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30.1.08

FESTA DA IGUALDADE, DA LOUCURA E DO PRAZER

A origem do carnaval perde-se na poeira dos tempos. Há quem tente remontá-la ao culto agrário praticado por povos que existiram 10 mil anos antes de Cristo: homens e mulheres mascarados, com corpos pintados e cobertos de peles ou plumas, saíam em bandos e invadiam as casas, fazendo terríveis algazarras.

Outros autores lembram as festas alegres do paganismo, como a de Ísis e a do Boi Ápis, entre os egípcios, e as bacanais, lupercais e saturnais dos romanos.

Suetônio, historiador da Roma antiga, refere-se às saturnais como “desenfreada libertinagem, cínica palhaçada”. E diz que, durante esse período “todos pareciam enlouquecer”. Armavam-se grandes mesas à frente das casas para senhores e escravos comerem à vontade, sem distinções. E os escravos tinham o direito de dizer verdades a seus donos, ridicularizá-los, fazer o que quisessem.

A componente libidinosa do carnaval é inegável em todos os textos antigos. Sabe-se, p. ex., que o termo carnaval deriva do latim carrum novalis, deignação de um tipo de carro alegórico da Grécia e Roma antigas. Dezenas de pessoas mascaradas caminhavam a seu lado e ele trazia no bojo “mulheres nuas e homens que cantavam canções impudicas”.

A Idade Média, com a rígida tutela religiosa sobre a vida social, não poderia trazer acréscimos significativos ao carnaval. Mas, pelo menos, não conseguiu extinguir esses festejos, que continuaram existindo como um contraponto à monótona existência dos feudos.

Contam alguns textos, inclusive, que os padres, depois de pregarem em vão contra o carnaval, acabavam convidando os fiéis a concentrarem as comemorações na praça da igreja, para que tal logradouro não ficasse desvalorizado...

A Renascença viria libertar os europeus da sensação de culpa que a religião procurava insistentemente associar ao prazer e à alegria. Os distantes e etéreos paraísos prometidos nos púlpitos, bem como as dantescas descrições do inferno que esperava os pecadores, tornaram-se insuficientes para afastar o povo da folia. A grande festa pagã renascia em todo o seu esplendor.

O medonho entrudo português – Para nós interessa, sobretudo, o carnaval português, conhecido como entrudo. Até fins do século 19, o nosso carnaval teria as mesmas características do “medonho entrudo português, porco e brutal”, a que se refere uma historiadora, assim descrevendo-o: “pelas ruas de Lisboa, generalizava-se uma verdadeira luta em que as armas eram os ovos de gema, ou suas cascas contendo farinha ou gesso, cartuchos de pó de goma, cabaças de cera com águas de cheiro, tremoços, tubos de vidro ou de cartão para soprar com violência, milho e feijão que se despejam aos alqueires sobre as cabeças dos transeuntes...”

A pesquisadora Eneida, em sua História do Carnaval Carioca, relaciona diversos casos para comprovar que, a exemplo do que ocorria na Roma de Suetônio, o carnaval aqui também se constituía no único período em que os escravos desfrutavam de uma certa liberdade. E conclui: “Parece que uma das características do carnaval é dar aos escravos de qualquer época o direito de criticar e zombar de seus senhores”.

Os limites da democracia, entretanto, sempre foram muito exíguos no Brasil, então houve também medidas caracteristicamente discricionárias. Em 1857, o chefe de polícia do Rio de Janeiro lançou um edital proibindo “o jogo do entrudo dentro do município. Qualquer pessoa que o jogar incorrerá na pena de 4$ a 12$ e não tendo com que satisfazer, sofrerá oito dias de cadeia, caso o seu senhor não o mande castigar no calabouço com cem açoites”. Ou seja, multa para os brancos proprietários, xilindró e chicotadas para os escravos. A relatividade vem de longe...

A agressividade igualmente se evidencia em todos os textos da época. Sabe-se, p. ex., que o único objeto de divertimento do carnaval brasileiro era o limão de cheiro, uma imitação de laranja, com invólucro de cera e água fétida por dentro.

O pintor e engenheiro Jean-Baptiste Debret, que aqui veio com a Missão Artística Francesa em 1818, ficou estarrecido com a selvageria explícita: “Vi jovens negociantes ingleses passearem, com orgulho e arrogância, acompanhados por um negro vendedor de limões cujo tabuleiro esvaziavam pouco a pouco, jogando os limões às ventas de pessoas que nem sequer conheciam”.

