filmes ambientados nos EUA:
• o próprio "Django" (Django, 1966, d. Sergio Corbucci), no qual os vilãos são visivelmente inspirados na Ku-Klux-Khan;
• "Quando os Brutos Se Defrontam" (Faccia a Faccia, 1967, d. Sergio Sollima), reflexão sobre a gênese de líderes oportunistas;
• "O Especialista" (Gli Specialisti, 1969, d. Sergio Corbucci), que coloca jovens rebeldes (referência às barricadas francesas de 1968) em ação no Oeste;
• "O Vingador Silencioso" (Il Grande Silenzio, 1968, d. Sergio Corbucci), denunciando o massacre de Johnson Country, quando centenas de imigrantes eslavos foram dizimados pelos barões de gado do Wyoming – o mesmo episódio histórico que foi depois retratado em "O Portal do Paraíso" (Heaven’s Gate, 1980, d. Michael Cimino);
• e o extraordinário "Três Homens em Conflito" (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, 1966, d. Sergio Leone), com algumas das mais marcantes seqüências antibelicistas do cinema.

Uma última característica notável foi libertar a trilha musical da tirania do country. Não mais o que realmente existia nos EUA do século retrasado, como violões, violinos, banjos, gaitas e sanfonas, mas também flauta, saxofone, órgão, sintetizadores, castanholas -- tudo que se harmonizasse com o clima daquela seqüência, pouco importando se tais instrumentos eram encontrados ou não no velho Oeste. Para completar, o uso criativo de sinos, caixas de música, assobios e outros achados. Morricone é, com certeza, o melhor criador de trilhas musicais de todos os tempos.
FILMES INESQUECÍVEIS

"Quando Explode a Vingança" está entre os melhores filmes do Leone. É, na verdade, o segundo da trilogia "era uma vez", que inclui “Era Uma Vez No Oeste” (C’Era Uma Volta il West, 1968, d. Sergio Leone) e “Era Uma Vez Na América” (Once Upon a Time in América, 1984, d. Sergio Leone). Deveria ter-se chamado "Era Uma Vez A Revolução", mas acabou com um título que em italiano significa "abaixe a cabeça" e, nos EUA, "abaixe-se, otário".

Na visão do Leone, os verdadeiros heróis da revolução são os anônimos homens do povo, enquanto os líderes acabam sempre traindo a causa -- seja no México (o médico interpretado por Romolo Valli) ou na Irlanda (o dirigente do IRA que é amigo do John/James Coburn).

Foi feito em 1971, quando os movimentos revolucionários pipocavam na Itália, radicalizando-se progressivamente. Parece expressar o desencanto do Leone com o Partido Comunista Italiano e ser um alerta de que as Brigadas Vermelhas e congêneres teriam destino trágico.

Um lance interessante é mostrar de forma totalmente desumanizada o comandante das forças contra-revolucionárias: ele é visto escovando repulsivamente os dentes, chupando um ovo, olhando pelo binóculo. Leone não lhe concede sequer a dignidade da fala. De sua forma sutil, expressa o desprezo absoluto que tinha pela direita troglodita.

Outra grande sacada do Leone é ressaltar que a História nunca fixa a versão correta dos fatos. A frase que o Irlandês sempre repete, sobre "os grandes e gloriosos heróis da revolução", é um primor de sarcasmo.

* * *

"Três Homens em Conflito" foi, claramente, o divisor de águas na carreira de Sergio Leone, o momento em que ele mostrou ser muito mais do que um (brilhante) artesão.

"Por um Punhado de Dólares" introduziu a figura do anti-herói no centro da trama; a amoralidade básica dos tipos e das situações; a apresentação criativa dos letreiros iniciais, com o uso de animação; a nova concepção musical que Morricone trouxe para os westerns; e um dos personagens mais emblemáticos do bangue-bangue à italiana, o pistoleiro oportunista interpretado por Clint Eastwood.

Em "Por Uns Dólares a Mais" (Per Qualche Dollaro in Più, 1965, d. Sergio Leone), todas essas características foram desenvolvidas e aprimoradas. É um filme muito melhor do que o anterior, mas, paradoxalmente, não apresentou novidades significativas.

