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30.7.08

CABO ANSELMO: “CACHORRO” FAZ JUS À ANISTIA?

Celso Lungaretti (*)

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça está às voltas com o processo mais rumoroso em seus sete anos de existência: o de José Anselmo dos Santos, conhecido como cabo Anselmo, embora tenha sido apenas marinheiro de primeira classe. Trata-se do mais célebre dos militantes da resistência à ditadura militar que, no jargão dos próprios órgãos de segurança, atuaram como cachorros da repressão, armando ciladas para os companheiros.

O cabo Anselmo foi o principal agitador da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil no período que antecedeu a quartelada de 1964. Depois do golpe, passou vários anos foragido, esteve em Cuba treinando guerrilha e, de regresso ao Brasil, militou na luta armada contra o regime militar, ao mesmo tempo em que colaborava sub-repticiamente com a repressão da ditadura, atraindo seus companheiros para emboscadas.

Eis como Élio Gaspari relatou, em A Ditadura Escancarada, uma de suas missões:
– A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (...) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia. Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (...). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (...) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.

Quando seu verdadeiro papel ficou evidenciado, ele passou a viver sob a proteção dos órgãos de segurança, que lhe proveram remuneração e fachada legal sob identidade falsa. De vez em quando, para aumentar os ganhos, concedia entrevistas que foram publicadas com destaque na grande imprensa e até viraram livros.

O processo do cabo Anselmo, que tramita desde 2004 na Comissão de Anistia, será julgado dentro de aproximadamente dois meses, segundo informação que a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, colheu do presidente do colegiado Paulo Abrão Pires Jr.

Estigma da infâmia – O programa foi criado para oferecer reparações àqueles que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência do estado de exceção vigente no Brasil entre 1964 e 1985.

Conseqüentemente, caso o cabo Anselmo tenha sido um militante revolucionário até meados de 1971, só então mudando de lado, sua vida foi mesmo afetada pelo arbítrio instaurado no País, a despeito do juízo moral que façamos de quem chegou a se vangloriar de haver causado a morte de "cem, duzentos" idealistas que combatiam a ditadura e o tinham como companheiro.

Ou seja, se o poder não tivesse sido usurpado por um grupo de conspiradores em 1964, o cabo Anselmo continuaria presumivelmente servindo a Marinha, ao invés de se tornar um homem que há décadas carrega o estigma da infâmia e precisa viver escondido no próprio país. Daí o seu direito formal à reparação que está pleiteando.

No entanto, a anistia federal foi uma tentativa de re-equilibrar os pratos da balança, depois que a Lei da Anistia de 1979 passou uma borracha no passado, equiparando carrascos e vítimas.

Naquele momento, os vitoriosos impuseram aos vencidos as condições para a pacificação: libertariam presos políticos e deixariam os exilados retornarem ao País, desde que os assassinatos, torturas e atrocidades cometidos ou consentidos pela ditadura ficassem para sempre fora do alcance da Justiça.

O Governo FHC, não podendo ou não ousando remediar essa situação, resolveu, pelo menos, remendá-la, concedendo compensações financeiras aos humilhados e ofendidos.

Vilãos e vítimas – Daí o mal-estar causado pela impudência com que o cabo Anselmo pleiteou benefício de vítima, após ter sido um dos maiores vilãos do período. Do ponto-de-vista moral, é chocante vermos um ser tão decaído lado a lado com cidadãos dignos e sofridos; do ponto-de-vista legal, provavelmente não há como expulsar esse estranho do ninho.

A menos, claro, que se consiga comprovar a tese sustentada por vários de seus ex-colegas da Armada: a de que o cabo Anselmo desde o primeiro momento serviu à comunidade de informações, como agente infiltrado nos movimentos de esquerda.

Alegam, primeiramente, que ele tudo fez para radicalizar os movimentos dos subalternos das Forças Armadas – fator decisivo para que a oficialidade decidisse quebrar seu juramento de fidelidade à Constituição, passando a apoiar os conspiradores.

