Os mais perspicazes certamente terão notado um certo comedimento – e até constrangimento – em personalidades, publicações e agrupamentos de esquerda, ao reverenciarem a memória de Guevara, no 40º aniversário de sua morte. Alguns falaram pouco. Outros, platitudes. Como um personagem tão grandioso pôde inspirar textos tão insossos?
O fato é que o mito do Che expõe uma fratura na teoria e prática da esquerda mundial: grande parte dela desistiu, provisória ou definitivamente, de unir os proletários de todos os países numa maré revolucionária que varresse o planeta, conforme Marx e Engels pregaram desde o Manifesto do Partido Comunista, de 1848.
Levando em conta não só que os trabalhadores do mundo inteiro estavam irmanados pela sina de terem uma substancial parcela da riqueza que geravam (a mais-valia) expropriada pelo patronato, como também que a exploração capitalista havia subjugado países e culturas, submetendo trabalhadores de todos os quadrantes a uma mesma lógica de dominação, os papas do marxismo profetizaram que o socialismo seria igualmente implantado em escala global, começando pelas nações de economias mais avançadas e se estendendo a todas as outras.
O movimento revolucionário foi, pouco a pouco, conquistado pela premissa teórica do internacionalismo, ainda mais depois que a heróica Comuna de Paris foi esmagada em 1871 pela ação conjunta de tropas reacionárias francesas com o invasor alemão. Se as nações capitalistas conjugariam suas forças para sufocar qualquer governo operário que fosse instalado, então os movimentos revolucionários precisariam também transpor fronteiras, para terem alguma chance de êxito – foi a conclusão que se impôs.
A 1ª Internacional, que havia sido fundada sete anos antes, soçobrou principalmente devido ao impacto da derrota da Comuna de Paris sobre o conjunto do movimento operário europeu, mas a semente plantada frutificou na poderosa 2ª Internacional, que aglutinou em 1889 os grandes partidos socialistas consolidados nesse ínterim.
A bonança, entretanto, não fez bem a esses partidos. Muitos dirigentes, deslumbrados com os aparelhos conquistados, passaram a querer mantê-los a qualquer preço, lutando por melhoras para a classe operária do seu próprio país, em detrimento da solidariedade internacional. E teorizaram que o socialismo poderia surgir a partir das reformas realizadas pacificamente e do crescimento numérico da classe média, sem necessidade de uma revolução.
A deflagração da 1ª Guerra Mundial cindiu definitivamente o movimento revolucionário: os reformistas acabaram alinhados com os governos de seus respectivos países no esforço guerreiro, enquanto os marxistas conclamaram os proletários a não dispararem contra seus irmãos de outras nações.
Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo encabeçaram a reação contra os (por eles designados pejorativamente como) sociais-patriotas e os trâmites para a fundação da 3ª Internacional, contraponto àquela que perdera sua razão de ser.
O socialismo num só país – Em 1917, surgiu a primeira oportunidade de tomada de poder pelos revolucionários desde a Comuna de Paris. E os bolcheviques discutiram apaixonadamente se seria válida uma revolução em país tão atrasado como a Rússia – uma verdadeira heresia à luz dos ensinamentos marxistas.
Para Marx, o socialismo viria distribuir de forma equânime as riquezas geradas sob o capitalismo, de forma que beneficiassem o conjunto da população e não apenas uma minoria privilegiada. Então, ele sempre augurara que a revolução mundial começaria nos países capitalistas mais avançados, como a Inglaterra, a França e a Alemanha.
Um governo revolucionário na Rússia seria obrigado a cumprir tarefas características da fase da acumulação primitiva do capital, como a criação de infra-estrutura básica e a industrialização do país. O justificado temor de alguns dirigentes bolcheviques era de que, assumindo tais encargos, a revolução acabasse se desvirtuando irremediavelmente.
Prevaleceu, entretanto, a posição de que a revolução russa seria o estopim da revolução mundial, começando pela tomada de poder na Alemanha. Então, alavancada e apoiada pelos países socialistas mais prósperos, a construção do socialismo na Rússia se tornaria viável.
Os bolcheviques venceram, mas seus congêneres alemães foram derrotados em 1918. A maré revolucionária acabou sendo contida no mundo inteiro e, como se previa, várias nações capitalistas se coligaram para combater pelas armas o nascente governo revolucionário. Mesmo assim, o gênio militar de Trotsky acabou garantindo, apesar da enorme disparidade de forças, a sobrevivência da URSS.
Quando ficou evidente que a revolução mundial não ocorreria tão cedo, a União Soviética tratou de sair sozinha da armadilha em que se colocara. Devastada e isolada, precisou criar uma economia moderna a partir do nada.
Nenhum ardor revolucionário seria capaz de levar as massas a empreenderem esforços titânicos e a suportarem privações dia após dia, indefinidamente. Só mesmo a força bruta garantiria essa mobilização permanente, sobre-humana, de energias para o desenvolvimento econômico. A tirania stalinista cumpriu esse papel.
