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27.12.07

A ITÁLIA QUER PUNIR A OPERAÇÃO CONDOR. O BRASIL, NÃO.

Celso Lungaretti (*)

“Às 18 horas do dia cinco de dezembro de 1973, meu pai
Joaquim Pires Cerveira (...) se dirigiu a um encontro com seu
companheiro de Organização (...) João Batista de Rita Pereda.

“Atropelado e seqüestrado com Pereda no centro de Buenos
Aires pela Operação Condor, foram entregues à ditadura brasileira.

“Foi assassinado em 13 de janeiro de 1974 no DOI-Codi da
Barão de Mesquita (RJ), tornando-se um desaparecido político.

“Dali para frente, a vida se resumiu na busca da verdade e dos
seus restos mortais.”

(Neusah Cerveira, jornalista, economista e geógrafa)


A Justiça italiana acaba de pedir ao governo do Brasil que colabore no interrogatório, prisão e extradição de brasileiros envolvidos na Operação Condor, um esquema de colaboração informal que sete ditaduras sul-americanas mantiveram durante o período 1973/1980 para perseguir, aprisionar e atentar contra opositores que, exilados, estavam teoricamente fora do alcance de suas garras.

Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai foram as nações que facilitaram a atuação extraterritorial de agentes da repressão, na maioria das vezes capturando “subversivos” para serem secretamente recambiados a seus países de origem, supliciados em centros clandestinos de tortura e depois executados.

A ocultação dos cadáveres, para que não restassem indícios dos crimes cometidos, era o desfecho habitual dessas operações. Um documento secreto da Força Aérea Brasileira, datado de 1977, revela que se chegou a lançarem corpos no Rio La Prata, mas essa prática teve de ser abandonada porque estava “criando problemas para o Uruguai, como a aparição de cadáveres mutilados nas praias”, passando-se então a utilizar “fornos crematórios dos hospitais do Estado (...) para a incineração de subversivos capturados”.

Foi, enfim, uma alternativa hedionda a que as ditaduras recorreram para evitar os trâmites demorados dos processos de extradição e as garantias que o Direito internacional prescreve para os extraditados.

Um caso célebre no Brasil foi o seqüestro, em 1978, dos uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Díaz, vindos a Porto Alegre, com seus dois filhos, para denunciar os crimes da ditadura do seu país. Os quatro foram capturados e entregues às autoridades do Uruguai. Se a revista Veja não noticiasse, dificilmente teriam sobrevivido.

Só no ano 2000 Universindo Díaz sentiu-se suficientemente seguro para relatar o ocorrido. Segundo ele, os espancamentos começaram já no apartamento em que ele foi capturado e prosseguiram na sede do DOPS: "Nos bateram brutalmente. Nos colocaram no que chamam no Brasil de 'pau-de-arara' – dependurados do teto, pelados, nos deram choques elétricos, água fria, golpes, e assim nos foram interrogando durante horas e horas. Havia uma espécie de divisão internacional de trabalho – os brasileiros golpeavam e os uruguaios nos interrogaram".

O episódio de maior repercussão internacional foi a explosão de uma bomba no carro do ex-embaixador chileno Orlando Letelier, em pleno bairro diplomático de Washington, no ano de 1978. O atentado cometido por agentes da repressão política do Chile, a Dina, resultou na morte de Letelier e de sua secretária, causando tanta indignação nos EUA que o país deixou de apoiar a ditadura andina.

ATRASO, TIMIDEZ, IMPUNIDADE – A punição dos responsáveis por esse período negro da história sul-americana está acontecendo com atraso e timidez, face à enormidade dos crimes cometidos. Muitos carrascos morreram antes de responderem por suas atrocidades. Mas, pelo menos, sinaliza para os pósteros que nem sempre as regressões à barbárie ficam impunes.

O Uruguai condenou à prisão o ex-ditador Gregório Alvarez, em cujo governo “desapareceram” 20 cidadãos uruguaios aprisionados na Argentina e repatriados ilegalmente, não aceitando sua alegação de que desconhecia a existência da Operação Condor.

A morte livrou o antigo ditador chileno Augusto Pinochet de cumprir a merecida pena de prisão pela autoria de nove seqüestros e um homicídio, mas seu ex-chefe de Inteligência Manuel Contreras não escapou: foi condenado a 15 anos de detenção por ter planejado o assassinato de Letelier e está preso.

A Argentina também está prestes a julgar o ex-ditador Rafael Videla e 16 cúmplices, por crimes contra a humanidade.

E, agora, a juíza italiana Luisanna Figliolia expediu um mandado de prisão contra 140pessoas suspeitas de participação na Operação Condor, dentre elas 11 brasileiros, 61 argentinos, 32 uruguaios e 22 chilenos. O caso tramita desde 1999, a partir de denúncias apresentadas por parentes de 25 italianos que desapareceram sob regimes militares na América Latina.

O ministro da Justiça Tarso Genro logo descartou a extradição, por considera-la “inconstitucional”, dos acusados brasileiros. Ficou implícito que, na opinião do ministro, dificilmente eles serão punidos, embora Tarso vá tomar as providências burocráticas rotineiras, ao receber o pedido das autoridades italianas.

