Personagens repulsivos, patéticos ou meramente insignificantes dão nome a uma infinidade de rodovias, ruas, avenidas e praças brasileiras. Antigamente, ao ver na placa uma homenagem descabida, eu até me indignava. Com o tempo, passei a encarar o fenômeno de forma mais condescendente, como parte da geléia geral brasileira, tão bem retratada pelos compositores do tropicalismo.
Mário Hato, que foi meu professor de Química no colegial e depois fez carreira política, explicou-me que há um acordo de cavalheiros no Legislativo: vereadores e deputados não vetam as propostas louvaminhas dos seus colegas, salvo em casos extremos – como o ocorrido quando o hoje deputado estadual Carlos Giannazi tentou fazer com que escolas da rede pública reverenciassem a memória dos revolucionários Carlos Marighella e Carlos Lamarca. A bancada de extrema-direita reagiu de forma exacerbada.
Para melhor acomodar vaidades póstumas, chega-se a atribuir vários nomes à mesma rua: para cada trecho, um homenageado. Se fosse descendente de algum desses pseudo-figurões, eu me sentiria ofendido: por que uns são lembrados ao longo de uma estrada inteira e outros têm de se contentar com míseras centenas de metros de uma via secundária?
Meu companheiro de lutas Eremias Delizoicov, que era menor de idade quando tomou a decisão de confrontar uma ditadura bestial e acabou sendo assassinado aos 18 anos, com 35 balaços cravados no corpo, virou nome de uma rua que ninguém conhece, onde ninguém sabe ir e que ninguém jamais viu.
É muito pouco para quem perdeu tanto. Tenho me empenhado em conseguir que, pelo menos, uma escola paulistana receba o nome do Eremias, mantendo viva a lembrança do seu sacrifício – até porque é como estudante que nós, os amigos de infância, nos recordamos dele. Está difícil.
Já a Câmara Municipal de Ribeirão Preto acaba de decidir que uma via pública desse simpático município paulista receberá o nome de Juarez Guimarães de Brito, com a seguinte inscrição na placa indicativa da rua: "patriota brasileiro assassinado pela Ditadura Militar".
Fico pensando em como o bom Juvenal (o nome-de-guerra pelo qual o conhecíamos) receberia a qualificação de "patriota". Era um internacionalista, adepto fervoroso da liberdade e justiça social para todos os povos e nações.
Enfim, vale a intenção e é merecidíssima a homenagem a quem deixou uma cátedra universitária para ser professor de humanidade na guerrilha. Sua obsessão em planejar exaustivamente as ações armadas, de forma a reduzir a um mínimo a possibilidade de derramamento de sangue, chegava a ser comovente.
Preferiu, até o fim, correr riscos do que causá-los a outros. Era quem mais se aproximava do homem novo que tínhamos como meta: o indivíduo livre da ganância e do egoísmo, totalmente voltado para o bem comum, que construiria a si próprio à medida que fosse construindo a sociedade nova.
Lesa-humanidade – No outro extremo, a cidade paulista de São Carlos houve por mal ter uma rua com o nome de Sérgio Paranhos Fleury, o que levou os grupos Tortura Nunca Mais de SP e RJ a protestarem energicamente:
– Este delegado de Polícia, integrante do Esquadrão da Morte, em São Paulo nos anos de 1960, tornou-se um dos principais agentes do terrorismo de Estado que se instaurou em nosso país oficialmente após o AI-5. (...) Entendemos que tal "homenagem" produz uma memória que enaltece os crimes de lesa-humanidade cometidos por estes agentes.
Trocando em miúdos: atuando no radiopatrulhamento de São Paulo, Fleury organizou um grupo de extermínio semiclandestino chamado Esquadrão da Morte, que, aparentemente, queria livrar a sociedade de suas ervas daninhas.
Requisitado pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social, alcançou repercussão nacional ao comandar a operação que resultou na morte do guerrilheiro Carlos Marighella. Graças à censura, a opinião pública não foi informada das torturas brutais mediante as quais chegou ao seu alvo, nem que organizou a emboscada de forma tão canhestra que o fogo cruzado acabou matando também uma policial e o motorista de um veículo que trafegava na região.
Responsável por um festival de horrores, incluindo a execução de prisioneiros como Devanir José de Carvalho, Fleury ainda cedia seu sítio como aparelho clandestino para os serviços sujos da repressão. Por lá passou Eduardo Leite, o Bacuri, no longo calvário que antecedeu seu assassinato.
Apesar das evidências gritantes da responsabilidade de Fleury nos crimes do Esquadrão da Morte, a ditadura militar não deixava que o bravo promotor Hélio Bicudo o colocasse na cadeia. Chegou até a criar uma lei com o único objetivo de impedir que, pronunciado, Fleury tivesse de aguardar preso o julgamento.