A revolução nunca mais voltou aos trilhos marxistas. Como único país dito socialista, a URSS passou a projetar mundialmente seu modelo despótico, que encontrou viva rejeição nas nações avançadas. Nestas, as únicas adesões não se deveram à atuação política dos trabalhadores, mas sim às baionetas do Exército Vermelho, quando da vitória sobre o nazismo.
Tomada autêntica de poder houve em outros países pobres e atrasados, como a China, Cuba, Vietnã e Camboja. E todos repetiram a trajetória para o modelo autoritário do socialismo num só país stalinista.
Mito libertário – Este é o quadro sobre o qual se projeta a figura impressionante de Che Guevara. Totalmente identificado com Fidel até a tomada de poder e durante os primórdios do governo castrista, ele acabou percebendo que o socialismo de seus sonhos não seria possível numa ilha pobre, asfixiada pelo embargo comercial e obrigada a sujeitar-se às imposições da URSS em troca de ajuda econômica e proteção militar.
Seguindo o exemplo de Garibaldi e Bolívar, ele foi lutar em outros países. Abriu mão do poder e de honrarias para efetuar tentativas desesperadas de romper o isolamento da revolução cubana. E, após sua morte, acabou se tornando o símbolo maior do internacionalismo revolucionário.
Seu exemplo e seu martírio inspiraram os jovens que, em 1968, protagonizaram a última maré revolucionária. Tanto os marxistas que foram à luta armada quanto os neo-anarquistas que barricaram Paris e cercaram o Pentágono, tinham Che como símbolo.
Tornou-se o maior mito libertário do nosso tempo, alimentando as esperanças de que ainda aconteça aquela revolução com a qual os melhores seres humanos sempre sonharam e Marx tão bem delineou, “o reino da liberdade, para além da necessidade”, em que:
* cada cidadão contribua no limite de suas possibilidades para que todos os cidadãos tenham o suficiente para suprirem as suas necessidades e desenvolverem plenamente as suas potencialidades; e
* o estado desapareça, com os cidadãos assumindo a administração das coisas como parte de sua rotina e a ninguém ocorra administrar os homens, já que eles serão, para sempre, sujeitos da sua própria História.
Para os esquerdistas que consideram irrealizável a utopia marxista e defendem situações intermediárias, o mito de Che evoca a rebelião jovem de 1968, por eles tão execrada. Daí reverenciarem Guevara apenas por obrigação.
Já aqueles que (como eu) acreditam que a retomada revolucionária se dará a partir dos marcos atingidos em 1968, estes sim são verdadeiramente entusiastas do mito Che Pueblo.
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9 comentários:
Socialismo de um país só é possível???Cuba mostra vitórias significativas apesar do embargo.O que seria o ideal???
Pela leitura do seu artigo da para entender que sem uma economia já solidificada, digamos assim, pujante não daria para se implementar uma aventura socialista. Então pra que serve essa coisa se precisa da acumulação proporcionada pelo capitalismo para se catapultar?
Lungaretti,
Parabéns pela bela e triste peça acerca do Camarada Che.
Escrevi no meu blog historiavermelha.blogspot.com sobre o "esquecimento" da esquerda, que a cada dia se institucionaliza nos banquetes palacianos e perde sua referência na luta popular socialista.
Um forte abraço e saudações bolcheviques.
Respondendo ao fake, o "socialismo num só país" tem exatamente essa característica: proporciona alguns avanços materiais, mas suprime liberdades essenciais e sujeita os trabalhadores a uma nomenklatura.
Para que Fidel seja o homem forte, os outros cubanos precisam ser fracos. O marxismo caminha na direção oposta: seu objetivo é emancipar os trabalhadores, tornando-os os sujeitos da História.
Anonimo, Marx sempre considerou que o socialismo seria o SUCESSOR do capitalismo, da mesma forma que o capitalismo foi o sucesor do feudalismo.
O capitalismo, impondo sacrifícios terríveis aos trabalhadores, desenvolveu as forças produtivas, mas essa maior capacidade de criação de riquezas não reverte em benefício da humanidade. Vira privilégios, luxo, parasitismo e destruição.
Para Marx, caberia ao socialismo a tarefa de direcionar a produção para o atendimento das necessidades humanas.
Bráulio, fiz uma tentativa de recolocar a discussão política no patamar da minha geração (a de 1968). Eram mais ou menos estas as teses e estes os enfoques.
Se quisermos realmente apontar caminhos para a sociedade, teremos de voltar a debater os assuntos revolucionários com profundidade e abertura de espírito.
A supeficialidade e o sectarismo não nos levarão a lugar nenhum.
Paralelo: De ERNEST Renan a ERNESTO “Che” Guevara.
O Capitalismo se apropriou indevidamente da fé cega religiosa.