Logo após o golpe, Anselmo pediu asilo na embaixada mexicana. Mas, embora fosse uma das pessoas mais procuradas do País, resolveu sair andando de lá, sem ser detido.

Algum tempo depois foi preso, exibido como troféu pela ditadura... e logo transferido para uma delegacia de bairro, na qual, diz Gaspari, “Anselmo fazia serviços de telefonista, escrivão e assistente do único detetive do lugar”.

A situação carcerária do ex-marujo, continua Gaspari, não cessou de melhorar: “Com as regalias ampliadas, era-lhe permitido ir à cidade. Numa ocasião surpreendeu o ministro-conselheiro da embaixada do Chile, visitando-o no escritório e pedindo-lhe asilo. Quando o diplomata lhe perguntou o que fazia em liberdade, respondeu que tinha licença dos carcereiros. O chileno, estupefato, recusou-lhe o pedido”.

Finalmente, sem nenhuma dificuldade, Anselmo deixou a cadeia em abril de 1966. Nada houve que caracterizasse uma fuga: apenas constataram que o hóspede saíra e não voltara.

Foi para Cuba e só retornou ao Brasil em setembro de 1970, iniciando no ano seguinte sua trajetória de anjo exterminador.

Se ficar estabelecido que o Anselmo sempre foi um agente duplo, Anselmo não fará jus à anistia federal; mas, claro, os antigos comandantes do Cenimar, Deops e órgãos congêneres dificilmente atestarão que ele já estava na sua folha de pagamentos antes da quartelada de 1964.

Caso tenha realmente sido um perseguido político até 1971, seus direitos não são anulados pelas indignidades posteriores.

O certo é que as chamadas provas circunstanciais não bastam para privá-lo da reparação a que moralmente não faz jus.

Então, é provável que a Comissão de Anistia tenha de engolir esse sapo gigantesco: deferir o pedido de um indivíduo infame a ponto de causar a morte da companheira que engravidara (a paraguaia Soledad Barret Viedma), tendo considerado mais importante garantir o massacre de seis revolucionários do que salvar sua amante e a criança que ela concebia.

* Celso Lungaretti, 57 anos, jornalista e ex-preso político, foi militante da VPR, organização traída pelo cabo Anselmo. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

25.7.08

BRASIL PODE ENTREGAR CESARE BATTISTI À JUSTIÇA ITALIANA

Celso Lungaretti (*)

"Será que serei injustiçado pelo mesmo PT que eu, como milhares de companheiros do mundo, aplaudimos quando da sua chegada ao poder através da eleição do Lula? Não me permito sequer imaginar que o povo brasileiro aceitará essa infame maquinação dos governos de direita franco-italianos."

O desabafo é do escritor italiano Cesare Battisti, 53 anos, cuja extradição para a Itália foi recomendada pelo Procuradoria Geral da República brasileira. Acusado de assassinatos cometidos na década de 1970 pela organização de esquerda Proletários Armados pelo Comunismo, Battisti está condenado à prisão perpétua na Itália.

Seu julgamento, realizado sob uma legislação de emergência criada para casos de terrorismo, admitiu depoimentos de menores de idade e de pessoas com distúrbios mentais, desconsiderou as evidências gritantes da tortura policial a que foram submetidos os acusados e aceitou sem nenhuma restrição as declarações de um ex-militante que buscou os benefícios da "delação premiada", entre outras irregularidades e impropriedades.

Battisti foi condenado à revelia, pois havia fugido da prisão em 1981 e deixado a Itália. Em seu longo exílio (França, México e Brasil), escreveu mais de 15 livros e exerceu diversas profissões: jornalista, técnico de computador, porteiro, etc.

Sua extradição foi solicitada primeiramente pela Itália ao governo francês que, depois de tê-la negado em 1991, reconsiderou sua decisão em 2006. Há fortes suspeitas de que tal guinada esteja relacionada a um acordo comercial entre os países ("Ao final me trocaram por um contrato de trem-bala entre as cidades de Lion e Turin", queixa-se o escritor).

