Carlos Lungarzo, da Anistia Internacional
Na década de 90, Massimo D’Alema, premiê da Itália, armou uma tocaia para o líder curdo Abdullah Öcalan, quando este estava sendo perseguido pela Turquia. Em combinação com Ozel Kuvvetler Komutanlik (Comando de Forças Especiais da Turquia), a Mossad israelense, e a CIA, atraiu a Öcalan, que estava exilado na Rússia, com a promessa de asilo político.
Chegado a Itália, a Turquia entrou com um pedido de extradição, em 1998, durante cujo processo foi defendido pela brilhante advogada alemã Britta Böhler. Como o tribunal italiano não aprovou a extradição, d’Alema manteve o líder curdo no país, mas protelou indefinidamente sua promessa de asilo.
Apesar de sua arbitrariedade jurídica, a península possui certos limites que são desconhecidos no Brasil e, portanto, o premier obedeceu aparentemente a proibição do tribunal. No entanto, antes a indefinição de sua situação, Öcalam saiu da Itália, sendo seguido pelos três serviços de inteligência, que o capturaram na Kenya e o entregaram aos turcos.
A forma em que o governo brasileiro e sua base parlamentar aguentou estoicamente as provocações e injúrias italianas (salvo em alguns poucos casos, dos quais vou mencionar apenas Genro, Suplicy e Eduardo Cardoso, advertindo porém que há alguns outros), faz pensar numa possível afinidade de conduta.
O artigo publicado hoje por Celso Lungaretti, escrito com notável clareza e neutralidade, mostra que a Advogacia Geral da União está induzindo de maneira “suave” a ideia de que Cesare Battisti deve ser liberado e colocado fora do País, usando como pretexto a falta de documentos, o que, paradoxalmente, não foi obstáculo para muitos refugiados (entre os quais me incluo), que estávamos sem documentos durante a ditadura militar.
Quero deixar claro, após ter citado Lungaretti, que minha denúncia nesta matéria, não compromete a opinião do colega e amigo. Pelo que eu entendo, Celso considera injusto e perigoso a expulsão do país de um homem que está sendo perseguido por uma matilha de chacais raivosos. Entretanto, e embora sem nenhum prova factual, eu me permito ir mais longe.
Todos sabemos que, salvo algumas figuras excecionais dentro do governo e sua base de apoio, os políticos, mesmo aqueles considerados confusamente “de esquerda”, queriam livrar-se do “problema Battisti” e não executar um ato humanitário ou de justiça.
Portanto, não afirmo, mas também não descarto que a eventual expulsão de Battisti do Brasil, mesmo que esteja fantasiada por um acordo com outro país que não possua convênio de extradição com a Itália, pode ser uma cilada.
Negar isto a priori é ter uma visão idealizada da política, algo que foi muitas vezes ironizado pelos presidentes brasileiros, que sempre entenderam que direitos humanos e negócios costumam ser incompatíveis.
Quero salientar que a Itália é um dos mestres mundiais neste tipo de cilada, como o mostra o conhecido exemplo da DSSA. Aliás, foi uma fonte de aprendizado para a Argentina, cuja última ditadura chegou a sequestrar refugiados de países tão diferentes como a França, a Espanha, a Venezuela e o Peru. O italiano Stefano delle Chiaie, um dos terroristas mais completos e produtivos do planeta, foi assessor da ditadura de Videla entre 1976 e 1978.
Brasil e os Direitos Humanos - Apesar de que a ditadura brasileira não foi a mais truculenta do continente, no entanto, o desprezo pelos direitos humanos e sua sistemática violação no Brasil, tanto durante os governos autoritários como durante os democráticos, é um fato que alarma permanentemente a comunidade humanitária internacional.
De todos os países da área, o Brasil é o único, junto com a Honduras, que não deu nenhum passo na direção de julgar, condenar ou, pelo menos, registrar memória dos atos de genocídio e tortura cometidos durante a ditadura. Mais ainda: o país é o recordista absoluto na proteção explícita aos criminosos de estado daquele período.
É verdade que, na Argentina, o corrupto governo de Raul Alfonsín, respaldado depois pelo sistema neofascista e delinquencial de Carlos Menem, fez aprovar a um parlamento mercenário duas leis que davam imunidade aos torturadores (1986 e 1987), mas a comunidade de direitos humanos lutou durante 18 anos para reverter a situação, sendo que atualmente quase um 5% dos criminosos militares mais graduados estão presos.