A única que vale a pena citar é a colocação de dois personagens em destaque, em vez de um. A partir daí, os filmes de Leone trariam sempre essa dupla de anti-heróis ocupando o espaço dos antigos mocinhos. Depois dos personagens interpretados por Clint Eastwood/Lee Van Cleef em “Por Uns Dólares a Mais”, tivemos Charles Bronson/Jason Robards (“Era Uma Vez no Oeste”), Rod Steiger/James Coburn (“Quando Explode a Vingança”) e Robert De Niro/James Woods (“Era Uma Vez na América”).

"Três Homens em Conflito" foi a obra em que Leone definiu e afirmou seu estilo, embutindo no cinema de ação discussões mais profundas, sem prejuízo do entretenimento propriamente dito. É um tipo de obra em camadas. De acordo com sua sensibilidade, o espectador pode se divertir apenas com o básico ou captar os muitos toques subjacentes.

E é grandiosa a crítica que Leone fez ao belicismo, com algumas das seqüências mais comoventes que o cinema já apresentou: o oficial bêbado sem coragem para destruir a ponte, a orquestra do campo de prisioneiros tocando para abafar os ruídos da tortura, o jovem soldado agonizante a quem o Estranho Sem Nome dá seu charuto.

Nos três filmes seguintes ele dissecaria a lenda (vinganças) e a realidade (construção da ferrovia) no Velho Oeste, as verdades e mentiras de uma revolução e a transição da época glamourosa do aventureirismo para a hegemonia insípida das grandes organizações. Foi o cineasta que conseguiu ir mais longe na proposta de mesclar entretenimento e reflexão, saindo-se tão bem nas bilheterias quanto em termos de qualidade cinematográfica.


* * *

“Keoma” (Keoma, 1976, d. Enzo G. Castellari) foi o canto do cisne do western italiano. E encerrou o ciclo com extrema dignidade. Trata-se daquela única obra-prima que, às vezes, um diretor convencional faz na vida, como que para provar que tinha talento para vôos maiores.

O subtexto é riquíssimo:
• a briga entre os quatro irmãos remete, evidentemente, a Freud e suas teorias sobre a horda primitiva;
• o nascimento da criança num estábulo é um paralelo bíblico, assim como a crucificação do herói;
• a presença da velha índia nos momentos culminantes do filme vem da mitologia grega, ela é um tipo de deusa do destino;
• o herói errante em busca de um desígnio que justifique sua vida também tem inspiração mitológica;
• a peste se constituiu num elemento bíblico e mitológico ao mesmo tempo, além de estabelecer uma ponte com o escritor Albert Camus ("A Peste", "O Estrangeiro"), cujas obras são uma óbvia referência no delineamento do personagem principal;
• finalmente, Castellari reverencia seus mitos cinematográficos -- Keoma é filho de Shane, o herói protagonizado por Alan Ladd em "Os Brutos Também Amam" (Shane, 1953, d. George Stevens), enquanto a presença de Woody Strode no elenco constitui uma homenagem a John Ford, de quem o negro era um dos atores prediletos.

E não foi só Castellari quem se superou, atingindo uma qualidade de que ninguém o suporia capaz. A dupla de compositores Guido e Maurizio de Angelis fez uma trilha musical extraordinária, capaz de rivalizar com as melhores de Morricone. O contraste do baixo com a soprano chega a nos arrepiar, as letras se casam maravilhosamente com o filme.

Em suma: trata-se de um clássico ainda não reconhecido.

O OUTONO DO TORTURADOR (nov/2006)

O coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra está sendo julgado na 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo por seqüestro e tortura praticados em 1972/73 contra o casal César Augusto/Maria Amélia Teles e três parentes. As testemunhas de acusação foram ouvidas no dia 9 de novembro, tendo a repercussão da audiência na mídia provocado uma ampla mobilização de militares da reserva, em apoio ao réu.

Brilhante Ustra comandou, entre setembro/1970 e janeiro/1974, o DOI-Codi de São Paulo, o principal órgão de repressão aos grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura militar. Já foram apresentadas 502 denúncias de torturas referentes a esse período. Pelo menos 40 revolucionários foram assassinados no DOI-Codi, inclusive o jornalista Vladimir Herzog.

O processo contra Brilhante Ustra é de natureza declaratória: não implicará prisão ou indenização, objetivando apenas o reconhecimento oficial de que ele foi um torturador. O que não é pouco, em termos morais.

Os ex-colegas de farda e a defesa de Brilhante Ustra alegam que a Lei da Anistia de 1979 tornou inimputáveis tanto os repressores quanto os revolucionários. Já a família Teles e as entidades de defesa dos direitos humanos argumentam que essa restrição se refere apenas aos crimes, não às ações de natureza civil; foi este, também, o entendimento do juiz da 23ª Vara.

