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19.8.08

1968: O CÉU COMO BANDEIRA E A HISTÓRIA NA MÃO

Celso Lungaretti (*)

No início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, a polícia da ditadura atacou barbaramente um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiros um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas setembradas de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas para ficar. Com a certeza na frente, tentando tomar a História na mão [1], marcaram fortemente sua presença ao longo do ano.

Aprofundando um pouco a análise, podemos dizer que o final da década de 1960 marca a transição da sociedade rígida e patriarcal característica da fase da industrialização para o amoralismo da sociedade de consumo, em que tudo e todos devem estar disponíveis para o mercado.

Então, de certa forma, a contestação à autoridade de autoridades, reitores, sacerdotes, "doutores" disso e daquilo, dos luminares da sociedade em geral, convinha ao próprio capitalismo, que estava passando da fase das grandes individualidades para a da liderança participativa. O foco passaria a ser o consumidor, o cidadão comum, em lugar do grande homem, a personificação da elite.

Respirava-se anti-autoritarismo. As artes passavam por um momento de ousadias e experimentalismo no mundo inteiro, a imprensa se modernizava a olhos vistos, a liberalização de costumes e a liberação sexual entravam com força total.O movimento estudantil, estimulado pelos ventos de mudança, foi fundo na tarefa de derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, as vidraças [2].

E, no hiato entre a etapa capitalista que terminava e a que ia começar, muitos jovens sonharam com algo maior: uma sociedade sem classes, em que não existisse a exploração do homem pelo homem e na qual a economia se voltasse para a satisfação das necessidades humanas em vez de ser regida pela ganância. Um ideal simbolizado por Che Guevara, o último revolucionário internacionalista de dimensões míticas, com seu corpo cheio de estrelas e tendo el cielo como bandera [3].

Mas, a repressão brutal desencadeada pela ditadura, principalmente após a assinatura do AI-5, inviabilizou a mudança maior que muitos pretendiam. Então, sobre a terra arrasada, o que floresceu foi mesmo a sociedade de consumo.

A classe média, eufórica com o milagre brasileiro, tratou é de enriquecer. E a esquerda estava tão debilitada pela perda de seus melhores quadros que pouco pôde fazer contra a conjugação de boom econômico e terrorismo de estado.

O ME de 1968 foi, portanto, resultado de circunstâncias especiais e únicas. Daí não poder ser comparado com (como muitos fazem, para depreciar) o de hoje, quando os jovens, ademais, têm de esforçar-se no limite de suas forças para começarem bem uma carreira, o que acaba fazendo-os desinteressarem-se por quase todo o resto.

COMPETIÇÃO OBSESSIVA

Essa própria dificuldade insana que encontram para afirmar-se profissionalmente deveria levá-los a refletir sobre as distorções da sociedade atual. A competição obsessiva que aborta talentos e condena tanta gente a não desenvolver seu potencial é um dos horrores do capitalismo globalizado, em que há sempre mais postulantes do que vagas no mercado.

Talvez seja, aliás, este o momento em que os estudantes começam a se indagar sobre a validade de se continuar nesse funil perverso, passando por cima dos despojos dos que tombarem no caminho.

Da mesma forma que as setembradas de 40 anos atrás, a onda de ocupações de reitorias iniciada no ano passado é um indício de que o movimento estudantil brasileiro pode renascer.

E há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não agüenta viver indefinidamente sem esperança, solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se viver sob o neoliberalismo. Algo tem de mudar – e essa mudança poderá suceder a partir de agora.

Lembrando o Caetano dos bons tempos: por que não? [4]

Lembrando o Vandré dos bons tempos: quem sabe faz a hora, não espera acontecer [5].

Lembrando o Raul Seixas dos bons tempos: a gente ainda nem começou [6].

* Celso Lungaretti, jornalista e escritor, participava do movimento secundarista paulistano em 1968.

[1] Geraldo Vandré, "Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores"
[2] Caetano Veloso, "É Proibido Proibir"
[3] Gil, Capinan e Torquato, "Soy Loco Por Ti, América"
[4] Caetano Veloso, "Alegria, Alegria"
[5] Geraldo Vandré, "Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores"
[6] Raul Seixas, "Cachorro Urubu"

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