Episódios deste tipo o marcaram tanto que um de seus desenhos mais famosos, Cena de Carnaval, mostra uma negra atacada na rua por um crioulo de cartola, que lhe esfrega no rosto um bocado de goma, enquanto o outro negro ensopa o primeiro com água de uma longa seringa.

Apenas no final daquele século a agressividade foi se atenuando e as bisnagas passaram a conter, ao invés de água suja, líquidos menos repugnantes, como vinagre, groselha e vinho; idem os limões de cheiro, cujas águas fétidas e até urina foram trocadas por inofensivos perfumes.

Zé Pereira! Bum, bum, bum! – O personagem mais característico do carnaval brasileiro surgiu em meados do século 19 e logo se tornou uma instituição popular. Trata-se do Zé Pereira, calcado na figura do sapateiro José Nogueira de Azevedo Pereira.

Português de nascimento, ele um dia entretinha-se com outros patrícios, recordando as romarias, estúrdias e estrondos da pátria distante. A saudade era tanta que eles resolveram sair à rua, ao som de zabumbas e tambores alugados às pressas, para fazer uma passeata pela cidade.

Foi um enorme sucesso, logo copiado por dezenas de grupos semelhantes, fazendo com que o Zé Pereira se transformasse num personagem mística, identificado com o próprio carnaval (“E viva o Zé Pereira/ Pois que a ninguém faz mal/ E viva a bebedeira/ Nos dias de carnaval”).

Para a historiadora Eneida, o Zé Pereira “foi essencialmente o carnaval do pobre. Tão fácil, no meio da miséria reinante, sair à rua com bumbos e tambores, uma camisa qualquer, uma calça de qualquer espécie e fazer barulho, alegrar com um ritmo efusivo as ruas e os bairros!”.

Seu desaparecimento, no começo do século passado, é indício de que o carnaval perdia espontaneidade, tornando-se festa opulenta e regulamentada, sem espaço para os improvisos populares.

Mas, a alma do Zé Pereira sobrevive nos blocos dos sujos, que insistem em se formar sem ensaios e mensalidades, para existir num momento e viver intensamente esse momento, na melhor tradição do carnaval.

Samba e umbigada – Até o início do século passado samba e carnaval tiveram trajetórias distintas, que foram convergindo no sentido de uma perfeita complementação.

O samba remonta à chegada no Brasil de escravos negros, que logo foram introduzindo seus ritmos, danças, cantigas, costumes e crenças. Assim, após o trabalho exaustivo (ou nos raros dias de folga), eles dançavam e batucavam com seus instrumentos rudes, nos terrenos das fazendas, engenhos e canaviais. Alegria sofrida, ritmo de quem esforçava-se por esquecer a tristeza, as privações e os maus tratos.

O batuque tipicamente africano foi caindo em desuso com o desaparecimento dos nativos daquele continente. Uma variação abrasileirada espalhou-se por todo o País, já com a denominação de samba. E, na zona rural, o encontro de culturas deu origem a uma derivação pitoresca, os chamados sambas sertanejos, em que homens e mulheres participavam da roda cantando em coro, ao som de instrumentos de percussão e da viola de arame.

Segundo um cronista da época, “os dançadores formam roda e, ao compasso de uma viola, move-se o dançador do centro, avança e bate com a barriga de outro da roda, uma pessoa de outro sexo. Não se pode imaginar uma dança mais lasciva do que esta, razão por que tem muitos inimigos, principalmente entre os padres”.

Lenço no pescoço – A fase heróica do samba foi a da pernada carioca, diversão a que se entregavam os remanescentes dos inúmeros grupos de capoeiristas existentes no Rio de Janeiro em fins do século 19.

Tratava-se de uma batucada braba, na base da pernada e cabeçada, regada com doses cavalares de cachaça (“Samba de negro/ Não se pode frequentá/ Só tem cachaça/ Pra gente se embriagá”).

Os conflitos eram corriqueiros e a presença da polícia, também, dando origem a verdadeiras batalhas campais, em que instrumentos musicais serviam como armas e algumas cabeças acabavam sempre rachadas (“Tava num samba/ Lá no Sarguero/ Veio a polícia/ Me jogou no tintureiro”).

O samba era tido como coisa de pretos, malandros e marginais. A posse de um violão ou qualquer outro instrumento de samba bastava como prova de que o indivíduo era vadio e merecia ser preso. E a brutalidade da polícia tinha resposta à altura por parte dos bambas. Mortes ocorriam de lado a lado.