Isto é o que qualquer um pode ler no noticiário. Vamos ao que a imprensa não diz.

LEI DA ANISTIA IGUALOU VÍTIMAS E CARRASCOS

A anistia recíproca de 1979 foi um sapo engolido pela sociedade civil, que abriu mão do ideal de justiça em troca da libertação da maioria dos presos políticos e da volta dos exilados.

Os militares, conscientes de que haviam incidido nas mesmas práticas punidas exemplarmente no julgamento de Nuremberg, fizeram uma barganha muito vantajosa: já que a redemocratização um dia acabaria ocorrendo, trataram de assegurar previamente a não-condenação de seus criminosos.

No fundo, tratou-se apenas da imposição da vontade do mais forte sobre o mais fraco. Tendo usurpado o poder em 1964, os militares governavam o País ilegalmente e sob terrorismo de estado há 15 anos. Usaram presos e exilados como moedas de troca para chantagear os oposicionistas, obrigando-os a aceitar uma solução que atou as mãos do Judiciário e o deixou impedido de cumprir seu papel.

Então, não é um acordo para ser respeitado, mas sim denunciado. E a iniciativa da família Teles poderá ser o primeiro passo nesta direção.

A ditadura militar foi responsável pela morte de mais de 400 revolucionários ou cidadãos suspeitos de sê-lo; pelo desaparecimento de 150 outros militantes, quase todos assassinados e sepultados em cemitérios clandestinos, como o que foi descoberto em Perus (SP); e pela tortura de milhares de brasileiros.

Brilhante Ustra e outros remanescentes dessa direita troglodita alegam, em contrapartida, que as organizações armadas de esquerda teriam vitimado 120 pessoas e ferido outras 330.

Não se trata, entretanto, de uma questão de números, embora o balanço continue sendo desfavorável à ditadura, por mais que seus apologistas distorçam fatos e manipulem estatísticas, em sites como o Terrorismo Nunca Mais, o Mídia Sem Máscara e o Usina de Letras.

O Brasil e muitos outros países do 3º Mundo viveram, nas décadas de 1960 e 1970, a mesma situação dos países ocupados pelo nazi-fascismo durante a 2ª Guerra Mundial. O poder emanava das baionetas. Governos legítimos eram derrubados por conspiradores financiados e apoiados pelos Estados Unidos, como ficou evidenciado de forma cristalina no Brasil.

Em nosso país, a interferência começou com as pressões para que Getúlio Vargas deixasse o poder em 1945; continuaram com o incentivo aos golpistas da UDN, que só não conseguiram seu intento em 1954 porque a carta-testamento de Vargas provocou forte reação popular; e culminaram no apoio ao grupo militar castellista envolvido com a quartelada malograda de 1961 e responsável pela bem-sucedida de 1964.

CONFRONTO ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

Já não há dúvida nenhuma, para os historiadores dignos desse nome, de que não ocorreu aqui um “contragolpe preventivo”, como alegaram na época os militares, mas simplesmente o desfecho de uma conspiração urdida durante anos para a conquista do estado – que, aliás, depois serviria de modelo para a deposição de Salvador Allende no Chile.

No poder, os militares fecharam o Congresso Nacional sempre que lhes aprouve e suspenderam a vigência da Constituição, sobrepondo-lhes os famigerados atos institucionais que baixavam a bel-prazer; extinguiram partidos, sindicatos e entidades; cassaram os mandatos de representantes do povo; organizaram governos de fachada, “eleitos” por um Legislativo expurgado e intimidado; censuraram as artes e as comunicações; prenderam, baniram, torturaram, assassinaram, ocultaram cadáveres.

Na prática, comportaram-se como tropa de ocupação, tanto quanto os nazistas nas nações por eles conquistadas. E os cidadãos que ousaram enfrentá-los, apesar da terrível desigualdade de forças, equivalem em tudo e por tudo aos movimentos europeus de resistência da década de 1940.

A celebrada Resistência Francesa também atingiu vítimas inocentes em algumas ocasiões, mas a nenhum energúmeno ocorre hoje compará-la aos nazistas ou ao governo fantoche de Vichy.

