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29.9.10

VANDRÉ: DE REI A TRAPO EM 58 DIAS

"Ele foi um rei, e brincou com a sorte
Hoje ele é nada, e retrata a morte
Ele foi um rei, e brincou com a sorte
Hoje ele é nada, e retrata a morte

Ele passou por mim, mudo e entristecido
Eu quis gritar seu nome, não pude
Ele olhou pra parede, disse coisas lindas
Disse um poema pr'um poste, me veio lágrimas

O que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei
O que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei"
("Tributo A Um Rei Esquecido", Benito Di Paula)

Ainda sobre o enigma Geraldo Vandré, eis mais elementos para corroborar minha tese  de que, a despeito de tudo que haja sofrido antes de deixar o País do AI-5, sua transformação de rei em trapo se deu na volta para o Brasil, quando a ditadura dele se apossou em 14/07/1973 e só o liberou em 11/09/1973, anunciando então sua chegada como se tivesse acabado de desembarcar.

Eis duas declarações de 2004, em entrevista que Vandré então concedeu a Ricardo Anísio, do Jornal do Norte:
"...eu voltei [do exílio] doente e meio perdido em meu país, quando justamente os militares  me  acolheram  (!) e  me deram tratamento médico (!!), e  me alojaram (!!!)".

"... havia escrito a canção ["Fabiana"] porque sempre fui um apaixonado por aviões. Agora, a minha relação com as Forças Armadas hoje, é de muito  respeito mútuo  (!).  Eles me tratam com dedicação (!!) e  sabem das minhas questões existenciais (!!!)".
Na verdade, Vandré foi mas é internado numa clínica psiquiátrica e, em depoimento que li na internet, uma companheira que também estava lá relatou que ele se encontrava sob vigilância de agentes da ditadura, impedido de falar com os outros pacientes.

Há também referências a uma internação em 1974, numa clínica do bairro de Botafogo (RJ), depois de uma crise de nervos durante a qual teria ameaçado esfaquear a irmã.

Mas é a do ano anterior que realmente importa. Pode-se dizer que se constituiu num divisor de águas. Vandré era um antes e se tornou outro depois.

Vale citar o Timothy Leary, aquele mesmo do LSD, que foi também uma das mais respeitadas autoridades científicas no estudo das lavagens cerebrais:
"O trabalho de lavagem cerebral é relativamente simples, consistindo basicamente na troca de alguns circuitos robóticos por outros. Assim que a vítima passa a encarar o reprogramador como a criança encara seus pais - fornecedores de segurança vital e de apoio para o ego - qualquer nova ideologia pode ser inculcada no cérebro.

"Durante o estágio de vulnerabilidade, qualquer pessoa pode ser convertida a qualquer sistema de valores. Facilmente podemos ser induzidos a entoar 'Hare Krishna, Hare Krishna' como 'Jesus morreu por nós', ou a bradar 'abaixo o Vaticano', aceitando plenamente as ideologias que estão por trás desses temas".
Fragilizado por tudo que sofrera, incluindo problemas com drogas, Vandré pode muito bem ter, naqueles suspeitíssimos 58 dias, sido induzido a bradar "viva a FAB", retratando a morte.

Enquanto não soubermos no que realmente consistiu o tal  tratamento médico  proporcionado pelos militares quando  acolheram  e  alojaram  o Vandré, não poderemos, em sã consciência, descartar a hipótese de lavagem cerebral.

Com a palavra, os jornalistas investigativos e os historiadores.

OUTRA EXPLICAÇÃO

Depois de finalizado, postado e expedido este texto, ocorreu-me outra solução para a charada, que honestamente dividirei com vocês, já que nunca tive compromisso com prestígio e infalibilidade.

Freud nos ensinou que lapsos são significativos, costumam trazer à tona a verdade que não se pode revelar ou não se quer admitir.

Então, chamou-me a atenção que, na entrevista de 2004, Vandré situou sua volta ao Brasil no final da década de 1970. Evidentemente, a imprecisão foi atribuída a problemas mentais.

No Dossiê Globo News, entretanto,  ele agora forneceu as datas de chegada e de anúncio da chegada com total precisão: 14 de julho e 11 de setembro.

Parece que, tanto em 2004 quanto agora, ele nos deu uma dica: os motivos de sua mudança de comportamento devem ser buscados em 1973.