Foi a época do tipo celebrizado por Wilson Batista, com seu andar gingado, chapéu tombado, olhar dormente, fala cheia de gírias, lenço de seda no pescoço (para proteger-se das navalhadas), camisa listrada, calças largas (boca-de-sino) ou balão (bombacha) caídas sobre os sapatos de bico fino com salto carrapeta (mais tarde, tamancos) e, evidentemente, a inseparável navalha.

Os versos do sambista da Lapa o descreve admiravelmente: “Meu chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso/ Eu passo gingando/ Provoco desafio/ Eu tenho orgulho de ser vadio”.

Trata-se de uma figura que, como o verdadeiro carnaval, sairia de cena entre as décadas de 1930 e 1940.

O Pinto e os índios – O carnaval era uma pedra no sapato dos autoritários de todos os matizes. Os chefes de polícia, desde meados do século 19, lançaram uma interminável série de editais, ora proibindo, ora regulamentando os festejos.

No carnaval carioca de 1888, entre as muitas determinações draconianas, figurava a de que, “sem a autorização do Chefe de Polícia, não podem aparecer críticas, principalmente ao Governo”.

Episódios anedóticos ocorreram aos montes. Um delegado carioca chamado Alfredo Pinto, p. ex., notabilizou-se pela perseguição aos foliões. Em 1909, tentou proibir as passeatas e o Zé Pereira, sendo obrigado a voltar atrás por causa dos protestos da população e da imprensa.

Furioso, voltou à carga proibindo as fantasias de índio, sob a alegação de que os tacapes poderiam ser utilizados como armas. Os blocos contra-atacaram com refrões provocativos que difundiram por toda a cidade, tipo “Eu vou beber/ Eu vou me embriagar/ Eu vou sair de índio/ Pra polícia me pegar”. Em outros, houve até alusões picarescas ao sobrenome do delegado...

Domesticação e turistização – Nem a polícia do terrível Filinto Müller, durante a ditadura getulista, conseguiu pôr fim aos festejos de Momo. De repente, entretanto, o povo perdeu seu carnaval, que virou um próspero negócio para as escolas de samba e foi alçado a item prioritário da promoção do turismo.

Comemorações rigorosamente planejadas substituíram as iniciativas espontâneas do povão. Os foliões se tornaram passivos espectadores dos suntuosos e multicoloridos desfiles. Sambistas passaram a competir encarniçadamente por classificações espúrias.

Enfim, a festa do congraçamento cedeu lugar à disputa calculista. O que a polícia não conseguiu com seus cassetetes, conseguiram os negociantes com seus talões de cheque.

Como explicar essa transição negativa? Dizer que, com a industrialização, fecharam-se os espaços para a desordem remanescente da sociedade rural? Que o carnaval morreu ao se institucionalizar? Que nosso povo já não tem humor nem revolta? Explicações podem ser alinhavadas às dezenas. Mas, nenhuma servirá como consolo.

O certo é que uma genuína explosão de vida se tornou ritual de repetição. E o povo se conformou em não inventar mais seus festejos nem improvisar seus itinerários, recebendo como contrapartida lugares confortáveis nas arquibancadas dos sambódromos e o direito à licenciosidade em salões sufocantes.

Enfim, foi expulso das ruas e não se dispõe mais a lutar mais por elas.

Obs: escrevi este texto em 1980, para a edição de carnaval de uma revista masculina, assinando-o com o pseudônimo de André Mauro. Por considerá-lo ainda atual, decidi manter a redação original. Alguns trechos dispensáveis foram deletados.

23.1.08

...MENTIRA COMO TERRA

Celso Lungaretti (*)

O presidente George W. Bush e altas autoridades do governo norte-americano emitiram nada menos do que 935 declarações falsas sobre as armas de destruição em massa que o Iraque possuiria ou estaria produzindo, de forma a obterem o aval do Congresso e da população dos EUA para a invasão de um país soberano e a derrubada do seu primeiro mandatário.

Foi o que concluíram o Centro da Integridade Pública e o Fundo para a Independência do Jornalismo, duas organizações jornalísticas sem fins lucrativos. Ambas acabam de divulgar estudo segundo o qual, nos dois anos seguintes aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, as mentiras governamentais foram disseminadas via pronunciamentos, relatórios, entrevistas e outros meios, como “parte de uma campanha organizada que direcionou efetivamente a opinião pública e, no processo, empurrou o país para uma guerra com indiscutíveis falsas pretensões".