Da mesma forma, devem-se reprovar alguns excessos cometidos pelos revolucionários brasileiros que combatiam de forma quase artesanal a poderosa engrenagem repressiva montada pelos militares e seus instrutores norte-americanos, mas é inaceitável e desonesto argüir uma pretensa equivalência dos crimes. Só um lado agrediu, continuada e sistematicamente, os valores mais sagrados da civilização.

Pois é disso que se tratou: um confronto entre civilização e barbárie.

A PENA DE BRILHANTE USTRA: EXECRAÇÃO PÚBLICA

Países como a Argentina e o Chile avançaram bem mais do que o Brasil na apuração dos crimes cometidos pelas ditaduras militares.

Quanto à punição, ao contrário dessas nações que não relativizaram o sentimento de justiça e têm o mínimo respeito por seus mártires, continuamos na estaca zero.

Daí a importância de que Brilhante Ustra seja, como merece, exposto exemplarmente à execração pública.

Sua defesa alega que ele nada sabia das práticas cotidianas do órgão que comandava. Para tornar essa versão plausível, deveria ter anexado um atestado de surdez. Quem passou pelos porões da ditadura – ou, mesmo, morava nas redondezas – sabe quão inconfundível era a “trilha sonora” de uma sessão de tortura: os gritos raivosos dos torturadores e os urros inumanos dos torturados ao receberem choques elétricos; ruídos de socos, pontapés e objetos caindo.

Se hoje os comandantes fogem às suas responsabilidades, preferindo utilizar os comandados como biombo, bem diferente foi a atitude do general-presidente Geisel: ao tomar conhecimento do assassinato de Vladimir Herzog no DOI-Codi de Brilhante Ustra, não preferiu o caminho fácil da omissão, mas ordenou ao aparelho repressivo que evitasse uma repetição daquele fato; ao saber da morte de Fiel Filho nas mesmíssimas circunstâncias, não vacilou, extinguindo de imediato aquele órgão maldito e dispersando seus integrantes.

Um ditador podia ter, ao menos, dignidade pessoal. Um torturador, jamais. Nem antes, nem agora.

Quanto ao argumento de ordem humanitária – se não se puniu Brilhante Ustra (ou seu congênere chileno, Pinochet) no momento certo, não seria melhor agora deixar o ancião morrer em paz? – é respeitável. A prescrição dos delitos evita que cidadãos sejam punidos quando já não têm periculosidade, possibilidade de reincidir e, às vezes, nem mesmo discernimento para entenderem o porquê da punição.

A prática do estado de Israel de caçar criminosos de guerra nazistas no mundo inteiro, até seqüestrando-os para submetê-los a julgamento, chocou a consciência civilizada. Foi excessiva, além de haver incidido em novos crimes a pretexto de punir os crimes passados.

Não equilibraríamos os pratos da Justiça seguindo esse exemplo – nem, no outro extremo, simplesmente passando uma borracha em todas as atrocidades que foram cometidas durante a ditadura. Para encontrarmos um ponto de equilíbrio, o caso de Brilhante Ustra é dos mais propícios.

Primeiramente, porque não se pede sua prisão, mas, apenas, que lhe seja oficialmente imputada a responsabilidade moral por tudo aquilo que fez.

E, tendo escrito dois livros de justificação dos crimes contra a humanidade que ele e outros torturadores cometeram, bem como de calúnias contra suas vítimas, mantém a periculosidade, já que tenta envenenar as novas gerações; reincide em seus crimes, na medida que defende as práticas da força contra o Direito; e prova que não perdeu o entendimento das coisas, embora a velhice não lhe tenha trazido lucidez nem arrependimento.

Não se trata de satisfazer desejos de vingança, mesmo que justificáveis. Mas, de sinalizar para os pósteros que certos limites jamais devem ser transpostos. Pois aqueles que os transpuserem não escaparão da punição, seja com as penas de morte e detenção decididas pelo tribunal de Nuremberg, seja com a marca da infâmia que, se for feita justiça, vai acompanhar Brilhante Ustra pelo resto dos seus dias.

MP ATINGE DIREITOS DOS ANISTIADOS (ago/2006)

O presidente Lula há quase duas décadas recebe uma pensão de vítima da ditadura militar. Motivo: ter ficado algumas semanas preso no Deops, jogando bola com outros sindicalistas, conforme se via nas fotos publicadas em jornais e revistas da época; e haver sido desalojado arbitrariamente da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que, ao que se saiba, é um mandato temporário e não um emprego fixo.

Hoje sua pensão supera os R$ 4 mil mensais. E o total que ele já recebeu ultrapassa R$ 700 mil.
Apesar disso, ele não tem pejo de passar por cima dos direitos das verdadeiras vítimas da ditadura – aquelas cuja carreira não foi alavancada, mas sim comprometida pelas perseguições, torturas e detenções sofridas.

Ao assumir a Presidência da República, prometeu solenemente aos ex-presos políticos que aumentaria de forma substancial os recursos para pagamento das reparações decididas pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

No último mês de julho, entretanto, editou Medida Provisória escalonando de 2007 a 2016 o pagamento das indenizações retroativas que a Comissão concede. Isto depois que várias dessas indenizações já foram pagas, aos priorizados na marcação de julgamentos.

Durante a minha luta em 2004 e 2005, demonstrei cabalmente que os critérios da própria Comissão para agendar julgamentos não estavam sendo seguidos, permitindo que os favoritos da corte palaciana fossem passados à frente dos demais. O Ministério Público Federal, por mim acionado, constatou várias irregularidades.

Agora, estabelece-se uma diferenciação odiosa: quem teve sorte (ou bons padrinhos) e foi pago antes, recebeu tratamento vip; os demais, relegados à vala comum, precisarão sobreviver por mais dez anos se quiserem receber tudo que o Estado brasileiro lhes deve.

Os direitos atingidos, cobertos por essa reparação, remontam principalmente à fase 1964/1975. Os anistiados, em sua maioria, são septuagenários ou octogenários. Quantos estarão vivos em 2016?

Vale ressaltar, também, que as tais "indenizações milionárias" trombeteadas na mídia e utilizadas "ad nauseam" como argumento pelos adversários do programa não passam de algumas dezenas -- e são exatamente as que foram passadas na frente. Estamos falando agora de pessoas que tiveram suas vidas praticamente destruídas por um regime de exceção e precisam das reparações para ter alguma paz de espírito nos anos que lhes restam.

Cabe ao Congresso Nacional rejeitar esta MP iniqüa e inconstitucional. E aos cidadãos decentes, exigir que, neste e em tantos outros casos, comece a ser feita justiça em nosso país.

RESCALDO DA ELEIÇÃO (nov/2006)

A Arena era o maior partido do Brasil. Foi perdendo influência nos estados pujantes e acabou sobrevivendo por uns tempos graças as grotões, onde se trocam votos por esmolas.

Virou PDS, dividiu-se em dois (os direitistas convictos ficaram com o Maluf e os fisiológicos formaram o PFL), foi decaindo miseravelmente.

Depois foi a vez de dois partidos que começaram na esquerda e, quanto mais poder foram conquistando, mais para a direita descambaram: PMDB e PT.

O trágico não é o PT ter saído destas eleições como o novo partido dos grotões e dos estados que vivem pendurados nas tetas do governo federal; mas sim o fato de que o tucanato, quem diria, se tornou a opção progressista. Os auto-suficientes votaram em Alckmin, os eternos dependentes votaram em Lula. Que tristeza!

Desde o ano passado eu vinha advertindo que a esquerda ética precisava se tornar a alternativa ao "neoliberalismo com formação de quadrilha" corporificado no PT. Não conseguiu. À falta de melhor opção, o Brasil dinâmico acabou alinhado com os tucanos. O Brasil do atraso ficou com o Lula.

Numa comparação com os estadunidentes, foi como se o Sul escravagista tivesse vencido o Norte industrializante. Naquela guerra civil, os EUA escolheram ter um futuro grandioso (independentemente da avaliação que façamos do seu papel como potência - a minha é a mais negativa possível). O Brasil acaba de decidir que continuará mais quatro anos patinando sem sair do lugar. Outra década perdida à vista!

Há quem me recrimine por dar como certos e definitivos os eventos que ainda vão acontecer. No entanto, o raciocínio é simples:
* Como poderia o Brasil voltar a crescer tanto quanto precisa, ou seja, pelo menos 8% ao ano? Reduzindo os juros, claro!
* O que impede a redução dos juros? Os débitos do passado e a continuidade da gastança desenfreada do setor público. Nestas condições, os juros estratosféricos são o único freio que, reprimindo o consumo, impede uma disparada da inflação.
* Alguém vê em Lula o líder capaz de confrontar os credores externos e internos, propondo uma alternativa a essa engrenagem que tritura as esperanças do povo brasileiro? Fala sério! Arroubos retóricos à parte, ele nada fez até agora que verdadeiramente incomodasse os poderosos do mundo.
* Alguém considera que Lula seja capaz de dar um basta ao uso e abuso do estado por interesses privados, que tornou a nossa carga tributária uma das maiores do mundo? Fala sério! Quem fez Ministérios brotarem como cogumelos, para acomodar todos os interesses fisiológicos, não vai se regenerar da noite para o dia.