Conseguiu escapar da França, mas o longo braço da Justiça italiana o perseguiu também no Brasil, onde está detido há 15 meses.

Battisti acreditava que nosso país manteria a postura civilizada de não extraditar condenados à pena máxima. A audiência em que ele depôs para um juiz federal, em janeiro último, reforçou seu otimismo:

- Aparentemente, tudo sucedeu da melhor maneira possível, até com o promotor colocando-se de meu lado. Eu, a defesa e todos os mais próximos não tivemos dúvidas sobre uma inevitável influência positiva sobre a Procuradoria Geral da República, que deveria em seguida pronunciar-se a respeito. Qual não foi nossa surpresa quando, um mês depois, o indefectível procurador se pronunciou a favor de minha extradição (...). Ele, o fiel da balança, nem sequer se deu ao trabalho de fundamentar e consubstanciar adequadamente o seu escabroso parecer.

Decepcionado, ele crê que esteja se repetindo o episódio francês ("caí, mais uma vez, mum jogo político sujo e cujas regras e verdadeiros objetivos desconheço") e faz um apelo aos brasileiros:

- Meus advogados reenviaram o processo à Procuradoria Geral da República, para uma segunda avaliação e posterior retorno ao Supremo Tribunal Federal. Porém, daqui em frente vamos precisar de um enorme trabalho jurídico e de sensibilização do mundo político e cultural brasileiro.

MINHA POSIÇÃO: REPÚDIO À CRUELDADE INÚTIL

Apóio a pretensão de Cesare Battisti, de permanecer (em liberdade!) no meu país. Exorto todos os brasileiros de boa vontade a cerrarem fileiras contra mais essa ignomínia que se trama em Brasília.

É a posição humanitária que sempre assumo nesses casos. Não encaro as penas de prisão ou execução sob a ótica da retaliação primitiva e rancorosa, "olho por olho, dente por dente". Vejo-as apenas como necessidade momentânea, para preservarem-se valores maiores da sociedade.

Ora, o momento do combate ao terrorismo italiano passou e o tempo das punições, também. Battisti é outro homem, neste outro tempo em que vivemos. Seria uma crueldade inútil encarcerarem-no agora, pelo resto da vida ou pelos próximos 30 anos (dispositivo da legislação brasileira que tende a prevalecer, como condicionante da extradição), o que dá no mesmo: dificilmente deixaria de morrer na prisão.

A prescrição das penas é uma das práticas mais nobres da nossa civilização.

* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista, escritor e ex-preso político. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

22.7.08

MAIS UMA PIZZA PARA A LATA DE LIXO DA HISTÓRIA

Celso Lungaretti (*)

A Operação Satiagraha está seguindo fielmente o script dos escândalos anteriores: tudo se sabe, pouco se prova, ninguém recebe o castigo que fez por merecer e o desfecho acabará sendo uma pizza.

O que houve foi uma operação revanchista de um setor da Polícia Federal que perdeu a luta interna pelo poder. A mão que mexia os cordéis era a do chefão anterior da PF, que hoje está na Abin e até colocou seus atuais subordinados para ajudarem, por baixo do pano.

Aparentemente, foi também estimulada pelo Luiz Gushiken (cacique do PT igualmente em maré baixa) e por interesses contrariados com a venda da Brasil Telecom para a Oi -- suspeitíssima, por sinal.

O delegado pau-mandado pisou feio na bola ao pedir a prisão de uma jornalista que apenas cumpriu seu dever de informar.

Além disto, fez um relatório opinativo e amadoresco, comprou brigas que não poderia sustentar (contra a revista Veja e contra o Planalto, ao tentar prender o Luiz Eduardo Greenhalgh), enfim, comportou-se como rinoceronte em loja de cristais: espalhou cacos para todo lado.

Servindo-se de um juiz destrambelhado que adora emitir mandados de prisão e brigar com a alçada superior, esse grupelho da PF ousou até tentar contornar um habeas-corpus do STF.

O Gilmar Mendes brecou, duas vezes. Estará mancomunado com a corrupção? Pode ser. Mas, o certo é que contra ele só há insinuações e conjeturas, não provas. E, juridicamente, ele tinha o direito de agir como agiu.