Os jornalistas Charles Lewis e Mark Reading-Smith, ao apresentarem as conclusões desse estudo no site do Centro ( http://www.publicintegrity.org/WarCard/ ), comentaram: "Agora é incontestável que o Iraque não possui nenhuma arma de destruição em massa. Em outras palavras, o governo Bush levou a nação à guerra baseado em informações equivocadas propagadas metodicamente e que culminaram numa operação militar contra o Iraque em março de 2003”.

Entre os pinóquios de alto escalão figuram também o vice-presidente Dick Cheney, a secretária de Estado Condoleezza Rice, o ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld e o ex-secretários de Estado Colin Powell e Paul Wolfowitx.

Nos EUA, a imprensa lamenta amargamente ter-se deixado embalar pelos cantos de sereia oficiais e discute procedimentos a serem adotados para evitar novos logros. É verdade que, a exemplo do caso Watergate, os governantes só conseguiram iludir os jornalistas durante algum tempo, acabando por ser desmascarados.

No entanto, naquele episódio ainda houve tempo para atenuarem-se os danos, com a renúncia forçada do presidente Richard Nixon e a incriminação de vários dos seus cúmplices. Desta vez, tudo indica que Bush encerrará o mandato sem ser punido por sua responsabilidade direta ou indireta na morte de mais de 150 mil iraquianos e a desestabilização de uma pequena nação.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor.

16.1.08

A AMORALIDADE COMO NORMA

Celso Lungaretti (*)

Quando eu estava começando a formar minhas convicções, aos 15 anos, assisti a uma peça de teatro amador sobre Galileu Galilei, que trazia, destacada nos cartazes e no programa, uma fala que me marcou para sempre: “Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar. Nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol”.

Referia-se ao recuo tático do grande físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano, que renegou sua convicção de que o Sol (e não a Terra) era o centro de nosso Universo, para obter a clemência da Inquisição. Doente e quase cego, o septuagenário Galileu fez esta concessão ao obscurantismo religioso para que sua pena de exílio fosse convertida no que hoje chamamos de prisão domiciliar.

Os homens têm enfrentado, ao longo dos séculos, o dilema moral de escolherem entre o que é certo e o que é conveniente. Às vezes, em situações ainda mais dramáticas, como a que os relatos lendários sobre a Guerra de Tróia atribuem ao rei Agamenon, quando a partida de sua monumental frota estava sendo impedida pela calmaria e um profeta lhe revelou que a deusa Ártemis exigia a vida de sua filha Ifigênia como contrapartida de ventos favoráveis.

Mas, dificilmente as opções negativas são feitas por motivos tão extremos. E, nas situações prosaicas do cotidiano, o ensinamento de Jesus Cristo continua apontando o único caminho verdadeiramente ético: “Que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?” (Mateus, 16:26).

Neste melancólico século 21, pouquíssimos hesitam em trocar a alma por dinheiro, status e poder. O capitalismo, erigindo a competitividade e a ganância em valores supremos da vida social, transforma os homens em fiéis devotos do bezerro de ouro.

A amoralidade virou norma. E existem até os que a justificam com argumentação sofisticada, como os advogados: ao representarem os piores canalhas, eles alegam que assim procedem em nome da democracia, de forma a assegurar o direito a defesa que até os nitidamente culpados têm.

Por coincidência, os piores canalhas tendem a ser os clientes que melhor remuneram os serviços advocatícios. E nunca é lembrado que todo advogado tem o direito de recusar uma causa que repugne à sua consciência, posto que outro advogado a acabará defendendo; em último caso, o juiz designará um defensor de ofício, que atuará por obrigação e não por mercenarismo.

Essas divagações me ocorreram ao ler o patético Manifesto em defesa da liberdade de Religião e do Estado de Direito, no qual o advogado Luiz Flávio Borges D’Urso invoca os mais nobres princípios para tentar colocar a opinião pública contra o Ministério Público de São Paulo, em benefício de Estevam Hernandes Filho e Sonia Haddad Moraes, autoproclamados apóstolo e bispa da Igreja Renascer.

O que se pode dizer de uma religiosa capaz de esconder dinheiro na sua Bíblia para burlar a alfândega? Nada além do que o Cristo já disse: “A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de ladrões” (Mateus, 21:13).

A liberdade de religião não justifica a omissão do Estado diante da prática continuada e comprovada do estelionato, do curandeirismo e da lavagem cerebral, como tem ocorrido até agora. A Igreja Universal do Reino de Deus já foi flagrada cometendo um rosário de crimes, sem receber a punição merecida. Continuou arrancando até o último centavo dos indivíduos sofredores e desesperados que caem em suas garras.