O que teremos, obviamente, é a manutenção da política econômica neoliberal praticada nos dois governos de FHC e no primeiro mandato de Lula. Aliás, mal acabava de vencer as eleições, ele correu a desmentir que a ortodoxia palocciana seria enterrada junto o próprio. Para tranqüilizar os banqueiros, rentistas e grandes empresários, Lula não hesitou em jogar um balde de água fria nos que ainda sonhavam com alguma melhora.

Assim, este segundo mandato de Lula será apenas um fim de feira. Com o agravante de que, já não ambicionando uma reeleição, ele resistirá menos ainda (se isto é possível!) ao assalto aos cofres públicos por parte dos "bons companheiros".

Incapaz de imprimir um novo rumo à sua administração, até porque já não conta com os quadros petistas de esquerda que lhe davam alguma consistência política, Lula tende à inércia. É o prognóstico que a Folha de S. Paulo fez em editorial; subscrevo-o.

Quanto a nós, que ainda não abrimos mão dos ideais de justiça social e de comprometimento ético na política, teremos um trabalho imenso pela frente. Sabendo, desde já, que à putrefação do lulismo provavelmente vai seguir-se uma nova ascensão tucana -- pois é o setor dinâmico que, mais dia ou menos dia, acaba sempre prevalecendo. O lulismo aguentará mais uns tempos representando o Brasil do atraso e depois vai para a lata de lixo da História.

Nesse meio tempo, cabe-nos reconstruir a esquerda. Precisamos juntar os cacos e empurrar a pedra de novo para o topo da montanha -- se quisermos ser a alternativa ao tucanato na próxima década.

De resto, temos de fazer até o impossível para evitar que, com suas delinqüências e ilegitimidade, o Governo Lula dê ensejo a uma nova ditadura. Pois não existe melhor pretexto para a escalada da direita troglodita do que o mar de lama em que chafurdam as instituições.

E este seria um péssimo momento para entrarmos em confronto com os fascistas, já que estamos enfraquecidos pela traição do PT e pela desmoralização por ele acarretada à esquerda como um todo.

Temos de preservar a democracia, custe o que custar. E colocar como prioridade máxima a reconquista do respeito da população.

REFLEXÕES SOBRE O RAULZITO E A SOCIEDADE ALTERNATIVA (out/2006)

No início dos anos 80, quando trabalhava em revistas de música, tive uma breve amizade com o Raul Seixas. O que nos aproximou foi termos ambos 1968 como referencial maior de nossas existências. Músicas tipo "Metamorfose Ambulante", “Tente Outra Vez”, "Cachorro Urubu" e "Sociedade Alternativa" lavavam minha alma, num momento em que a velha esquerda autoritária e rabugenta se reconstruía, passando como um rolo compressor sobre os sonhos da "geração das flores".

De papos sóbrios e etílicos que tive então com o Raulzito, posso dizer que o lance da sociedade alternativa era, basicamente, o de agruparmos as pessoas com boa cabeça em comunidades que estivessem, ao mesmo tempo, dentro do sistema (fisicamente) e fora dele (espiritualmente).

Essas comunidades existiram no Brasil, de 1968 até meados da década seguinte. Nelas praticávamos um estilo solidário de vida, buscando reconciliar trabalho e prazer. Procurávamos ter e compartilhar o necessário, evitando a ganância e o luxo.

Acreditávamos que um homem novo só afloraria com uma prática de vida nova; quem quisesse mudar o mundo dentro das estruturas podres, acabaria sendo, isto sim, mudado pelo mundo. Uma verdade que acaba de ser, mais uma vez, demonstrada, com a adoção pelo PT da política econômica neoliberal e das práticas delinqüentes antes criticadas nos inimigos.

Então, em vez de conquistar o governo para tomar o poder e construir uma sociedade mais justa, como tenta em vão fazer a velha esquerda, nós acreditávamos em ir praticando uma vida não-competitiva em comunidades que se entrelaçariam e cresceriam aos poucos, até "engolirem" a sociedade antiga.