O Exército, por sua vez, informou ao UOL que não vai se pronunciar oficialmente sobre o caso, que está sob tutela do ministério da Justiça por envolver "a soberania brasileira". Essa preocupação com a soberania aparentemente não existia quando se franqueava o território nacional para a caçada a casais inofensivos e suas crianças.

Então, para nosso opróbrio, só nos resta concordar com o procurador da República italiano Giancarlo Capaldo: "Esse processo nasceu na Itália porque os países unidos em torno da Operação Condor decidiram não abrir investigações sobre o assunto. A Itália está fazendo o possível para evitar a impunidade e para que operações como essa não voltem a acontecer”.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

====== POST SCRIPTUM: VÍTIMAS E ALGOZES ======

A nova edição do "Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964", organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, lista pelo menos seis brasileiros que desapareceram na Argentina como possíveis alvos da Operação Condor: Francisco Tenório Cerqueira Júnior (1976), Roberto Rascardo Rodrigues (1977), Luiz Renato do Lago Faria (1980), Maria Regina Marcondes Pinto de Espinosa (1976), Sidney Fix Marques dos Santos (1976) e Walter Kenneth Nelson Fleury (1976).

Os argentinos sumidos no Brasil são Norberto Armando Habegger (1978), Lorenzo Ismael Viñas (1980), Horacio Domingo Campiglia (1980), Mónica Susana Pinus de Binstock (1980), Jose Oscar Adur (1980), Liliana Inês Goldemberg (1980) e Eduardo Gonzalo Escabosa (1980). Os casos de Viñas e Campiglia passaram a ser investigados pela Justiça italiana no final dos anos 90 porque eles tinham dupla cidadania.

O primeiro desapareceu ao cruzar a fronteira da Argentina com o Brasil, de ônibus, perto de Uruguaiana (RS), e o segundo foi seqüestrado no aeroporto do Galeão, no Rio, junto com a guerrilheira Mónica Binstock. O processo na Itália resultou, no dia 24, em ordens de captura internacional emitidas pela Justiça italiana contra pelo menos 11 militares e policiais brasileiros. Os outros casos de argentinos desaparecidos no contexto da Operação Condor são investigados pela Justiça argentina. No Brasil, não há registro de processo criminal sobre o assunto.

"Pré-Condor", outras atividades conjuntas de países sob ditadura já haviam eliminado brasileiros no exterior. Documentos liberados recentemente citam, por exemplo, uma "Operação Mercúrio", que estaria por trás do desaparecimento, em janeiro de 1974, dos guerrilheiros brasileiros João Batista Rita Pereda e Joaquim Pires Cerveira. Nessa fase pré-Condor, outros seis brasileiros desapareceram no Chile entre 1973 e 1974: Antenor Machado dos Santos (1973), Jane Vanini (1974), Luis Carlos de Almeida (1973), Nelson Souza Kohl (1973), Túlio Roberto Cardoso Quintiliano (1973) e Wânio José de Matos (1973). Outro brasileiro, Luiz Renato Pires de Almeida, desapareceu na Bolívia em outubro de 1970.

Quanto aos 11 brasileiros cujo mandado de prisão foi expedido pela Justiça italiana, a relação é a seguinte:
1) Carlos Alberto Ponzi - ex-chefe do SNI em Porto Alegre
2) Agnello de Araújo Britto - ex-superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro
3) Antônio Bandeira - ex-comandante do 3º Exército
4) Henrique Domingues - ex-comandante do Estado Maior do 3º Exército
5) Luís Macksen de Castro Rodrigues - ex-superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul
6) João Leivas Job - ex-secretário de Segurança no Rio Grande do Sul
7) Átila Rohrsetzer - ex-diretor da Divisão Central de Informações
8) Marco Aurélio da Silva Reis - ex-diretor do Dops no Rio Grande do Sul
9) Octávio de Medeiros - ex-ministro do Serviço Nacional de Informações
10) Euclydes de Oliveira Figueiredo Filho - ex-diretor e comandante da Escola Superior de Guerra e irmão do ex-presidente Figueiredo
11) Edmundo Murgel - ex-secretário de Segurança no Rio de Janeiro

21.12.07

O RESCALDO DA GREVE DE FOME

Celso Lungaretti (*)

O bispo Luiz Flávio Cappio encerrou melancolicamente sua greve de fome contra o projeto de interligação das águas do rio São Francisco, no 23º dia, após sofrer um desmaio e ser hospitalizado.

Não obteve concessão nenhuma do Governo Federal, cuja intransigência acabou recompensada com uma vitória de Pirro. Impôs sua vontade, sim, mas de forma tão brutal como Margareth Thatcher, ao deixar Bobby Sands e outros nove militantes irlandeses morrerem em 1981.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, evidentemente, não quer ser lembrando como uma versão masculina da Thatcher, embora também siga a ortodoxia econômica neoliberal. Prefere comparar-se, p. ex., a Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas.

A primeira pretensão é risível, pois nada tem do estadista visionário (no bom sentido), civilizado e cordial que foi JK.