Extrapolou, entretanto, ao deitar falação contra o juizinho birrento. Deveria se manifestar apenas nos autos, como manda o figurino.

O ministro da Justiça, também pisando na bola, defendeu práticas heteredoxas mas, quando o presidente da República ordenou a retirada, engoliu um sapo gigantesco, reconciliando-se publicamente com o presidente do STF.

Lula, por sua vez, parece ter entrado em pânico quando as denúncias chegaram perto dele. Tentou abafar o caso de forma acintosa e grosseira, depois saiu batendo boca com um mero delegado. Foi pior a emenda do que o soneto.

A edição oficial da fita da reunião em que Protógenes amarelou parecia aqueles retoques de fotos históricas da era stalinista, de triste memória.

O delegado visivelmente cedeu às pressões e só recuperou um pouco a coragem depois da lambança do Lula, pedindo-lhe publicamente para reassumir o inquérito do qual o fizera removerem. Mas, entre a dignidade ultrajada e a carreira ameaçada, cuidou de salvar a segunda.

O juiz insubordinado saiu de férias, que ninguém é de ferro.

Enfim, foi um espetáculo dos mais constrangedores: disputa de poder, negociata em curso, autoritarismo redivivo, comportamentos covardes e mesquinhos, manipulação, o diabo.

A última coisa que alguém realmente queria era colocar na cadeia alguns dos gângsteres de um sistema QUE É, ESSENCIALMENTE, CRIMINOSO.

Enquanto o cidadão comum ignorar que Dantas, Pitta e Nahas não são a exceção, mas sim a regra, nesse pantanal em que se mesclam a economia e a política brasileiras, nada mudará.

O que sobrou da prisão do Maluf? O que sobrará da prisão dessas três últimas prisões? E da próxima prisão/show?

Espetáculos de execração pública só servem para fornecer catarse ao povo sofrido e deixar tudo como está. Temos visto um atrás do outro e nada realmente muda. É aquela velha história do boi de piranha: os poderosos permitem que alguns deles sofram desconfortos temporários, em nome da preservação dos seus interesses maiores.

Ao invés desses ridículos mafuás, o que queremos é um Brasil no qual inexista espaço na esfera do poder para os criminosos de colarinho branco delinquirem à vontade.

PALAVRA FINAL - Recebi as críticas mais delirantes de pessoas ditas de esquerda e tive até de sair de um grupo de discussão em que o debate civilizado cedeu lugar às calúnias e ofensas, apenas por ter afirmado, desde o início, que a preservação do instituto do habeas corpus era muito mais importante do que esse episódio patético e todos os seus protagonistas.

No entanto, o desenrolar dos acontecimentos acabou me dando razão. Quem defende princípios, ao invés de interesses e conveniências, quase sempre ri por último.

Eu busco soluções reais. Quando quiser me consolar com teatro, irei ao próprio teatro. Os atores são melhores.

Sou sobrevivente da luta contra o regime militar e aprendi uma lição: não existe ditadura boa. Então, cada vez que um governo brasileiro adotar práticas autoritárias, terá em mim um adversário convicto. Estado policial, nunca mais!

Defendo, irrestritamente, os direitos humanos, sejam dos pobres da periferia, sejam dos Dantas e Pittas. Na Itália se conseguiu colocar toda essa gente na cadeia sem infringirem-se as normas civilizadas. Por que não aqui?

Também não se trata de reverência ante o STF, mas de preservar-se a autoridade do Poder Judiciário. Se uma liminar do STF tiver menos peso do que a vontade de Polícia Federal, haverá uma invasão das atribuições da Justiça pelo Poder Executivo. Precedente perigosíssimo num país que passou 36 anos do século passado sob regimes de força.

É importantíssimo restabelecermos a aliança que houve durante a resistência à última ditadura, entre a esquerda e os defensores dos direitos humanos. Naquele momento, sim, a esquerda tinha uma agenda positiva, personificando a esperança em dias melhores. Agora defende algemas aqui e sequestradores seriais alhures.