Mantenho basicamente esse ideal – tanto que, em meu próximo livro, pretendo exatamente resgatar teses e posturas da chamada Nova Esquerda dos anos 60, provando que, mais do que nunca, apontam o caminho para sairmos deste inferno que o capitalismo globalizado engendrou.


O NÉO-ANARQUISMO

Se, como todo mundo diz, a Sociedade Alternativa proposta pelo Raulzito tinha muito a ver com os livros do bruxo Aleister Crowley (que ele e o Paulo Coelho andaram traduzindo do original), também se inspirava nas barricadas parisienses, nas comunidades hippies e na contracultura, o que poucos apontam.

Ele e eu conversamos muito sobre isso; éramos ambos saudosos dos tempos em que tentávamos nos tornar homens novos na convivência solidária com os irmãos de fé, em nossos "territórios livres".

A referência ao maio/1968 francês é óbvia, por exemplo, na segunda estrofe de "Cachorro Urubu": "E todo jornal que eu leio/ me diz que a gente já era,/ que já não é mais primavera./ Oh, baby, a gente ainda nem começou."

Os conservadores (incluindo a velha esquerda stalinista) sempre tentaram reduzir a obra do Raulzito a uma provocação artística, sem maiores conseqüências políticas e sociais. Mas, ele não era meramente um gênio de comportamento anárquico, como tentam retratá-lo, folclorizando-o para torná-lo inofensivo.

Era, isto sim, um homem sintonizado com o néo-anarquismo que esteve em evidência na Europa e EUA na virada dos anos 60 para os 70. E só não dizia isso de forma mais explícita em suas canções porque o Brasil era um estado policial, submetido a uma censura rígida, embora burra.
Este não era, claro, o único aspecto de sua multifacetada personalidade – talvez nem o principal. Mas é o que mais tem sido omitido pelos que querem fazer dele apenas um monumento do passado, não um guia para a ação no hoje e agora.


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Eu vivi na estrada e em comunidade, em 1971/72. Foi uma experiência riquíssima.
O que atrapalhava muito era a tensão entre a liberdade que queríamos construir em recinto fechado e o terror e o medo que grassavam "lá fora". Vivíamos acuados, os cidadãos comuns nos olhavam com receio ou rancor por causa de nossas cabeleiras e roupas extravagantes. Enquanto isso, a economia deslanchava e alguns sentiam-se tentados a ir buscar também o seu quinhão do "milagre brasileiro".

Hoje, quem tem olhos para ver já pode aquilatar o que é a sociedade de consumo e a posição de país periférico na economia globalizada: parafraseando Conrad, "o horror, o horror!".

Acostumado aos tempos em que se trabalhava para viver, eu não consigo aceitar que atualmente as pessoas vivam para trabalhar, mobilizadas por objetivos profissionais umas 14 horas por dia (expediente, horas extras que dificilmente são pagas, cursos e mais cursos de atualização profissional, etc.).

E tudo isso para quê? Para poderem comprar um monte de objetos supérfluos e quase nunca encontrarem relacionamentos gratificantes no dia-a-dia, pois as pessoas já não sabem mais interagir – querem apenas usar umas às outras.

Então, fico pensando que, em lugar de levarmos vida de cão dentro do sistema, poderíamos todos estar nos agrupando em casarões da cidade e sítios no campo, criando pequenos negócios para subsistência, plantando, levando uma vida simples mas solidária. Reaprendendo a ter no outro um irmão e não um competidor.

Essas comunidades urbanas e rurais se entrelaçariam, ajudando umas às outras, trocando o que produzissem, prescindindo dos bancos, escapando dos impostos e das formas de controle do Estado. Em suma, praticando criativamente, adaptados aos dias de hoje, os ensinamentos de Thoureau em "A Desobediência Civil".

Seria um ponto de partida. E, conforme os "territórios livres" fossem crescendo, poderiam até virar algo mais sério – uma alternativa para toda a sociedade.

Enfim, o importante mesmo é começar a caminhada, dando um passo depois do outro.


COMO FAZER

Nas comunidades de 1968/72, o que se fazia era reviver a velha democracia grega: reuniões para se decidir os assuntos mais importantes, para nos conhecermos melhor, para sonharmos e brincarmos.

Podia começar num debate acirrado e terminar com todo mundo nu dançando ao som de "Let the sun shine in" (com inocência, pois não éramos dados ao sexo grupal).