D’Urso esbraveja para tentar fazer com que a Renascer também escape ilesa, reforçando o ceticismo da população quanto à possibilidade de se colocar na prisão os criminosos de colarinho branco: aqueles que são ricos, detentores de bancadas legislativas e donos de emissoras de TV.

Presidente da seccional paulista da OAB, D’Urso foi o principal articulador do suspeito e fracassado movimento Cansei. Mas, parece não compartilhar do nosso cansaço com a impunidade dos exploradores da fé popular e dos poderosos em geral – que, esta sim, é uma gravíssima ameaça ao Estado de Direito, pois faz a população descrer das soluções civilizadas e ansiar pelas tropas de elite do autoritarismo.

9.1.08

FALANDO DE EFEMÉRIDES

“O grande cordão
Cantava o refrão que crescia
Da simples canção
Que era de João e Maria
E o povo na rua
Pensou que era sua
De tanto que andava
Atrás de qualquer alegria”
(Vandré/Accioly, “João e Maria”)

De tanto que andam atrás de qualquer utopia, nesta década marcada por terríveis decepções, os brasileiros elegeram prontamente a efeméride a ser destacada em 2008: os 40 anos transcorridos desde que os ventos de mudança varreram o mundo em 1968.

A tônica das grandes reportagens e das matérias-de-capa com que a mídia capitalizará esse sentimento coletivo, obviamente, vai seguir o padrão da produzida pela revista Época, comparando 1968 a um “adolescente em crise existencial” e reduzindo seu impacto à mudança da forma como vemos o mundo.

Outros, como eu, lembrarão que freqüentemente, ao longo da História, ideais revolucionários hibernaram durante algum tempo mas foram retomados por uma geração seguinte, voltando com mais força ainda. Esses analistas, no entanto, não encontrarão espaço na grande imprensa, por mais pertinente que seja sua argumentação.

Ao longo do ano, no território livre da internet, continuarei abordando 1968 do ponto-de-vista de quem quer levar adiante suas propostas e não mercadejá-lo como um exotismo inofensivo.

Hoje, no entanto, quero falar sobre outra efeméride, que corre o risco de ser ofuscada e ficar restrita aos cadernos esportivos: os 50 anos da afirmação do Brasil como país do futebol.

A conquista da Copa do Mundo de 1958 teve um significado maior para os brasileiros: provamos ao mundo e, principalmente, a nós mesmos que poderíamos ser os melhores em alguma coisa.

Até então, víamo-nos como seres inferiores, deitados eternamente em berço esplêndido, sem nunca concretizarmos o nosso potencial. Uma vinheta radiofônica dizia: “Brasil, um país a caminho do seu grande destino”. Que nunca chegava.

Enquanto isso, admirávamos, embasbacados, o progresso dos EUA e as imagens fantasiosas que os norte-americanos projetavam de si próprios via cinema e TV. Isso, claro, só fazia aumentar nossa sensação de inferioridade.

Consolávamo-nos com a ilusão de que seríamos a nação do futuro – uma pífia compensação para o passado inglório e o presente insosso. Era como a promessa católica do paraíso, o sonho que ajudava a suportar uma vida de privações.

O futebol já dera mostras, em 1950, de que poderia se tornar nosso grande motivo de orgulho nacional. No entanto, vacilamos na hora H e a euforia se transformou em frustração.

Meu pai costumava contar que, depois da fatídica derrota contra o Uruguai, a principal rua do nosso bairro ficou quase deserta, como ele nunca a vira num domingo. Rapazes e moças não tiveram ânimo para saírem de casa, na noite habitualmente destinada à paquera.

Em 1954 trombamos com o inesquecível esquadrão da Hungria e fomos merecidamente eliminados por Puskas & cia.

Aí, em 1958, receosos de mais uma frustração, não ousávamos acreditar na Seleção Brasileira. Ainda mais depois da eliminatória tortuosa, quando sofremos o diabo para conquistar a vaga... contra o Peru!

O empate diante da Inglaterra, no segundo jogo das oitavas-de-final, fez aumentar nosso pessimismo. Foram 90 minutos de sofrimento, grudados nos rádios cujo som às vezes fugia, pois as transmissões a longa distância estavam longe de ser perfeitas; quando voltava, era uma agonia até constatarmos que não ocorrera nenhum gol durante o apagão.