Esforço-me para que surja no Brasil uma esquerda ética e humanista, em substituição àquela que se desvirtuou e enlameou. Daí minhas restrições às posturas tacanhas desses novos jacobinos que não têm a mais remota noção de quais eram as promessas originais do marxismo.

* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

16.7.08

AGORA FALANDO SÉRIO

"E você que está me ouvindo
Quer saber o que está havendo
Com as flores do meu quintal?
O amor-perfeito, traindo
A sempre-viva, morrendo
E a rosa, cheirando mal"
(Chico Buarque, "Agora Falando Sério")

Agora falando sério, o Brasil oficial está em processo de entropia: esfarela-se a olhos vistos.

Com intervalos de poucos meses, é sacudido por investigações que reduzem a imagem dos poderosos a frangalhos, ao exporem-nos publicamente, em horário nobre de TV, como responsáveis por uma coleção interminável de delitos, cumplicidades, iniqüidades e impropriedades.

A prisão de alguns deles é transformada em grande espetáculo de degradação pública, com direito a transmissão ao vivo e reprises ad nauseam na programação. As fotos ilustram capas de jornais e revistas. Telespectadores e leitores têm oportunidade para manifestar furibunda indignação e, en passant, desfrutar sofregamente seus minutinhos (ou meros segundos) de fama.

A novela pode durar dias, semanas, até meses. Mas, invariavelmente, depois de tanto barulho, nada de realmente significativo acontece.

Os linchados no tribunal da opinião pública nem de longe recebem, dos tribunais verdadeiros, sentenças correspondentes à gravidade das acusações. Depois dos curtos períodos de prisões preventivas ou provisórias, contam com a sapiência de luminares do Direito e com a lerdeza da Justiça para permanecerem indefinidamente fora das grades.

Boa parte deles escapa ilesa, purgando seus pecados com um ostracismo temporário, à espera da readmissão no circulo do poder.

E não se tomam providência institucionais para evitar-se a repetição das mesmas práticas.

O último episódio foi, de longe, o mais patético de todos. Envolveu prende-e-solta de vilãos de carteirinha, escaramuças entre Poderes, rebelião de togados, acusações à imprensa e disponibilização irrestrita de quilométricas transcrições de escutas telefônicas.

Pior: o instituto do habeas corpus sofreu seu mais duro ataque desde os nefandos tempos da ditadura militar. Policiais e procuradores correram a anular o efeito de uma liminar do Supremo Tribunal Federal, conseguindo novo mandado de prisão em prazo recorde, o que evidenciou a existência de um contra-ataque previamente preparado para furtarem-se ao cumprimento da decisão da mais alta corte do País.

E o ministro da Justiça não teve sequer o bom-senso de aparentar isenção: avalizou e justificou esse subterfúgio inconseqüente.

O que começou como escalada de arbitrariedades, logo evidenciou ser apenas uma comédia de erros, com final de pastelão: ao perceber que a metralhadora giratória não abateria apenas os tucanos que ensaiam vôo eleitoral, atingindo também um pavão do PT e seu próprio governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tratou de prover panos quentes, ao reconciliar ministro da Justiça e presidente do STF, com direito a exibirem seus sorrisos amarelos para as câmaras no Palácio do Planalto.

E, numa alegada mas implausível “coincidência”, o delegado de nome esquisito foi, simultaneamente, afastado do caso, sinalizando que a Operação Satiagraha marcha para o esvaziamento e o esquecimento.

O saldo foi o pior possível: Executivo e Judiciário saem com a imagem bem chamuscada, enquanto o Legislativo carrega o estigma da omissão, pois seus integrantes optaram por enterrar a cabeça na areia, como avestruzes, com medo dos danos que as investigações pudessem causar a eles próprios.

Já o Brasil real continuou funcionando como quer e manda o verdadeiro Poder: o econômico.

