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19.4.07

EX-TORTURADOR É CHEFÃO DA MÁFIA DO BINGO

Celso Lungaretti (*)

Mais uma vez o ex-capitão do Exército Ailton Guimarães Jorge freqüenta o noticiário policial, agora como um dos 25 contraventores cuja prisão foi pedida pela Polícia Federal, sob a acusação de explorarem jogos de azar no País, inclusive subornando membros do Executivo, Legislativo e Judiciário.

O presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro já havia sido condenado em 1993 por envolvimento com o jogo-do-bicho, ao lado de outros 13 banqueiros, pela juíza Denise Frossard. Sabia-se que eles todos eram responsáveis por, pelo menos, 53 mortes.

Pegaram seis anos de prisão cada, a pena máxima por formação de quadrilha. Mas, em dezembro de 1996 estavam todos de volta às ruas, beneficiados por liberdade condicional ou indultos.

Mas, não são só os crimes atuais que fazem do Capitão Guimarães um personagem emblemático do que há de pior neste país. Ele é o mais notório exemplo vivo do banditismo inerente aos órgãos de repressão da ditadura militar.

A outra celebridade capaz de rivalizar com ele nesse quesito já morreu, ao que tudo indica como um arquivo apagado pelos próprios cúmplices: o delegado Sérgio Paranhos Fleury, em cujo benefício os militares chegaram até a criar uma lei, com o único objetivo de mantê-lo fora das grades.

O Capitão Guimarães atuava na II seção (Inteligência) da PE da Vila Militar, que, como todas as equipes de torturadores da ditadura, auferia ganhos substanciais ao capturar ou matar militantes revolucionários.

Tudo que era apreendido com os resistentes e tivesse algum valor, virava butim a ser rateado entre aqueles rapinantes. Jamais cogitavam, p. ex., devolver o dinheiro aos bancos que haviam sido expropriados pelos guerrilheiros urbanos. Numerário, veículos, armas e até objetos de uso pessoal iam sempre para a caixinha do bando. De mim, até os óculos roubaram.

Havia também as recompensas oferecidas pelos empresários direitistas, bem expressivas. Eles definiram inclusive uma tabela com os órgãos de repressão: dirigente revolucionário preso valia tanto; integrante de grupo de fogo, um pouco menos, e assim por diante.

Ocorre que, em novembro de 1969, morreu como conseqüência das torturas aplicadas por Ailton Guimarães Jorge e seus comparsas o estudante Chael Charles Schreier. O episódio repercutiu pessimamente no mundo inteiro e no próprio Brasil, onde a revista Veja fez uma matéria-de-capa histórica sobre a tortura.

As Forças Armadas decidiram, então, proibir que cada unidade de Inteligência de cada Arma fosse à caça por sua própria conta. Unificaram o combate à luta armada no quartel da PE da rua Barão de Mesquita (Tijuca), que passou a ser a sede do DOI-Codi, integrado por oficiais da II Seção do Exército, do Serviço de Informações da Aeronáutica (Sisa) e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), mais investigadores da polícia civil.

A equipe do Ailton Guimarães Jorge, até como punição pela morte do Schreier, foi alijada desse vantajoso esquema. Então, quando cheguei preso lá, em junho de 1970, aqueles rapinantes estavam desesperados com a falta de grana.

Tinham se habituado a um padrão de vida mais elevado e já não conseguiam subsistir apenas com o soldo. Tentavam de todas as maneiras convencer seus superiores de que mereciam ser readmitidos no combate à luta armada, em vão.

Foi por isso que, em 1974, a equipe de torturadores da PE da Vila Militar envolveu-se com contrabandistas, para obter a renda adicional que tanto lhe fazia falta. O Exército acabou descobrindo e instaurando um Inquérito Policial-Militar contra soldados, cabos, sargentos e quatro oficiais, inclusive o tenente Ailton Joaquim (um dos 10 piores torturadores do período, segundo o Tortura Nunca Mais) e o capitão Aílton Guimarães Jorge.

Justiça poética – As investigações foram conduzidas com o método que o Exército invariavelmente utilizava. Então, aqueles notórios torturadores acabaram conhecendo na própria pele a tortura. Houve até caso de assédio sexual à esposa de um dos acusados, por parte dos seus próprios colegas de farda...

Como o Élio Gaspari relata em A Ditadura Escancarada, o caso acabou, entretanto, em pizza:

– Todos os indiciados disseram em juízo que o coronel do 1PM lhes extorquira as confissões. A maioria deles sustentou que, surrados, assinaram os papéis sem lê-los. Num procedimento inédito, os oficiais do Conselho de Justiça decidiram que o processo tramitaria em segredo. Durante o julgamento a promotoria jogou a toalha, e, em maio de 1979, os 21 acusados foram absolvidos. O caso voltou ao STM, cinco ministros recusaram-se a relatá-lo, e, por unanimidade, confirmou-se a absolvição. A sentença baseou-se num só argumento: ‘Tudo o que se apurou nestes autos, o foi, exclusivamente, através de confissões, declarações e depoimentos extrajudiciais, retratados e desmentidos posteriormente em juízo, sob a alegação de violências e ameaças praticadas durante o IPM”.

Ora, todos os IPMs instaurados contra os resistentes poderiam ser anulados pelos mesmíssimos motivos. Dois pesos, duas medidas.

A carreira militar do Capitão Guimarães, ficou, entretanto, comprometida. Nos quartéis, ele seria sempre visto como ovelha negra e tratado com má vontade. Então, pediu baixa e foi capitanear o jogo-do-bicho, conforme narra o Gaspari:

– Coube ao bicheiro Tio Patinhas consertar a vida de Ailton Guimarães Jorge. (...) O processo do contrabando ainda tramitava (...) quando ele se transferiu formalmente para a contravenção, levando a patente por apelido e diversos colegas como colaboradores. Começou como gerente do banqueiro Guto, sob cujo controle estavam quatro municípios fluminenses. Um dia três visitantes misteriosos tiraram Guto de casa e sumiram com ele. (...) Tio Patinhas passou-lhe a banca. Em três anos o Capitão Guimarães foi de tenente a general, sentando-se no conselho dos sete grandes do bicho, redigindo as atas das reuniões, delimitando as zonas dos pequenos banqueiros. Seu território estendeu-se de Niterói ao Espírito Santo. Seguindo a etiqueta de legitimação social de seus pares, apadrinhou a escola de samba Unidos de Vila Isabel e virou a maior autoridade do Carnaval, presidindo a liga das escolas do Rio de Janeiro. Rico e famoso, adquiriu uma aparência de árvore de Natal pelas cores de suas roupas e pelo ouro de seus cordões. Tornou-se um dos mais conhecidos comandantes da contravenção carioca. Do seu tempo da PE ficou-lhe o guarda-costas, um imenso ex-cabo que, como ele, começara no crime organizado da repressão política.

Esse cabo, Polvarelli, pesava 140 quilos e lutava judô. No final de 1969, ao tentar prender meu companheiro Eremias Delizoicov, que tinha apenas 18 anos, foi por ele atingido com um disparo no braço. Polvarelli e os outros torturadores/meliantes retalharam então o Eremias com 35 tiros, tornando impossível até sua identificação (só souberam quem era pelas digitais).

Depois, em junho de 1970, unicamente por ter sabido que eu era amigo do Eremias desde a infância, ele fez questão de vingar-se em mim pelo final prematuro de sua carreira de judoca: estourou meu tímpano com um fortíssimo tapa de mão aberta. Nunca mais tive audição normal, apesar das três cirurgias por que passei.

Eram essas as pessoas de quem a ditadura servia-se para combater os heróis e mártires da resistência.

* jornalista, escritor e ex-preso político. Outros artigos: http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

12.4.07

FILHOS DE GOEBBELS

Celso Lungaretti (*)

Ao aproximar-se o 43º aniversário do golpe militar que colocou nosso País à margem da civilização durante 21 longos anos, decidi alinhavar, num artigo, algumas características básicas do totalitarismo à brasileira versão 1964.

Por se tratarem de acontecimentos sobre os quais o veredito da História já foi inapelavelmente dado, eu não esperava que o texto “Há 43 Anos o País Entrava nas Trevas” tivesse grande repercussão.

Quis, no entanto, repassar aos jovens informações que são lugares-comuns para quem atravessou esse terrível período com percepção crítica e acompanhou o intenso trabalho de resgate da verdade nas décadas de 1980 e 1990, quando os pesquisadores deixaram de ser tolhidos pela censura e intimidações.

Surpreendentemente, “Há 43 anos...” deflagrou discussões exacerbadas nas comunidades do Orkut, fazendo-me lembrar a frase de Oscar Wilde sobre “a raiva de Calibã ao ver sua face no espelho”. Os calibãs da extrema-direita detestaram sua imagem sem retoques e tentaram quebrar o espelho.

Minhas intervenções nos debates virtuais acabaram reunidas num novo artigo, “O Ovo da Serpente”. Aí, sem argumentos para desqualificarem minhas posições, os neo-integralistas da Internet tentaram desqualificar-me pessoalmente, como antigo terrorista. Ou seja, o que eu fiz aos 18/19 anos, na limitadíssima visão dessa gente, constituiria motivo suficiente para eu não ser levado a sério aos 56 anos.

Fui obrigado, então, a esclarecer de uma vez por todas quem foi e quem não foi terrorista durante os anos de chumbo. E isto acabou servindo de base para este terceiro e último artigo da trilogia sobre o período mais brutal e vergonhoso da história brasileira recente.

A PROPAGANDA ARMADA - O terrorismo foi uma prática característica da segunda metade do século XIX, quando revoltosos impotentes para conduzir seus povos à tomada de poder decidiram intimidar os governantes, atentando contra suas vidas.

Então, em vez de conquistar as massas para a revolução, eles optaram por tornar impossível à classe dominante continuar governando. Tentavam criar o caos. O termo terrorista definia com exatidão a atuação política desses cidadãos.

Os terroristas mais característicos foram os narodniks da Rússia, que cometeram um sem-número de atentados contra o czar e seus ministros, à bala e com bombas.

Já os movimentos de resistência aos regimes militares latino-americanos, tanto quanto os que combateram o nazi-fascismo na Europa, sempre objetivaram conquistar o apoio das massas para sua causa. Nunca quiseram criar o caos. Designavam suas ações com uma expressão que fala por si mesma: propaganda armada.

Expropriavam bancos para manter a luta e sustentar militantes nas condições de rigorosa clandestinidade. Seqüestravam diplomatas para trocá-los pelos resistentes que estavam presos e sofrendo torturas atrozes. Ocupavam estações de rádio para obrigar a colocação no ar de seus manifestos. Tomavam supermercados e convidavam os trabalhadores a saqueá-los. Seqüestravam empresários e condicionavam sua libertação à distribuição de gêneros alimentícios em favelas. Criavam guerrilhas na esperança de que se tornassem o embrião de um exército de libertação.

Como em toda luta desse tipo, houve um ou outro excesso, como a bomba contra o jornal O Estado de S. Paulo (que só chamuscou o mural) e o atentado contra o QG do II Exército (que vitimou um recruta e foi criticadíssimo pela própria esquerda).

No entanto, o Comando de Caça aos Comunistas (organização paramilitar consentida pela ditadura), sozinho, cometeu muito mais ações caracteristicamente terroristas do que todos os grupos de esquerda juntos.

Idem, os integrantes dos órgãos de segurança da ditadura que tentaram sabotar a abertura de Geisel, com bombas, atentados e agressões covardes aos jornaleiros que ousavam vender veículos alternativos (suas bancas eram incendiadas!).

Centenas, talvez milhares, de inocentes teriam morrido no Riocentro, se o feitiço não houvesse virado contra o feiticeiro.

E, claro, que moral tinha a ditadura militar brasileira para rotular alguém de terrorista?! Com absoluto desprezo pelos direitos humanos, cometeu atrocidades que incluíram o seqüestro e a execução de opositores, capturados com vida e levados a centros clandestinos de tortura, para sofrerem suplícios terríveis e depois receberem o tiro de misericórdia; e a ocultação de seus cadáveres, tanto que, até hoje, famílias continuam em busca dos restos mortais dos seus entes queridos.

Quem levou a grau extremo a prática do terrorismo de estado não deveria nem sequer tocar nesse assunto...

ROLO COMPRESSOR - O rótulo de terrorista, portanto, não passou de uma deturpação da História com fins propagandísticos. Assim como chamavam de terroristas quem não o era e nunca foi, os militares brasileiros chegaram até a distribuir por todo o País cartazes acusando de assassinos pessoas que jamais haviam matado uma mosca -- como eu.

Era, sim, a mais vil e infame aplicação, no Brasil, dos conceitos de Goebbels: repetir tantas vezes uma mentira até que ela passasse por verdade.

Tudo isso ficou para trás quando os historiadores esclareceram a verdade sobre os anos de chumbo, os juristas reconheceram que a ação dos grupos armados se deu em conformidade com o princípio de resistência à tirania e o Estado brasileiro admitiu e começou a reparar sua culpa pelos maus feitos da turba de delinqüentes que agiu em seu nome durante 21 anos.

No entanto, a extrema-direita se reagrupou e passou a desenvolver uma propaganda avassaladora e massacrante, principalmente na internet. E voltou a tratar os resistentes como terroristas, exumando o velho clichê propagandístico, que já estava desmoralizado e banido do debate civilizado.

Não tenta mudar conceitos no ambiente acadêmico, pois sabe que seria exposta ao ridículo. Seu alvo preferencial, ao buscar prosélitos, são os incultos, os fracassados, os medíocres, os frustrados e os ressentidos -- a mesmíssima escória que respaldou a ascensão de Mussolini e Hitler.

Aproveitando a justa indignação contra o Governo Lula -- que é tudo, menos um governo de esquerda --, desenvolve uma pregação totalitária sem sutileza nenhuma. Se a justiça fosse séria no Brasil, muitos néo-integralistas já estariam presos por pregarem ostensivamente o fim da democracia.

Essa corja atua como rolo compressor, intimidando as pessoas equilibradas, que acabam deixando de participar dos fóruns de discussão política na internet para não terem de enfrentar uma malta de adversários que não hesita em recorrer a intimidações e grosserias.

Ou seja, fazem na internet o que os primeiros fascistas e nazistas faziam nas ruas: amedrontavam as pessoas de bem, para que não reagissem à escalada do arbítrio.

Como devemos nos comportar?

Não é próprio dos seres humanos decentes ficarmos discutindo com seres tão destituídos de humanidade, solidariedade, compaixão e, até, compostura. Pessoas capazes de vituperar de forma demagógica e virulenta o que um grande homem como o rabino Henry Sobel fez em decorrência de uma moléstia, só nos causam o mais profundo asco.

Mas, quem deixar o terreno livre para os obscurantistas será cúmplice de todos os retrocessos que vierem a ocorrer. Então, não podemos nos acovardar nem continuar cedendo terreno.

Tampando o nariz, devemos reagir. Marcar posição. Afirmar nossa crença na civilização e nosso repúdio à barbárie.

Pois eles, com suas mentiras e calúnias, são muito mais fracos do que nós, com nossos ideais e verdades. Podemos expulsá-los de volta para as trevas das quais nunca deveriam ter saído.

Lembrem-se: é fácil esmagar o ovo da serpente, mas muito difícil matar a víbora depois.

* jornalista, escritor e ex-preso político. Os outros artigos desta trilogia, “Há 43 Anos o País Entrava nas Trevas” e “O ovo da Serpente”, estão em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

EM ABRIL, CABRAL DESCOBRE... OS QUARTÉIS!

Celso Lungaretti (*)

Militares adoram relembrar os poucos episódios excitantes que ocorrem em sua carreira de robotizada rotina. Então, como preso político em unidades do Exército nos anos de chumbo, eu passei mais de dois meses sofrendo torturas propriamente ditas e os nove meses seguintes submetido à tortura psicológica de ter de escutar seus relatos escabrosos.

Um deles foi tão chocante que nunca me saiu da lembrança. Os sentinelas de um quartel paulistano surpreenderam um estuprador em ação contra um menino. Sem autoridade para tanto – deveriam apenas entregá-lo à polícia civil –, levaram-no para a caserna e começaram a discutir qual seria sua punição.

Um velho sargento solucionou a questão. Fez com que lhe aplicassem vigorosas pancadas na sola do pé, com uma palmatória. Depois, obrigou-o a correr. Mais pancadas. Mais corridas. Mais pancadas. Ele já não conseguia nem andar, era arrastado à força pelos recrutas. Até que o sargento se deu por satisfeito e mandou atirá-lo numa solitária. Morreu gangrenado, em meio a sofrimentos atrozes.

Essa é a maneira como os militares gostam de resolver as coisas: direta, sem levar em conta as perfumarias jurídicas. É claro que, durante a ditadura, tudo ficava mais fácil. Agora, vez por outra, são pilhados abusando do seu poder. Mas, passada a onda inicial, tudo acaba sendo abafado.

Quando o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, manda ofício ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pedindo a ajuda das Forças Armadas para “assegurar a lei e a ordem na região metropolitana do Rio”, o que ele pretende, afinal?

Se ele é incapaz de cumprir as atribuições do seu cargo, melhor seria renunciar de uma vez. E, se lhe faltam recursos para combater com eficiência o crime organizado, o que deve solicitar são verbas, não tropas.

Até prova em contrário, fica a impressão de que Cabral quer mesmo é a utilização de métodos menos ortodoxos contra os comandos de marginais. As Forças Armadas entram em ação com as simpatias da população exasperada, obtêm alguns resultados mediante o uso de força excessiva e, quando os inevitáveis episódios chocantes começarem a provocar indignação pública, já terão golpeado duramente os bandidos.

Isto não seria, claro, uma verdadeira solução. Os criminosos se rearticulariam e, adiante, o problema reapareceria. É a chamada mágica besta, boa apenas para dar aos cidadãos mais simplórios a impressão de que o governador tem muque.

Se a polícia estadual está corroída pela corrupção, a obrigação de Cabral é saneá-la, o quanto antes. Depois, dotá-la de efetivos suficientes para o bom cumprimento de suas tarefas, de treinamento e de equipamento adequados.

Como os integrantes dos comandos criminosos se ocultam entre a população dos morros, sua captura tem de ser confiada a unidades de elite, que consigam atingir seus objetivos com precisão cirúrgica – e não mandando bala a torto e a direito. O Estado não tem o direito de dispor a bel-prazer da vida dos favelados inocentes.

Este é, aliás, um grande problema da participação das Forças Armadas em operações policiais. A cultura militar é de responder sempre ao fogo inimigo. Se o inimigo está oculto no meio de civis, estes acabam levando as sobras.

Outro problema, obviamente, é que a Inteligência militar só funciona a contento com a aplicação indiscriminada de torturas. É inadmissível que, para enfrentarmos o desafio do crime organizado, tenhamos de abrir mão dos valores civilizados. Isto seria um mal maior ainda do que o mal que se pretende combater.

Por último, deixar que as Forças Armadas venham para as ruas é sempre um perigo. Da última vez, levamos 21 anos para fazê-las voltar aos quartéis.

Políticos do tipo de Lula e Cabral têm memória curta e só levam em conta seus interesses imediatos. Azar nosso. Quem não aprende com as lições da História, está condenado a repetir os erros... e colher os mesmos resultados.


* jornalista, escritor e ex-preso político. Outros artigos: http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

5.4.07

O OVO DA SERPENTE

Celso Lungaretti (*)

"Que a comemoração de mais um aniversário do vitorioso movimento de 64 possa servir de alerta a aqueles (sic) que ainda têm esperança de implantar, no Brasil, um retrógrado regime bolchevista. Que não tentem isso novamente, porque o povo e as Forças Armadas, mais uma vez, irão às últimas conseqüências para evitar que tal aventura tenha sucesso.”

Esta afirmação encerra uma nota do presidente do Clube de Aeronáutica, tenente-brigadeiro da reserva Ivan Frota, criticando a atuação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na condução da crise aérea. Trata-se de mais uma bravata de militar de pijama inconformado em só servir hoje para levar os netinhos ao playground... ou devemos temer algo mais sério?

Não foi só ele, evidentemente, que olhou para os acontecimentos dos últimos dias com esperança ou apreensão. Coincidências costumam ser encaradas como presságios. E houve a simultaneidade entre o transcurso dos 43 anos do golpe militar e mais uma lambança do Governo Federal, desautorizando a solução que o comando da Aeronáutica pretendeu dar à rebelião dos controladores de vôo.

Em 1964, na verdade, só houve uma “aventura”: o desfecho vitorioso da conspiração que vinha sendo urdida há pelo menos uma década por núcleos de militares direitistas.

A grande maioria da oficialidade relutava em rasgar a Constituição que prometera respeitar; preferia manter-se afastada da política, cumprindo seus deveres profissionais. No entanto, os movimentos de sargentos, cabos e soldados das Forças Armadas acabaram por atirar os oficiais nos braços dos conspiradores.

Eram, principalmente, reivindicatórios e anti-autoritários. Os subalternos pediam algumas melhoras e protestavam contra os exageros disciplinares de seus superiores.

Como militante da Vanguarda Popular Revolucionária em 1969/70, conversei muito sobre esses episódios com o ex-sargento José Raimundo da Costa, um dos líderes dos marujos. Ele me garantiu que, mesmo após a Revolta da Chibata, continuavam existindo, sub-reptícios, os castigos físicos na Marinha.

Deixo isto como registro, pois não tenho como confirmar a informação. Mas, plausível ela é, pois, em pleno século 21, continuam pipocando no noticiário denúncias de maus-tratos a subalternos nas Forças Armadas.

O certo é que a oficialidade da Marinha era a mais aristocrática e arrogante das três Armas, o que explica a maior abrangência e radicalismo dos protestos de marinheiros.

Uma discussão que perdura até hoje é se esses movimentos foram instigados pelos militares conspiradores.

De concreto, há o fato de que foram eles os principais beneficiados. Os oficiais prezam, acima de tudo, a hierarquia. Ao serem desacatados pelos subalternos (alguns deles -- suprema humilhação! -- chegaram a ser atirados ao mar pelos comandados), bandearam-se em massa para o lado dos golpistas.

Especula-se também sobre quando, exatamente, José Anselmo dos Santos (o notório cabo Anselmo) passou a servir à direita. Durante a resistência à ditadura, ele atraiçoou os companheiros da organização a que pertencia, atraindo-os para emboscadas fatais, até que sua adesão ao inimigo se tornou conhecida.

No entanto, seus ex-colegas da marujada garantem que ele era um provocador a serviço da direita golpista desde antes de 1964, mesmo porque fazia sempre os discursos mais radicais nas assembléias de marinheiros.

Os paralelos entre esses acontecimentos e a atual insubordinação dos controladores de vôo têm sido destacados na imprensa e na Internet. Tudo leva a crer que a conduta vacilante do Governo Lula haja mesmo aumentado o número de oficiais simpáticos às posições direitistas.

Mas, ainda estamos muito longe da ante-sala do novo golpe, alardeado pelos alarmistas de plantão.

PROPAGANDA ENGANOSA – A extrema-direita é forte, sobretudo, entre os militares da reserva e na Internet, em que mantém vários sites com esquemas os mais opulentos, evidenciando que recursos materiais não lhes faltam.