Iríamos para o tudo ou nada contra a poderosa URSS, que anunciava ter levantado cientificamente as vulnerabilidades dos futebolistas brasileiros.

Foi quando Vicente Feola se curvou à pressão dos jogadores e escalou o fenômeno Garrincha... que até então ficara no banco porque um laudo psicológico o dava como pouco mais do que um débil mental. Foi preciso chegarmos à beira do abismo para o técnico desconsiderar os preconceitos dos engravatados.

O resultado foi aquilo que passou à história do futebol como um dos inícios de partida mais avassaladores de uma Copa do Mundo. Imprevisível como uma força da natureza, Garrincha pulverizou a ciência soviética, colocando uma bola na trave, servindo Vavá no primeiro gol e criando sucessivas jogadas agudas.

Graças ao idiota Garrincha e ao menino Pelé, o Brasil conseguiu a mais retumbante conquista de um Mundial até hoje, vencendo por goleadas de 5x2 tanto a semifinal (França, outro esquadrão) quanto a final (Suécia, o país mandante).

O nosso povo, que há tanto tempo andava atrás de qualquer alegria, pôde finalmente desabafar: “com o brasileiro, não há quem possa!”, dizia uma marchinha.

Pena que as lições foram logo esquecidas. O embasbacamento face às metrópoles e a submissão aos preconceitos dos engravatados voltaram a prevalecer.

E continuamos reprimindo o Macunaíma que temos dentro de nós – tanto que, ao contrário dos argentinos com seu ídolo Maradona, fomos terrivelmente ingratos com nosso herói de duas Copas, deixando Garrincha agonizar no alcoolismo e abandono.

3.1.08

2008 BISANDO 1968... POR QUE NÃO?

Celso Lungaretti (*)

Quando 1968 começou, ninguém esperava que viesse a ser um ano transcendental.

Havia a intervenção estadunidense no Vietnã, uma lengalenga que já durava três anos e meio, sem receber grande destaque na imprensa mundial. Acreditava-se que a superioridade bélica dos EUA evitaria indefinidamente a tomada do Vietnã do Sul pelos vietcongs e a reunificação do país.

Então, como os norte-americanos não se dispunham a levar a guerra para o território do Vietnã do Norte, a perspectiva era de que o conflito continuasse uma tediosa seqüência de escaramuças, até o impasse militar levar os contendores à mesa de negociações.

Aí, em 30 de janeiro de 1968, os vietcongs lançaram sua inacreditável Ofensiva do Tet, atacando de uma só vez 36 cidades do Vietnã do Sul, inclusive a capital Saigon. Pior: chegaram a ocupar temporariamente a própria embaixada norte-americana.

Pagando o pesado preço de 33 mil baixas, os vietcongs conseguiram uma notável vitória política.

No mundo inteiro, a intromissão dos EUA nos assuntos internos de uma remota nação asiática era malvista, mas aceita resignadamente como uma reiteração da lei do mais forte. Quando os vietcongs demonstraram que Golias poderia, sim, ser derrotado, deram uma poderosa injeção de ânimo nos acomodados.

A partir daí, os melhores seres humanos, em todos os continentes, iriam se mobilizar cada vez mais intensamente para que a justiça prevalecesse. A queima de bandeiras estadunidenses nas manifestações de protesto no exterior viria somar-se à queima das convocações militares por parte de jovens norte-americanos que se recusavam a participar de uma guerra impopular.

Corações e mentes acabariam sendo mais decisivos do que as armas. E foi no início de 1968, sem que ninguém esperasse, que essa guinada memorável começou.

Da mesma forma, foi no início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, que a polícia da ditadura atacou barbaramente um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiro um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas setembradas de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas para ficar, marcando fortemente sua presença ao longo de todo o ano.

Quatro décadas depois, 2008 também começa sem que ninguém, em sã consciência, tenha motivos para sonhar com a volta do idealismo à política e à sociedade.

No entanto, a intervenção militar no Iraque começa a ser tão desastrosa para os EUA, externa e internamente, quanto o foi a do Vietnã.

No entanto, a onda de ocupações de reitorias no semestre passado é um indício de que o movimento estudantil brasileiro começa a renascer – tanto quanto as setembradas de 40 anos atrás.

E há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não agüenta viver indefinidamente sem esperança, solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se viver sob o neoliberalismo. Algo tem de mudar – e essa mudança poderá acontecer em 2008.

Lembrando o Caetano dos bons tempos: por que não?

Lembrando o Vandré dos bons tempos: quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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