Cada vez mais, salta aos olhos que a esfera da política oficial esgota-se em encenações canhestras e só tem poder de decisão sobre o secundário. Gerencia a ramificação local do capitalismo globalizado, fornece ilusões & catarse ao povo... e nada mais.

Last but not least, parte da esquerda brasileira embarcou levianamente nessa canoa furada, conformando-se com o papel de peão no tabuleiro do sistema.

Tendo esquecido ou desaprendido o marxismo que ainda diz professar, envolveu-se numa empreitada que, quanto muito, atenuaria mazelas do capitalismo, sem alterar suas características fundamentais de promover a desigualdade entre os homens, desperdiçar o potencial ora existente para assegurar-se uma existência digna a cada brasileiro e dilapidar criminosamente os recursos naturais essenciais à própria sobrevivência da espécie humana.

Ao tomar partido nessa guerra de lama, enlameia-se aos olhos do cidadão comum, deixando de personificar a esperança num Brasil bem diferente. Além disto, ajuda a disseminar a sensação de que a política é caso perdido, conveniente para os que querem manter o status quo, mas terrível para quem se propõe a mudar a realidade.

Se quiser conquistar corações e mentes, terá de resgatar as bandeiras perdidas, voltando a identificar-se com o “reino da liberdade, para além da necessidade” prometido por Marx.

Hoje está muito mais para Robespierre, prometendo vingança e cabeças cortadas.

11.7.08

O QUE ESTÁ EM JOGO É A NOSSA DEMOCRACIA

Celso Lungaretti (*)

Os benefícios que o Brasil poderá colher com a punição de algumas dezenas de criminosos de colarinho branco são irrisórios, face aos malefícios que a imposição da vontade da polícia sobre a Justiça acarretará.

A autoridade do Supremo Tribunal Federal foi atingida em cheio pela iniciativa do Executivo de passar por cima de uma decisão do presidente do STF, indo buscar novo mandado judicial para reconduzir à prisão o famigerado Daniel Dantas.

Por esse caminho, só se chega a um lugar: o estado policial.

Ou o ministro Gilmar Mendes é idôneo e sua decisão de conceder hábeas-corpus a Dantas e seus cúmplices deve ser respeitada, na forma e no espírito; ou ele é inidôneo e deve ser apeado do cargo pelas vias legais.

No entanto, enquanto ele for presidente do STF, não cabe à PF, ao Ministério Público e ao Governo Federal descumprir suas decisões mediante óbvios subterfúgios. Isto configura, claramente, um desrespeito ao Poder Judiciário por parte do Poder Executivo.

Mesmo contando com vários cidadãos que tiveram papel destacado na resistência à ditadura de 1964/85, o Governo Lula tem atropelado os princípios democráticos, movido por compadrio (violação do direito que os pugilistas cubanos tinham ao asilo) e politicalha (a utilização ilegal do Exército no Morro da Providência para alavancar a campanha eleitoral de Marcelo Crivella e a demagógica Operação Satiagraha, não por acaso desencadeada três meses antes dos pleitos municipais).

Daniel Dantas e sua gangue já deveriam estar presos há muito tempo... sem esse ridículo estardalhaço global e sem esse inconcebível braço-de-ferro com a Justiça.

Neste exato momento, entretanto, mais vale preservar o equilíbrio de Poderes do que passar à opinião pública a noção de que o combate à corrupção justifica o atropelamento do Judiciário pelo Executivo.

O que está em jogo é muito mais grave do que o destino de Dantas, Pitta e Nahas: é a preservação da democracia brasileira.

* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

9.7.08

UMAS E OUTRAS

"O acaso faz com que essas duas
Que a sorte sempre separou
Se cruzem pela mesma rua
Olhando-se com a mesma dor"
(Chico Buarque, "Umas e Outras")

Cristina dos Santos Cavalcante residia num bairro pobre da zona Leste paulistana, a uns 15 quilômetros do Centro. Tinha 29 anos e esperava sua segunda criança.

Fez o pré-natal na Unidade Básica de Saúde do Jardim Independência, da rede municipal. O nascimento do filho estava previsto para o dia 15 de junho.