Enfim, tentávamos existir plenamente como grupo, esforçando-nos para superar o egoísmo e a possessividade.

Havia problemas, claro. Emprestávamos ao outro o que ele estava precisando mais, numa boa; só que, às vezes, descobríamos na enésima hora que alguém tinha levado sem pedir aquilo que a gente ia usar. Dava discussão e os limites tinham de ser depois definidos na reunião coletiva da nossa "comuna".

Também não era fácil administrar o jogo das paixões. Minha amizade com um ótimo companheiro andou estremecida por uns tempos quando a namorada rompeu com ele e iniciou uma relação comigo. Por mais que quiséssemos nos colocar acima de sentimentos menores como o ciúme, eles existiam e nos machucavam.

O importante, entretanto, era essa vontade que todos tínhamos de superar as limitações de nossa educação pequeno-burguesa e viver de forma generosa e solidária. Quando alguém tinha um problema, era de todos. Quando alguém estava triste, logo um companheiro ia perguntar o motivo. Tudo que podíamos fazer pelo outro, fazíamos.

Onde erramos? Duas vaciladas fatais implodiram nossa comuna. Uma foi deixarmos a droga correr solta – LSD e maconha, principalmente, pois o propósito era abrirmos as portas da percepção, no dizer de Huxley. Isto, entretanto, trouxe à tona facetas da personalidade reprimida que o grupo não conseguia administrar. Acabaram ocorrendo conflitos, separações.

A outra foi recebermos de braços abertos todos os "pirados" que apareciam, vendo um amigo em cada pessoa que parecesse estar “fora do sistema”. Como sempre, apareceram os aproveitadores, os parasitas, os pequenos marginais. E a polícia veio atrás.

Mas, as experiências que vivenciamos foram tão intensas que aquele ano valeu por uns cinco. Foi com imenso pesar que vimos aqueles laços se romperem, sendo obrigados a voltar, cada um por si, à luta inglória pela sobrevivência. É uma tortura ser obrigado a correr de novo atrás do ouro de tolo, quando não se tem mais aquela velha opinião formada sobre tudo...

Com algumas correções de rumo e numa conjuntura menos repressiva, as comunidades ainda poderão ser viabilizadas. Há que se tentar outra vez. Mesmo porque, como disse o Raul, "basta ser sincero e desejar profundo/ você será capaz de sacudir o mundo".
POST SCRIPTUM:
APROFUNDAMENTO DA MATÉRIA A PARTIR
DAS DISCUSSÕES QUE SUSCITOU NO ORKUT

A tentativa de irmos engendrando uma alternativa ao sistema dentro do próprio sistema tem muito mais a ver agora do que no tempo do Raul, pois os homens precisarão unir-se para enfrentar a crise do aquecimento global.

Na segunda metade deste século, o planeta será fustigado por terremotos, maremotos, furacões, tufões, tsunamis, inundações, fome e seca. As perdas poderão ser diminuídas se os homens se ajudarem mutuamente, sem o egoísmo e a competitividade capitalistas; caso contrário, até mesmo o fim da espécie humana não estará descartado.

O futuro da espécie humana não pode ficar à mercê da ganância, sob pena de interesses mesquinhos acabarem destruindo o planeta.

Os homens têm de encontrar formas de organizar-se para a produção em termos solidários, visando o bem comum e não o lucro. Cooperarem em vez de competirem.

Mas, isso não pode ser imposto por uma burocracia, de cima para baixo. Chega de ditadura do proletariado, estatização compulsória da economia e outras experiências que tiveram maus resultados!

É uma mudança de cultura que teremos de efetuar voluntariamente, se quisermos legar aos nossos descendentes algo além de uma Terra arrasada.

Teremos de construir algo novo a partir da cooperação voluntária dos cidadãos. Mostrar que o bem comum deve prevalecer sobre os interesses individuais. Convencer os recalcitrantes ou mantê-los fora da nova sociedade que estivermos criando. Mas, fazer o possível e o impossível para evitar que ela também descambe para a coerção e a repressão.

E não serão os podres poderes atuais que vão encabeçar essa luta. A união de que necessitamos deve ser forjada a partir de agora, como uma rede a ser montada pelas pessoas de boa cabeça, independentemente de governos e partidos políticos.

Se o enfrentamento da maior ameaça que a humanidade já conheceu não propiciar o surgimento de uma sociedade melhor, nada mais o fará.
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