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31.7.09

A CRISE CAPITALISTA E A IMPOTÊNCIA DOS GOVERNOS

Desempregados na fila da sopa, durante a Grande Depressão.

O filósofo francês Luc Ferry é um pensador estimulante. Chama-nos a atenção para fenômenos que estavam nos passando despercebidos e ousa questionar o chamado politicamente correto.

P. ex.: devemos, em nome do respeito às tradições de outros povos, concordar com a utilização da burca pelas mulheres de religião muçulmana? Ferry, quando ministro da Educação, a proibiu nas escolas francesas. E justifica:
"...a burca (...) não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos".
Entrevistado pela Folha de S. Paulo (ver aqui), Ferry foi muito feliz ao discorrer sobre a crise global do capitalismo, vindo ao encontro de algumas posições por mim defendidas. Se não, vejamos:
"Ao contrário do que se diz, não se trata de uma crise financeira, mas de uma crise econômica no sentido tradicional. A visão ingênua pela qual existem uma 'boa economia', a economia 'real' e uma economia 'ruim', a economia especulativa, não resiste à análise.

"Os países ocidentais mais industrializados, os Estados Unidos particularmente, conheceram nos anos 90 uma forte bipolarização do mundo do trabalho. Nessa época, criou-se um cenário onde havia, de um lado, trabalhadores altamente qualificados e bem-remunerados e, do outro, uma massa de trabalhadores mal paga por ser menos qualificada. Ou seja, a globalização fez as classes médias minguarem. O problema é que eram elas que geravam o crescimento e que mais consumiam.

"Foi nesse cenário que surgiu nos EUA o recurso ao endividamento maciço dos lares mais populosos e menos ricos, os famosos 'subprimes'. A partir daí não foram mais os salários das classes médias que geraram crescimento, mas o endividamento dos pobres. Em outras palavras, a riqueza passou a ser aumentada não mais a partir da riqueza em si, mas a partir de dívidas! E assim multiplicaram-se nos EUA, nos últimos 15 anos, sistemas de empréstimo de alto risco.

"Foi no contexto dessa nova lógica econômica que a crise financeira veio se inserir. Demorou até os créditos de risco serem transformados em títulos que acabaram espalhados por bancos do mundo todo e viraram, com o apoio das agências de classificação de risco, produtos financeiros de difícil leitura.

"É evidente que esse processo só aconteceu graças à cumplicidade de banqueiros, incluindo o banco central americano, que sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas o importante é que o mundo financeiro, por mais culpado seja, não está na raiz da crise, que é antes de mais nada uma crise da economia real".
Desde o primeiro momento afirmei que se tratava da versão modernizada das crises cíclicas do capitalismo, tão bem dissecadas outrora pelos pensadores marxistas. Hoje elas podem ser represadas por mais tempo, mas não eliminadas.

Continua existindo a velha contradição entre o total de produtos oferecidos ao consumo e o poder aquisitivo dos consumidores, já que estes não recebem, como remuneração por seu trabalho, o exato valor dos bens que produziram. A velha mais-valia, enfim.

Ora, a margem de manobra do capital é hoje muito maior. Ele cria consumidores, ao conceder-lhes crédito praticamente ilimitado. Mas, claro, o elástico estica, estica, até que um dia arrebenta.

Aí, a indústria cultural vende a idéia que o capitalismo produtivo é bom e o capitalismo especulativo é ruim. Papo furado. O médico e o monstro são a mesmíssima pessoa, como no clássico de Robert Louis Stevenson.

Tal contradição é impossível de ser resolvida nos quadros do capitalismo: trata-se do sistema econômico alicerçado sobre a existência da mais-valia, quer ela se apresente com a clareza cristalina dos tempos de Marx, quer dissimulada pelos jogos de espelhos da sociedade atual.

Então, depois que o mundo inteiro pagar o preço da irracionalidade capitalista nesta crise, novos mecanismos reguladores serão instituídos para disciplinar o mercado financeiro e a indústria cultural venderá a ilusão de que Mr. Hyde nunca mais dará as caras. Foi o que aconteceu depois do crash de 1929 e da década inteira de depressão subsequente.

Ora, todos aqueles erros que nunca mais seriam cometidos, o foram novamente na atualidade. E, se não nos livrarmos do capitalismo, o Dr. Jekyll voltará a virar monstro daqui a umas tantas décadas. É simples assim.

PODER POLÍTICO x PODER ECONÔMICO

Na entrevista hoje publicada, Ferry veio ao encontro de outra tese que eu e muitos esposamos: a de que o poder Executivo é hoje satelizado pelo capitalismo globalizado e não serve como ferramenta para mudarmos a sociedade num sentido anticapitalista:
"No universo globalizado em que estamos mergulhados, as ferramentas tradicionais das políticas nacionais se tornam cada dia menos relevantes. O maior fenômeno desta virada de século é a impotência pública, o fato de nossos políticos terem perdido praticamente todo o poder diante de um desenvolvimento globalizado que lhes escapa por toda parte. É o grande problema da política moderna: a questão hoje não é mais somente o que fazer, mas principalmente como recuperar o controle, como recuperar um pouco de poder e de margem de manobra.

"[Um grande desafio é] resolver o problema duplo levantado pela crise. Primeiro: como reatar com um crescimento acarretado pela riqueza verdadeira, e não pelo endividamento. Segundo: como recuperar o controle sobre um mundo globalizado que nos escapa por todos os lados, tanto no plano econômico como no ecológico".
Trocando em miúdos: os governos são impotentes para impedirem que o capitalismo continue gerando depressões econômicas e desastres ecológicos cada vez piores.

E, acrescento eu, continuarão sendo-o até que a humanidade morra abraçada com o capitalismo.

A alternativa é os cidadãos comuns, independentemente dos governos, agindo em nome da sobrevivência da nossa espécie, tomarem seu destino nas mãos, construindo uma economia baseada no atendimento das necessidades humanas e na convivência harmoniosa com o meio ambiente.

Mas, terão de fazer isto logo, antes que os danos causados pela componente destrutiva do capitalismo ultrapassem o ponto de não-retorno.

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