A data chegou, passou... e nada. Então, recorreu ao Hospital Estadual de Vila Alpina. Mas, em cada consulta, diziam-lhe que estava tudo normal e deveria voltar dentro de dois dias.

Apesar de suas precárias condições financeiras, ela pagou por um ultra-som numa clínica particular. O exame revelou que o cordão umbilical tinha dado duas voltas no pescoço da criança.

Levou o laudo na consulta seguinte, às 9 horas do dia 27 de junho, sendo internada imediatamente.

Em vez de efetuarem logo uma cesárea, deram-lhe medicamentos para induzir o parto normal, que acabou ocorrendo somente às 23h20.

Cristina teve então hemorragia e não havia médico capacitado para dar-lhe o atendimento correto. Os jovens residentes tiveram de chamar “um especialista”.

Quando este finalmente chegou, não havia vaga para Cristina na UTI.

Quarenta minutos depois (!), levaram-na a uma sala de observação (!!), na qual não havia equipamento nenhum. E foi lá que ela morreu, seis horas depois do parto.

Parte desse tempo foi desperdiçada com a repetição de exames de sangue que a paciente já fizera no mesmo hospital – como se, no momento da emergência, não houvesse a certeza de que o tipo sanguíneo dela fosse aquele que constava da sua ficha.

Segundo o viúvo Márcio Ferreira da Costa, a primogênita já nascera por meio de cesariana, "o que mostra que já não era muito aconselhável fazer o parto normal desta vez”. E acrescentou:

- Ela não tinha nada de dilatação. Minha mulher tinha a cintura muito fina e o neném nasceu com quase 4 quilos. Chegando na parte do ombro, o bebê travou e ficou cerca de 5 minutos sem respirar. Ao nascer, nem chorou, foi direto para os aparelhos.

O hospital registrou a morte como “natural” no 56° Distrito Policial - Vila Alpina.

O resgate (oportuno e justificado) de Ingrid Betancourt mobilizou três governos e foi assunto da semana na grande imprensa paulista.

A morte (desnecessária e inaceitável) de Cristina dos Santos Cavalcante não comoveu governo nenhum nem interessou à grande imprensa paulista.

Eu só soube dela graças a um valoroso jornal de bairro (a Folha de Vila Prudente) e a um repórter (Rafael Gonçalo) ainda dotado do senso de justiça que deveria ser inerente à nossa profissão.

E só posso fazer o que estou fazendo: compartilhar minha indignação com os leitores, na esperança de que pelo menos alguns percam uns minutinhos enviando e-mails às autoridades, à imprensa e aos amigos.

Depende de nós fazermos com que Cristina dos Santos Cavalcante não tenha morrido em vão, como tantas outras Cristinas de nosso povo sofrido e injustiçado.

Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

2.7.08

CRÔNICA DA ESTAGFLAÇÃO ANUNCIADA

Celso Lungaretti (*)

Um fantasma ronda o mundo: o fantasma da estagflação.

Dissecando o assunto de todos os ângulos possíveis, economistas, autoridades governamentais, personalidades e jornalistas alimentam, no Brasil, a sinistrose que os meios de comunicações irradiam para toda a sociedade. Ressurgem as remarcações preventivas de preços, de triste memória.

Existe já um consenso de que este segundo semestre será muito ruim para nós. Ou o Governo Federal adotará medidas duras, obrigando-nos a cortar despesas e privarmo-nos daquilo a que nos acostumáramos; ou a inflação vai disparar, prejudicando a quase todos, mas, com maior intensidade, àqueles que têm menos defesas contra ela (os pobres).

A que se deve este apagão na economia mundial, após tantos anos de crescimento significativo?

Os expertos sentenciam que os Bancos Centrais das nações desenvolvidas foram coniventes com operações mirabolantes, ultrapassando de tal maneira os ativos reais nos quais deveriam estar respaldadas que o desabamento do castelo de cartas era pura questão de tempo.

Mas, será que tudo se reduz mesmo a um mero desleixo das autoridades que deveriam evitar a transformação do mercado financeiro em cassino?