Veio-me à lembrança o episódio do dirigente bolchevique que, ao depor num dos julgamentos stalinistas, admitiu os crimes mais inverossímeis, como espionagem a serviço das potências ocidentais e tentativa de envenenar os reservatórios de água soviéticos.

Mas, lá pelas tantas, encaixou a frase: "Todos sabemos que a tortura é um instrumento medieval de justiça".

Os tacanhos Torquemadas acreditaram que ele estivesse negando a existência da tortura na URSS. Mas, na verdade, mandara um recado cifrado, de que se acusava daqueles absurdos para que não o supliciassem mais.

Não fui o único a notar que Vandré nos deu toques nas entrelinhas.

Mas, por que tantos rodeios, afinal? O que o impedia de, em plena democracia, dar os nomes aos bois?

Aí, lembrei-me das três ou quatro horas que papeamos em 1980, no seu apartamento da rua Martins Fontes (SP).

O mais significativo de tudo foi a resposta que deu quando perguntei se, aproveitando a liberação pela censura da "Caminhando" e o sucesso que fazia na voz da Simone, ele não aproveitarei para reatar sua carreira.

Respondeu que a música poderia voltar mas, se ele tentasse voltar junto, correria sério risco pessoal.

Perguntei se havia sido ameaçado. Desconversou.

Concluí que ele estivesse se referindo aos atentados terroristas então cometidos pela linha dura, na tentativa de inviabilizar a  distensão lenta, gradual e progressiva  do ditador Geisel. Se incendiavam bancas de jornais e expediam cartas-bombas a torto e a direito, o que lhes impediria de atentarem contra um artista-símbolo?

Mas, e se a razão do seu temor fosse outra? E se houvesse passado por situações tão traumáticas que a possibilidade de revivê-las fosse totalmente inadmissível para ele?

Ora, com certeza os militares se aproveitariam disto. Por exemplo, com uma variante do velho artifício do  policial ruim x policial bom.

Com os presos políticos mais jovens essa jogada era quase sempre tentada. Uns torturadores se mostrando mais bestiais ainda que de hábito, enquanto outro agente fingia compadecer-se e estar tentando ajudar.

Com militantes quase nunca colava. Mas, com um artista, quem sabe?

E, se os espantalhos seriam naturalmente os gorilas das outras Armas, mais identificadas com a repressão política, os aviadores se constituiriam na opção óbvia para o papel de amigos e protetores do Vandré.

Terão tentado isso com ele? Terá ele acreditado?

O certo é que esta possibilidade faz muito mais sentido do que aceitarmos como normal sua devoção pela FAB, a tecla mais desafinada de toda sua entrevista de sábado e de todas as suas declarações de um bom tempo para cá.

Em 1980, ele deixou transparecer  para mim que utilizava as esquisitices para ser considerado inofensivo por aqueles que poderiam fazer-lhe mal.

Agora também ele ora parece estar encenando uma farsa, ora ter um motivo para suas ações que não quer ou não pode revelar.

Entre os que foram submetidos a essa máquina de triturar seres humanos, há os que continuam paranóicos até hoje. Não seria nada surpreendente e inaudito se Vandré ainda temesse estar na mira dos antigos algozes, e visse nos oficiais da FAB seus guardiães.  

Um comentário:

Anônimo disse...

Pois me postei à frente da TV para ver o anunciado programa com Vandré. Desprezei muitas outras coisas para ver algo que aguardava desde a ´anunciação` com uma curiosidade incomum. Pois quanto mais a entrevista avançava mais estranho eu me sentia. A cena dele num clube militar ouvindo um ´soldado` cantando Prá Não Dizer que Não Falei de Flores ( nome autêntico da música; caminhando foi o nome bolado às pressas por Walter Klark exatamente na hora da eleição para passar pela censura porque ela já havia sido vetada; Walter largou este nome porque sabia que iria fluir se trocasse, a censura era muito burra ) foi diferente de deprimente, foi esquisita, não tenho como definir de outra forma. Quando terminou ficou algo de constrangedor no ´ar`. Não era o Vandré, não era uma entrevista, não havia um repórter e aquele na sala sentado no sofá não era eu ! Patético. Tudo. Me senti mal e com a sensação de que alguma coisa havia estragado o meu dia. Se arrependimento matasse ....

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