No Brasil, o acórdão do STF protegendo os torturadores possui um caráter que para o sistema judicial brasileiro parece ser definitivo, pois o tribunal desafia a condenação da CIDH da OEA e a crítica generalizada da comunidade de direitos humanos, tanto nacional como internacional.
Além disso, talvez não seja necessário lembrar as numerosas chacinas, numa proporção desconhecida em outros países ocidentais, e a provocativa proteção dada a seus autores (Carajás, Carandiru, Dorothy Stang, os fiscais do trabalho escravo, Vigário Geral, Candelária, e assim até o infinito). A história continua com o massacre permanente nos morros do Rio, agora enriquecido pela colaboração do exército.
Apesar das numerosas organizações de DH que operam no país, e da coragem de grupos de diverso tipo que integram mais de 400 ONGs, o aparato político-jurídico consegue facilmente impedir qualquer avanço de política de DH, como aconteceu como o excelente PNDH 3, e a gestão também excelente de Paulo Vannuchi. Além disso, não parece existir apenas um sentimento de banalidade sobre o valor da vida e o sofrimento humano, como também certa vaidade em relação com ela.
O ex-presidente Lula ironizou numerosas vezes sobre os DH, acusou de criminosos os dissidentes políticos cubanos, se mostrou indeciso e até tolerante com os aberrantes crimes dos fanáticos iranianos e dilatou ao máximo a libertação de Battisti, num gesto que pode ter sido produto da cautela ou da preocupação, mas agora parece coincidir com a intenção de expulsar o escritor italiano do país, insinuada pela AGU.
O Brasil é um dos poucos países ocidentais, salvo os EEUU, onde fazem grande sucesso filmes que exaltam a tortura, cujos elaboradores mereceram os parabéns das autoridades. O caráter pacífico e cordial do povo brasileiro não deve fazer esquecer que os que realmente têm voz são os herdeiros do passado escravocrata, sejam propriamente os grandes barões, sejam os imigrantes com forte identidade europeizante e fascista, aos quais se deveu a fundação do Integralismo no país.
O fato não é surpreendente. Como disse num artigo anterior, Brasil estava em 2009 estava além do posto 120º em número de asilados por cápita. A celeridade mostrada na proteção a ditadores, genocidas e ex membros das SA, não deve considerar-se sintoma de uma vocação protetora.
Conclusões - Como todos sabemos, podem existir provas sobre fatos passados, mas não existem provas sobre fatos futuros. Portanto, não pretendo provar que há uma conspiração contra Battisti. Apenas penso que é uma alternativa com alta probabilidade.
Se Battisti for deslocado, por exemplo, a Marrocos, país que não tem tratado de extradição com a Itália e, durante a longa viagem fosse sequestrado por um comando desconhecido, o Brasil poderá aduzir que não podia suspeitar desse fato. Não se precisa nenhum conhecimento político nem militar para chegar a esta conclusão. Os filmes de espionagem não são pura fantasia, e muitos deles estão tomados da própria experiência de agentes secretos experientes.
Não descarto uma razão mais singela: que o governo queira se livrar da presença do refugiado, como demonstraram todas as forças mais conservadoras do país, e ficou em evidência durante o tortuoso processo de seu julgamento. Nenhum governo aceitaria uma invasão de seus poderes pelo STF tão mansamente, se tivesse empenho em cumprir os princípios básicos do direito humanitário.
Qualquer que seja o motivo, a saída do país de alguém insanamente procurado por uma sociedade militarizada e policialesca no apogeu da ressurreição do fascismo, é muito perigosa, e deve ter, como mínimo, garantias internacionais incontestáveis. Após o sequestro de Öcalam, a comunidade curda agitou toda Europa com seus protestos, mas já era tarde. Pelo menos, o líder curdo está vivo e até pode ser indultado. Lembremos a história da Europa para perceber que o fascismo e o stalinismo nunca tiveram essa tendência.
As organizações e movimentos em defesa de Battisti, que hoje são muitas, devem se unir para colocar esta possibilidade junto ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário