Aos 42 anos, certa noite saí de um cinema, fui atravessar a rua e acordei num hospital público, com três fraturas na tíbia, sem sequer lembrar-me do que havia ocorrido.
Durante a lenta recuperação, dei-me conta de que poderia ter morrido naquela noite, insensivelmente. Apenas não despertaria neste mundo. Talvez num outro, talvez em nenhum.
A consciência da nossa mortalidade nos chega assim, de repente. Num instante, nem pensamos nisso, mas nos sentimos como se ainda tivéssemos décadas e décadas pela frente. No instante seguinte, cai-nos a ficha de que podemos ser surpreendidos pela morte a qualquer momento.
O já surrado clichê: passei a viver cada dia como se fosse o último, a agir da maneira como gostaria de ser lembrado caso fosse esse meu derradeiro ato.
Devo ter-me tornado um ser humano melhor. Com certeza, mais guerreiro. Deixei de protelar minhas lutas para um amanhã que poderá não chegar.
Há, entretanto, um compromisso que assumi comigo mesmo e não estou tendo condições de cumprir, qual seja o de lançar mais luzes sobre o que aconteceu naquele terrível abril de 1970, quando a VPR foi praticamente desbaratada pela repressão.
Graças a um relatório secreto militar que veio a público e a um historiador honrado (até por ser ele também um ex-combatente), já consegui provar que, em circunstâncias obscuras, uma ou várias pessoas decidiram que eu levaria a culpa, perante a sociedade brasileira e a História, por algo que outra pessoa havia revelado à repressão: a localização da escola de treinamento guerrilheiro da VPR.
Mas, houve também uma seqüência terrível de prisões – as quedas em cascata que eram o pesadelo dos militantes da luta armada – e até agora foi insuficientemente explicada.
Disso não tentaram jogar a culpa em mim, porque seria impossível, estruturalmente, um comandante de Inteligência derrubar daquela forma a Organização no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul.
Pelo nosso organograma, eu me reportava aos comandantes das unidades de combate (Juarez Guimarães de Brito e José Ronaldo Tavares de Lira e Silva) e aos comandantes nacionais Ladislau Dowbor e Maria do Carmo Brito. Como nenhum deles caiu por meu intermédio, eu não serviria como bode expiatório.
Uma informação importante: quando o Jacob Gorender colhia depoimentos para escrever “O Combate nas Trevas”, remanescentes da Organização se reuniram em Lisboa e combinaram entre si as versões que lhe contariam, nas entrevistas que ele já solicitara.
Vai daí que as quedas em cascata da VPR, em abril/1970, foram atribuídas, na edição inicial do “Combate nas Trevas”, a apontamentos encontrados no aparelho de Juarez Guimarães de Brito.
É UMA INFÂMIA: CANALHAS VIVOS DECIDIRAM TRANSFERIR SUAS CULPAS A UM COMPANHEIRO DE COMPORTAMENTO IRREPREENSÍVEL, QUE MORREU HEROICAMENTE PELA CAUSA!
Como tive a honra de lutar ao lado do Juarez, afirmo que ele era um dos companheiros mais ciosos das regras de segurança. Jamais deixaria qualquer tipo de registro que pudesse comprometer a liberdade e a vida dos outros militantes.
Aliás, como não sabíamos onde os outros se escondiam e só os encontrávamos nas ruas, nem haveria maneira de a repressão chegar a alguém a partir de meras anotações.
Àquela altura, nossos pontos já nem eram mais em locais fixos. Combinávamos que, a partir de certo número (o nº 500 da av. Rio Branco, p. ex.), um seguiria para cima e o outro para baixo, dando a volta no quarteirão até que ocorresse o encontro (alvos móveis teriam tempo maior de reação, caso houvesse uma emboscada).
Mais: quando era imperioso anotar essas coordenadas, o fazíamos em código, não explicitamente. “Rio Branco” viraria RB. O nº 500 seria substituído por um código de letras (no meu caso, GEE). O que fosse para cima, grafaria +. E o horário também entraria como letras.
Então, morto alguém, de que serviria para a repressão encontrar um papel em que estivesse escrito SEBE RB GEE +? Como conseguiria descobrir que significava 10h30, na av. Rio Branco, indo para cima a partir do nº 500?
Enfim, os que tinham realmente culpa pelas quedas em cascata imaginaram que poderiam atribuir ao Juarez deslize semelhante ao cometido décadas antes pelo Luiz Carlos Prestes, com suas famosas cadernetas. Enganaram a alguns por algum tempo. Mas, não todos por todo o tempo.
Depois, as mesmas pessoas contaram versões igualmente adulteradas para a Judith Patarra, de forma que os mesmos vilãos foram inocentados e os mesmos inocentes vilificados no livro “Iara”.
Mais recentemente, tomei conhecimento também de que uma pessoa que teve grande responsabilidade nas quedas de abril/1970 foi submetida a um tribunal revolucionário no Chile, em fevereiro/1971, por não haver se comportado nos porões de maneira compatível com a sua posição na Organização. Por que isso foi tão bem escondido da esquerda e dos historiadores?
Não sei se disporei de oportunidade e meios para tirar esses assuntos a limpo. Mas, tendo ocorrido um complô para falsificar a verdade histórica, iludir historiadores e denegrir revolucionários (atirando-lhes culpas que não tinham), trata-se de algo gravíssimo. Espero que os historiadores de hoje, até por brio profissional, tentem elucidar estes fatos.
Por via das dúvidas, deixo este registro aqui.
É importante, sobretudo, que não pairem quaisquer dúvidas sobre Juarez Guimarães de Brito, um companheiro exemplar, cuja memória não deve jamais ser atingida por (faço questão de repetir) UMA INFÂMIA. De sordidez inqualificável.
P.S.: depois de ter escrito este registro, tomei conhecimento de que havia sido, sim, acusado de responsabilidade por "dezenas de quedas", no livro "Os Carbonários", de Alfredo Sirkis. Trocamos e-mails e ele renegou o que dissera sobre mim no seu texto original de 1978, informando que já se posicionara melhor, fazendo uma espécie de mea culpa, numa edição posterior da obra. Além disso, dispôs-se a incluir doravante minha incisiva refutação deste e de outro absurdo (uma imputação de colaboração com a repressão, totalmente estapafúrdia e sem fonte declarada). Aceitei suas justificativas e dei por encerrada a questão.
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