Numa decisão histórica e soberana, resistindo às fortes pressões do Governo Berlusconi, o ministro da Justiça Tarso Genro concedeu na tarde de ontem (13) refúgio humanitário ao perseguido político Cesare Battisti, que será libertado nesta quarta-feira, após quase 22 meses de prisão. Cesare adquiriu o direito de residir com sua esposa e duas filhas no Brasil, onde deverá continuar exercendo o ofício de escritor.
A decisão de Genro veio ao encontro da avaliação do jurista Dalmo Dallari, segundo quem Battisti foi condenado à prisão perpétua num "julgamento viciado"; e da minha conclusão, expressa em vários artigos nos últimos meses, de que se tratou de "uma verdadeira aberração jurídica", decorrente do "clima de caça às bruxas instalado da Itália a partir da comoção popular que o assassinato de Aldo Moro provocou".
Foi o que Genro afirmou nas justificativas de sua decisão: desafiado pelas organizações armadas de esquerda, "o Estado italiano reagiu (...) não só aplicando normas jurídicas em vigor à época, mas também criando 'exceções' (...) que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou ações violentas, inclusive com a instituição da delação premiada, da qual se serviu o principal denunciante" de Battisti.
O ministro considera fundamental que, mesmo em situações de emergência como aquela que a Itália enfrentava, "jamais seja aceita a derrogação dos fundamentos jurídicos que socorrem os direitos humanos".
Não foi o que aconteceu, segundo Genro, que citou um trecho clássico de Norberto Bobbio a respeito dos excessos ali cometidos pelo Estado: “A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (...) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’, ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (...) por uma duração máxima de dez anos e oito meses".
Tanto quanto o enquadramento de Battisti numa lei promulgada anos depois e que foi aplicada retroativamente contra ele, a hipótese de um cidadão permanecer preso preventivamente durante dez anos e oito meses (!) atesta, de forma eloquente, que se praticavam as mais chocantes aberrações jurídicas na Itália dos anos de chumbo!
O PODER OCULTO E OS PORÕES - E as agressões aos direitos constitucionais dos réus não se limitavam ao recinto dos tribunais, ressaltou o ministro da Justiça: "É público e incontroverso, igualmente, que os mecanismos de funcionamento da exceção operaram, na Itália, também fora das regras da própria excepcionalidade prevista em lei".
Segundo Genro, assim como sucedia "tragicamente" no Brasil de então, também na Itália "ocorreram aqueles momentos da História em que o 'poder oculto' aparece nas sombras e nos porões, e então supera e excede a própria exceção legal", daí resultando "flagrantes ilegitimidades em casos concretos".
As arbitrariedades repercutem até a atualidade, acrescenta o ministro: "Determinadas medidas de exceção adotadas pela Itália nos 'anos de chumbo' (...) ressoam ainda hoje nas organizações internacionais que lidam com direitos humanos. A condenação a determinados procedimentos e penas motivou, de um lado, relatórios da Anistia Internacional e do Comitê europeu para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes e, de outro, a concessão de asilo político a ativistas italianos em diversos países, inclusive não europeus".
Genro também rebateu a alegação italiana de que Battisti seria um criminoso comum, não podendo, portanto, beneficiar-se de um direito concedido a perseguidos políticos: "Por motivos políticos o Recorrente [Battisti] envolveu-se em organizações ilegais criminalmente perseguidas no Estado requerente [a Itália]. Por motivos políticos foi abrigado na França e também por motivos políticos, originários de decisão política do Estado Francês, decidiu, mais tarde, voltar a fugir. Enxergou o Recorrente, ainda, razões políticas para os reiterados pedidos de extradição Itália-França, bem como para a concessão da extradição, que, conforme o Recorrente, estariam vinculadas à situação eleitoral francesa. O elemento subjetivo do 'fundado temor de perseguição' necessário para o reconhecimento da condição de refugiado está, portanto, claramente configurado".
Ironicamente, o ministro destacou que as próprias sentenças condenatórias de Battisti comprovam o caráter político dos delitos a ele atribuídos, pois nelas se afirma serem todos esses tipos penais integrantes de “um só projeto criminoso, instigado publicamente para a prática dos crimes de associação subversiva constituída em quadrilha armada, de insurreição armada contra os poderes do Estado, de guerra civil e de qualquer maneira, por terem feito propaganda no território nacional para a subversão violenta do sistema econômico e social do próprio País”. Mais claro do que isto, impossível.
Finalmente, Tarso frisou que "o contexto em que ocorreram os delitos de homicídio imputados ao recorrente, as condições nas quais se desenrolaram os seus processos, a sua potencial impossibilidade de ampla defesa face à radicalização da situação política na Itália, no mínimo, geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal".
E, como o in dubio pro reo é norma nesses casos, Tarso a seguiu fielmente: "na dúvida, a decisão de reconhecimento deverá inclinar-se a favor do solicitante do refúgio".
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14.1.09
DECISÃO HISTÓRICA E SOBERANA: BRASIL CONCEDE REFÚGIO HUMANITÁRIO A CESARE BATTISTI
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5 comentários:
Camarada Celso!
1. Parabéns por todo empenho. Quem venceu foi a Democracia, os Direitos Humanos, a Liberdade e a Justiça aplicada com lisura e respeito. Nem quero imaginar se esse caso fosse para o STF.
2. A entrada do Dalmo Dallari, jurista que muito respeito, nessa luta foi decisiva. Genro se pautou também em nomes como Bobbio, de quem guardo admiração. Condenar Battisti seria uma aberração jurídica.
3. Estou contente em ver um governo como o brasileiro não condenando Battisti, e o PT, em decisão incrível... condenando Israel pela conduta "nazista" na Faixa de Gaza...
4. Nossa luta não é, e nunca será perdida...
5. Saudações Fraternas, e parabéns pelo texto!
Seu amigo William
Ps. Em última consideração... condenar Battisti seria repetir o caso Gian Giacomo Mora acusado sem provas por Guglielmo Piazza, e que sofreu torturas infamantes num processo viciado, que retroagiu para punir. Isso foi em 1630! Caso retratado pelo escritor Pietro Verri...
Parabéns camarada Celso, seu empenho nesta campanha foi fundamental para que boa parte dos brasileiros tivessem o conhecimento desta causa.
Em mais uma tentativa para convencer a opinião pública a mídia comercial tenta mostrar que aqueles que lutaram contra condições injustas eram na verdade criminosos, o crime? Desejar um mundo mais igual e pacífico.
Abraços
aurasacrafames.blogspot.com
Caro Celso:
Apesar de eu não saber no que isso vai dar pois não entendo muito das atribuições de um ministro da Justiça para dar parecer favorável à causa levantada por você, parabenizo-o pelo empenho.
Nem preciso dizer que para mim é curioso ver no que isso vai dar pois não faço nem idéia de como a Itália reagirá diante do parecer de Tarso Genro que acusa dá a enteder ser a Justiça italiana inépta em seus julgamentos.
De qualquer forma, dê no que dê a questão, a sua atuação nisso foi brilhante.
Reitero meus parabéns.
Ass.: João da Rocha Labrego
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