Ora, a alternância de fases de expansão e retração econômicas marca o capitalismo desde o seu início. Por que desta vez seria diferente? De onde os doutos economistas tiraram a idéia de que o crescimento agora seria ininterrupto? Isto me parece mais expressão de desejo do que análise isenta.

Segundo Marx, o pecado original do capitalismo é a mais-valia: como os assalariados não recebem de volta o valor total dos bens que produzem, estão impedidos de adquiri-los todos, daí o descompasso entre o estoque de produtos oferecidos e o poder aquisitivo dos consumidores.

Até a metade do século passado, isto se reequilibrava de formas dramáticas: desde as queimas de café para evitar a queda do preço internacional do produto (distribui-lo aos carentes estava fora de cogitação!) até as guerras, que geravam um mercado cativo para a produção excedente, na forma de armamentos.

Com o advento das armas nucleares, entretanto, os conflitos entre potências passaram a ter o pequeno inconveniente de poderem extinguir a espécie humana. Então, desde 1962, ano da crise dos mísseis cubanos, tais situações passaram a ser administradas com mais cautela. Os gigantes nunca mais se enfrentaram, passando a não intervir quando algum deles surrava um nanico da sua esfera de influência.

A desigualdade, entretanto, continuou caracterizando o capitalismo, com a agravante de que os formidáveis avanços científicos e tecnológicos das duas últimas décadas criaram plenas condições para proporcionar-se a cada habitante do planeta o suficiente para uma existência digna.

Em vez disso, o que houve foi um incremento ad absurdum das atividades parasitárias, totalmente inúteis para o ser humano, cuja expressão mais conspícua, claro, são os bancos, amos e senhores do capitalismo atual.

E, para que os bens e serviços continuassem sendo consumidos independentemente do poder aquisitivo insuficiente dos consumidores, expandiu-se a oferta de crédito também ad absurdum. Então, desde as nações até as famílias passaram a operar com as contabilidades mais insensatas, em que as contas nunca fecham e os débitos, impagáveis, são sempre empurrados para o futuro.

É sobre esse pano-de-fundo de artificialidade básica que se projeta a atuação dos grandes especuladores do mercado financeiro, cujo campo de ação foi enormemente ampliado pelo advento da internet.

Atribuir-lhes (ou às autoridades que não os policiaram suficientemente) a responsabilidade pela estagflação anunciada é tão falacioso agora quanto, p. ex., na quebra da Bolsa em 1929. O nome do vilão sempre foi outro: capitalismo.

A indústria cultural, hoje totalmente a serviço dos poderosos, incute em seus públicos a noção de que a realidade presente é a única possível e as opções existentes são apenas as oferecidas dentro do sistema. Então, termos de conformarmo-nos com a etapa de vacas magras que se avizinha, como preço a pagarmos pela fase anterior, em que as vacas nem sequer foram realmente gordas, com o espetáculo do crescimento deixando muito a desejar...

Mas, salta aos olhos estarmos, isto sim, pagando pelas mazelas do capitalismo, que se torna mais nocivo à medida que aumenta o potencial (criminosamente desperdiçado!) para construirmos uma sociedade igualitária e livre, em que ninguém mais seja limitado pela necessidade.

Talvez o estímulo à diferenciação e à busca do privilégio tenha sido essencial no passado, como motivação para o homem dominar a natureza e alcançar a atual capacidade de geração de riquezas.

Hoje, entretanto, já temos tudo de que precisávamos. O que nos aflige não é mais a insuficiência de recursos, mas sim seu mau aproveitamento, com a desigualdade obscena condenando nações inteiras e parcelas da população de outros países a existências subumanas; e a prevalência de interesses particulares sobre o bem comum levando à dilapidação insensata dos recursos finitos do planeta.

Não há nenhum mandamento divino ou lei natural que nos obrigue a seguirmos o rumo atual até o mais amargo fim. Tudo depende de vontade e consciência, corações e mentes. “Onde vivem os homens, a ajuda só pode vir dos homens”, disse o grande Brecht.

* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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