Produz vastíssimo material de propaganda -- artigos capciosos montados com mentiras, meias-verdades e conclusões delirantes -- que suas tropas de choque pressurosamente recortam e colam como posts nas comunidades e fóruns de discussão política, História, direitos humanos, etc.

Com isto, consegue fazer a cabeça de muitos jovens, convencendo-os de que a ditadura foi light (Lula endossa esta falácia!) e botou ordem na casa, trazendo prosperidade e segurança. Os resistentes, pelo contrário, são apresentados como ladrões de banco, seqüestradores, terroristas e assassinos, que estariam agora recebendo indenizações mirabolantes do Estado brasileiro.

Todo esse besteirol é facilmente refutável. Mas, como ensinava o ministro de Propaganda de Hitler, Josef Goebels, "qualquer mentira repetida à exaustão acaba por se tornar uma verdade".

Os democratas se deram por satisfeitos vendo a verdade sobre os anos de chumbo incorporada à História. Subestimaram, entretanto, o poder da propaganda enganosa, ainda mais quando exercida de forma tão massacrante, como um rolo compressor.

Deveriam, atualmente, preocupar-se em tornar as verdades históricas mais acessíveis às novas gerações, como antídoto às pregações totalitárias.

ANÃOS MORAIS – Há uma diferença fundamental entre 1964 e 2007. Os Estados Unidos e parte do empresariado brasileiro favoreciam a conspiração, naquele contexto de guerra fria. Hoje, entretanto, salta aos olhos que o Governo Lula está perfeitamente afinado com os banqueiros e os capitalistas.

É risível atribuir-lhe “esperança de implantar, no Brasil, um retrógrado regime bolchevista”, como faz o tenente-brigadeiro Frota no seu aviãozinho retórico de vôo curto. E as tentativas de associar Lula às Farc ou aos planos maquiavélicos de Chavez simplesmente não colam. O máximo de que se pode acusá-lo, com alguma verossimilhança, é de continuísmo enrustido.

Então, a direita troglodita pôde contribuir um pouco para a vitória do “não” no plebiscito sobre o comércio de armas, tem enorme presença virtual e promove desagravos ao torturador-símbolo do País. Mas, por enquanto, não conta com o aval dos EUA e do grande capital para tentar nova quartelada.

Não se deve subestimá-la, contudo. Mesmo porque é, qualitativamente, pior ainda que a de 1964.

Naquele tempo, havia cidadãos seriamente convencidos do perigo comunista e/ou da conveniência de o Brasil ser sócio minoritário dos EUA. Não foram apenas os despóticos e os oportunistas que se colocaram do lado errado.

Hoje, os Bolsonaros, Passarinhos, Olavos de Carvalho e Ustras lideram um contingente de genocidas incomodados com seu papel na História e ansiosos por reescrevê-la à base da força bruta; políticos ambiciosos buscando atalhos para o poder; e uma massa informe de pessoas pouco brilhantes, frustradas e rancorosas, praticamente idênticas à escória urbana que respaldou a ascensão de Hitler e Mussolini.

Esses pseudo-moralistas estão sempre prontos a recriminar pequenas maracutaias, supostas ou reais, mas nada têm a dizer sobre os lucros imorais do sistema financeiro e a ganância criminosa das grandes empreiteiras.

Têm inveja dos cidadãos que supõem terem sido mais bem sucedidos do que eles em “espertezas” das quais eles próprios adorariam ser os beneficiários, mas mantêm um respeito servil em relação aos empresários mais predatórios.

Gostariam de ver a criminalidade erradicada à bala, desde que a “limpeza” ficasse a cargo de outrem, pois não têm coragem de agir pessoalmente como justiceiros.

Em suma, não passam de anãos morais, desprezíveis individualmente mas que podem se tornar perigosos como turba.

Nunca a expressão ovo da serpente foi tão apropriada.


* jornalista, escritor e ex-preso político. Outros artigos: http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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