Mas para uma consideração sobre o posicionamento, por exemplo, do Cristianismo, pondo evidentemente à parte a idéia bíblica do Cristo “filho de Deus na terra” que “ressuscitou” e Tomé não viu, mas disse que viu, e ninguém mais pode ver porque no “terceiro dia subiu aos céus” sem a “carruagem de fogo de Elias” seu suposto pai e desde então ficou o Mito, é verdade, mas propagado por seus 11 apóstolos, mas mais pelo dito “Saulo” depois Paulo, e é a partir disso que me pareceu oportuno também dizer do paralelo entre os dois Mitos, Cristo e Guevara, na minha visão particular de entendimento onde a verdade só está na própria existência; fazendo reflexões de Ernest Renan de onde retiro indagações (sem me aprofundar) que, A história de Che teve tanto período nebuloso de vida com a de Cristo? Sabendo-se que o homem Cristo não tinha ideologia político-partidária; que ambos os Mitos trataram as mulheres com especial ternura; sabendo-se também que o Cristo conhecia o poder do Império Romano e declarara guerra verbal contra este e os fariseus e mais, que ignorou (quando perguntado) o tributo a César e que a guerra de Che Guevara foi intermediada por ele mesmo como bem você disse, Celso,” por seu ideal (dele Che) de justiça social; que o exemplo de Ernesto Guevara foi de “dedicação a uma causa justa até o sacrifício extremo” igual ao de Cristo; que sem meios de parábolas , “Che” usou de violência (para mim necessária) porque o inimigo usava (USA ainda)armas muito mais poderosas e estava em constante Estado de Guerra armada, declarada contra o Socialismo e em especial contra Ernesto “Che” Guevara; Enquanto o Império Romano não declarou nenhuma guerra contra o homem Cristo mas pelo contrário, seu representante (de César) na Palestina lavou,covardemente, as mãos e entregou aquele homem justo a seus insanos irmãos judeus; enquanto o Império Capitalista, ao contrário, temendo a propagação do Comunismo no mundo enviava sempre espiões (leia CIA e também os irmãos traidores) em perseguição a Guevara. E deixando muito a dizer ainda pergunto: Se estou em combate contra o inimigo o que devo fazer? Deixar-me ser abatido? Realizar, em pleno campo de guerra um tribunal? Estes só é instituído no final das contas e pelos vencedores para julgar e condenar os vencidos, nunca o inverso. Cuba e Fidel nunca deixaram de ser perseguidos pelos EEUU, assim a guerra declarada por estes continua; Cristo foi condenado num “tribunal” e morto e virou Mito, “Che” foi morto sumariamente, sem condenação e virou Mito e só agora querem condená-lo? Estou errado, companheiro?
Muito bom, Celso!
Um apanhado geral das lutas socialistas, explicando bem o que foram as internacionais(tem muito jovem que fica gritando em passeata e usa camisa do Che que não sabe que elas existiram).
Hoje, eu vejo a América Latina como uma oportunidade única de que haja, democraticamente e através dos governos, uma união socialista continental. E me parece que o Brasil está, mais uma vez, perdendo o trem.
Será? Ou estou enganado?
Leandro, lamento, mas sou absolutamente cético em relação a processos que se pretendem revolucionários mas são encabeçados por governos ditos de esquerda, nos quais as massas sigam a reboque de homens providenciais. A revolução tem o objetivo de emancipar os trabalhadores, tornando-os os sujeitos da História. Na Venezuela e na Bolívia, estão muito mais para claque do que para protagonistas. Bem diferente, p. ex., do que ocorreu no Chile de Allende (tanto que a reação não poupou esforços nem mediu consequências para extirpar aquela semente, enquanto, agora, assiste entediada às bravatas dos canastrões). Chávez, Morales e que tais, para mim, não passam de versões recauchutadas do velho caudilhismo latino-americano.
Sr. Lungaretti, como sempre, comentários, em seu blog, só os que o elogiam, não?
Mais uma vez estou aqui para reclamar, dos spams que recebo sobre seu "blog sério". Sabemos, nós dois, que blogs que precisam recorrer a spam não são sérios.
Logo o sr. me fará perder a paciência, sr. Lungaretti. O sr. e sua auxiliar juliana@bigfoot.com
Não tenho a mínima idéia de quem seja essa pessoa a quem o Sr. se refere.
O certo é que não está no meu mailing, portanto deve receber minhas mensagens como repasse de alguém.
Escrevi-lhe (para o e-mail por si citado) pedindo que procurasse saber que é o Sr. e evitar enviar-lhe o que não merece receber. Mas, não obtive resposta.
Gostaria de que o problema fosse resolvido, para nunca mais receber suas queixas.
Mas, como postura geral, nada vejo de errado em informar as pessoas dos assuntos que estão sendo tratados no meu blog, pois se trata de discussão de idéias e não de interesses comerciais.
A direita tem tribunas demais, fornecidas pela mídia subserviente ao poder econômico. Nós criamos nossas tribunas com muito esforço e sacrifício.
Se formos nos limitar por conceitos como o seu (do que é admissível em "blogs sérios"), ficaremos em desvantagem maior ainda, num confronto que já é extremamente desigual.
Negativo.
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