Alvíssaras! Finalmente a Folha de S. Paulo não só admite haver cometido erros numa matéria em que assumiu postura de direita contra a esquerda, como reconhece que tais erros decorreram de se haver alinhado com a primeira, ao invés de manter isenção e equidistância nos seus espaços informativos.
Acionada pela mensagem que lhe encaminhei, a ombudsman Suzana Singer ouviu os envolvidos na efetivação da entrevista de Cesare Battisti que foi publicada pela Folha no domingo passado (4): o próprio; o sindicalista Magno de Carvalho, que o estava abrigando; e o repórter João Carlos Magalhães.
Ela inocentou o repórter, mas condenou "a mão pesada da edição", ou seja, a foto e a legenda estampados na capa, mais o título dado no caderno interno. Eis sua avaliação:
"A reportagem está correta, mas a mão pesada da edição estragou o resultado. O corte dado à foto original amplia o entrevistado e a sua cerveja, fazendo com que a risada, ao lado do 'la dolce vita clandestina' [sarcasmo expresso na legenda], soe como um deboche.
O texto não suporta esse título: ele mora em uma casa modesta, vive quase sem dinheiro, isolado, com medos persecutórios. Sua vida só é doce para os que acreditam que Battisti deveria estar na prisão.
Na página interna, aparece outra foto dele bebendo, desta vez uma cachaça. Redundante, só faria sentido se houvesse algum indício de alcoolismo, o que não é o caso.
O título -'Revolução? Isso é uma piada'- omite a palavra 'armada', o que passa a impressão de que ele desistiu de qualquer luta social. Como diz Battisti, ele ficou mal com a 'direita' e com a 'esquerda'.
Em dez editoriais, ao longo de dois anos, a Folha defendeu duramente a extradição...
Nenhum problema nisso. O jornal deve defender suas posições no espaço correto. Só não pode deixar que a opinião contamine o noticiário, como aconteceu no domingo".
Trocado em miúdos, a opinião do jornal da ditabranda sempre foi contrária ao antigo militante revolucionário (como o é em relação a todos os revolucionários, antigos e atuais...), mas as boas práticas jornalísticas exigiam que tal viés não impregnasse a informação.
Isto, entretanto, não ocorreu. A edição foi tendenciosa, procurando passar a pior imagem possível de Battisti na capa do matutino, vista por um número muito maior de pessoas do que as páginas internas, pois fica exposta nos pontos de venda; e no título da reportagem, que também é lido por mais pessoas do que o texto.
Quem compra um jornal, folheia-o para saber o que cada página contém, mas só lê os assuntos que realmente lhe interessam. Ora, passando os olhos pela reportagem sobre Battisti, sem mergulhar no texto, o leitor ficaria com as seguintes impressões: é um debochado que está sempre enchendo a cara, leva uma dolce vita no Brasil e renega a revolução que dizia defender.
Ou seja, reforça a caricatura que linchadores como Mino Carta dele esboçaram e tudo fizeram para impingir ao distinto público.
Foi uma reveladora lição de como jornais e jornalistas inescrupulosos plantam conceitos na cabeça dos incautos.
ESPIÕES E REPÓRTERES
Quanto às justificativa da ombudsman para outros desvios de conduta do jornal, não convencem. Usar uma relação familiar para obter entrevista, insinuando-se junto ao entrevistado como amigo e não como profissional, é procedimento de espião, não de repórter.
Para Suzana Singer, "tanto faz de quem foi a idéia" da ida de Battisti a um boteco para a tomada de imagens. Mas, tendo sido ele levado a crer que o jornalista, afiançado pelo tio, não pretendia sacaneá-lo (é a expressão cabível), deu sua colaboração por cortesia. Battisti é afável por natureza.
Ou seja, colocou-se ingenuamente numa posição ridícula e que em outras circunstâncias não assumiria, graças a um ardil do repórter. Tanto faz?
Na troca de e-mails com a ombudsman, pedi-lhe que apurasse um pequeno mas revelador detalhe: quem pagou a conta? Sabendo das dificuldades financeiras de Battisti, a ponto de abreviar conversas telefônicas para não gastar muitos créditos do seu cartão, eu tinha certeza de que se constataria o óbvio: quem convida, paga. Tanto faz?
Quanto à leviandade do jornal, ao espalhar pelo mundo o nome da região em que Battisti residia, foi simplesmente grotesca. Havia o compromisso de não o fazer, imposto a todos os entrevistadores. Duas revistas honraram a palavra empenhada. A Folha, não. Eis a explicação de Suzana Singer:
"O sigilo a respeito da cidade onde ele vive foi, de fato, quebrado, mas, dois dias antes da publicação, o repórter consultou o dirigente sindical Magno de Carvalho, o dono da casa onde Battisti está. A informação havia vazado na internet e Carvalho concordou que não havia mais segredo a preservar".
O vazamento se deu, na verdade, em jornais da região, não na internet. E a informação dificilmente chegaria à Itália, de onde podem ser despachados os assassinos -- afinal, foi o que o serviço secreto daquele país já tentou fazer uma vez, quando andou negociando com mercenários o sequestro ou eliminação de três alvos em território estrangeiro (ele e outros dois, conforme noticiado pela própria imprensa italiana).
Trombeteado pelo dito maior jornal do Brasil, agora, com certeza, o nome da cidade é do pleno conhecimento dos inimigos de Battisti. Foi mais um abuso de confiança do repórter, aproveitando-se da boa fé do tio para dele arrancar um álibi que, sabia, seria útil adiante.
Notem: João Carlos Magalhães não consultou aquele que seria o maior prejudicado por sua indiscrição, Battisti. Por que será?
Ou, como diria Suzana Singer, tanto faz...
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