O guarda-chuva protetor só foi retirado quando Bicudo conseguiu provar que Fleury não eliminava marginais em benefício da sociedade, mas sim para fazer jus às recompensas de um grande traficante, empenhado em livrar-se da concorrência. Moralistas, os generais admitiam acobertar um justiceiro, mas não um capanga da contravenção.
Para piorar, com o fim da luta armada haviam terminado também as recompensas que os empresários direitistas ofereciam pela prisão ou morte dos revolucionários; e os rapinantes da repressão já não podiam mais apropriar-se dos bens de suas vítimas, outra das fontes de renda que lhes permitira viver muito acima de suas posses.
Fleury, dono de uma lancha, teria morrido ao cair na água. Falou-se muito em queima de arquivo: sem conseguir mais sustentar o vício que teria (cocaína), ele estaria exigindo dinheiro de seus antigos financiadores para não trombetear o que sabia. Como entre eles havia até sádicos que atuaram como torturadores voluntários de presos políticos, dá para imaginar o efeito devastador de uma chantagem dessas... e as prováveis conseqüências.
Nem mesmo os neo-integralistas gostam de mirar-se num exemplo desses, preferindo esquecer que Fleury existiu. Os vereadores de São Carlos provavelmente não sabiam de quem se tratava.
Independentemente do desfecho deste episódio, será sempre uma gota d’água no oceano. Uma busca no Google revela a existência, p. ex., de várias ruas com o nome de Filinto Muller, o torturador-símbolo da ditadura getulista, que chegava a ser comparado aos carrascos da Gestapo.
Para não falar das avenidas Presidente Médici que há no País inteiro, homenageando quem nunca foi presidente eleito pelo povo, mas sim ditador empossado pelas baionetas, sendo responsável pelo período mais tenebroso da História brasileira.
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3 comentários:
Eu não tenho meios de verificar a fundo, mas meu professor de história disse que o nome do prédio do Senado Federal é, até hoje, Filinto Muller.
Meus antepassados, da minha cidade, não são lembrados apesar de ter tido papel importante na fundação da cidade.
Nas placas estão estampadas nomes de alguns que nem sabemos o que foram, outros que conhecemos bem suas histórias vasias que nada edificaram em falor da comunidade. Estão lá os avós, mães e bisavós dos políticos que escolheram tais nomes.
Eu vou sugerir um lugar, pois no lugar, poucos sabem, como eu sei! Não querendo enganjar-me nos pensamentos acerca de política: nem contra ou a favor. Quero corrigir que em Julho de 1969, com 06 anos de idade, vim morar no bairro de Vila Kosmos (com 'K - a Kosmos Engenharia construiu o bairro numa antiga Fazenda de Guilherme Guinle!),e a rua citada aonde "tomobou" Eremias Delizoicov, chama-se Toropi e não Toroqui ou Tocopi, como dizem desinformados "historiadores"; aliás, no número 59, reside a minha amiga, Mariza, que em 1969 era muito jovem e o seu pai alugou a casa para os chamados "terroristas" sem saber de quem se tratava, o grupo: ela e seu pai foram incomodados pelo serviço reservado das Forças Armadas, achando que tinham participação! Lembro-me como se fosse hoje, o barulho dos tiros; os muros eram baixos e a casa 59 da rua Toropi era fronteiriça à minha, na rua Alecrim, aonde resido há 40 anos. A rua Toropi ficou cercada de viaturas do Exército, de ponta a ponta. Um grupo invadiu a casa pela rua de trás (Assurema), pulando o muro, enquanto outros seguiram pela frente. Dias antes (ou horas antes!? - não lembro!) a "nossa" lavadeira (apelidada de Lola - que reside no morro do Juramento, desde aquela época!), e que ainda está viva, viu um homem sem as unhas (sangrando nas mãos!) apontando para a casa, indicando o local, de dentro de um carro, agarrado por vários homens que o ameaçavam. Teria sido Carlos Minc!? É verdade que Lamarca esteve aqui, dias antes? Dizem, que sim! Mariza conta que num dos quartos, pedaços de crânio ficaram grudados na parede, provavelmente de quem morreu baleado no local (Eremias). Lembro-me como se fosse hoje, também, o meu falecido pai mostrando à minha mãe o Jornal Correio da Manhã com a foto de um dos quartos da casa, talvez aquele aonde mataram Eremias, com várias placas de carro penduradas. Se não me engano, o cofre do Governador Ademar de Barros foi recuperado no local! Sim: eu me lembro do que vi e do que ouvi! Minha sugestão: no entrocamento entre a rua Toropi, Abagerú e Imbiaçá existe um Largo, que pode vir a ser chamado Eremias Delizoicov. Quero ser convidado ao evento para homenagear quem por 40 anos ficava imaginando o nome. (21 33510191; advleonardoamorim@yahoo.com.br).
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