Também passa longe do Vargas dos anos 50, que confrontou o imperialismo e teve a grandeza de sacrificar a vida para impedir um golpe de estado direitista.

Quanto ao ditador de 1930/45, que tinha o carrasco Filinto Müller como sustentáculo e entregou Olga Benário para morrer num campo de concentração nazista, Lula ainda não possui currículo desumano equivalente, embora haja manchado em 2007 sua biografia com a deportação dos pugilistas cubanos e a postura inflexível face ao protesto do bispo de Barra (BA).

Dom Cappio não saiu da greve de fome tão vexatoriamente como Anthony Garotinho em 2006 e o próprio Lula em 1980. O primeiro, aos 46 anos, agüentou o jejum por 11 dias. Lula, no vigor de seus 34 anos, suportou míseros seis dias. Comparado a esses dois, o frei foi um herói, resistindo durante 23 dias aos 61 anos de idade.

Ninguém esperava que ele igualasse os 65 dias de Bobby Sands ou os 74 dias do também irlandês Terence MacSwiney (1920). Mas, se Dom Cappio perseverasse após ser liberado do hospital, o governo logo lhe ofereceria algum acordo – até porque a possível morte do bispo em pleno Natal seria politicamente catastrófica para o Planalto.

Combalido, Dom Cappio não percebeu que Lula e o ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima blefavam, ao rejeitarem tão enfaticamente a negociação. Por questão de dias, deixou escapar o que seria (ou passaria por) uma vitória.

No fundo, Lula, Garotinho e Dom Cappio fizeram opções equivocadas, ao iniciarem greves de fome que não estavam dispostos a levar até o fim. Trata-se do trunfo derradeiro das batalhas políticas e de defesa dos direitos humanos, a ser utilizado apenas em circunstâncias extremas, quando o cidadão avalia que, sem atingir seu objetivo, não compensa continuar vivo.

Greves de fome que terminam sem vitória e sem morte fazem com que a opinião pública deixe de levá-las a sério. Então, como o governo saiu-se aparentemente bem pagando para ver, agirá da mesmíssima forma na ocasião seguinte. Alguém terá de morrer para reabilitar essa forma de luta.

Mas, em sua aparente derrota, Dom Cappio conseguiu uma vitória importante, ao recolocar o projeto oficial em discussão pública. Salta aos olhos que a interligação não é a opção ideal para saciar a sede dos nordestinos, nem a de melhor relação custo/benefício e muito menos a recomendável em termos ecológicos, devendo os motivos de sua adoção ser buscado alhures.

Ou seja, ficaram fortíssimas as suspeitas de que novamente os interesses privados estão sendo priorizados na destinação de recursos públicos. É a chamada crônica da CPI anunciada.

Dom Cappio ainda poderá rir por último.


* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

19.12.07

CARTA ABERTA AO PRESIDENTE LULA

Exmo. Sr. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

há momentos decisivos na vida dos homens e das nações. Passamos por um deles agora.

Está em suas mãos garantir que os brasileiros tenhamos um Natal e um país do qual nos orgulharmos. Mas, se lhe faltar grandeza para tomar a decisão certa, seremos todos amaldiçoados. Pois nada de bom brotará no solo que recebeu o sangue de um mártir.

Governos e obras faraônicas passam, viram pó. Mas, exemplos de idealismo e desprendimento como o de Dom Luiz Flávio Cappio serão lembrados até o fim dos tempos.

Não se iluda. Quando a humanidade sair de sua pré-história e a desumanidade das últimas décadas representar um motivo de vergonha para todos os homens civilizados, Margareth Thatcher figurará nos livros de História como a primeira-ministra que deixou morrer Bobby Sands. Cabe-lhe decidir se quer ser lembrado como o presidente que deixou morrer Dom Cappio.

A relutância extrema do seu governo em discutir a interligação das águas do rio São Francisco é evidência gritante de que tal projeto não sobreviveria a um debate franco. E reforça as suspeitas de que haja interesses escusos envolvidos.

Cidadãos de reconhecida competência e credibilidade apontam falhas de todo tipo: concepção equivocada, relação custo/benefício muitíssimo pior que a de projetos alternativos, danos ecológicos que podem se tornar catastróficos. Por que tanta insistência, a ponto de tocar a obra com soldados, evocando os tempos sinistros da ditadura militar?

Erguer uma obra tão contestada sobre o cadáver de um homem justo será um crime inominável.

Mas, V. Exa ainda pode escapar dessa armadilha para a qual os maus auxiliares o conduzem. Basta ouvir a voz da militância, daqueles seres humanos sofridos e esperançosos que iniciaram a jornada consigo. E voltar a ser para eles, como Salvador Allende o era para os melhores chilenos, o “companheiro presidente”.

Estamos aguardando sua decisão, Sr. Presidente, para sabermos se vamos comemorar o Natal ou colocar luto por quem, guardadas as proporções, estará repetindo o sacrifício de Cristo.

Este é meu apelo desesperado: aja como um verdadeiro cristão. Dom Cappio não pode morrer!

Respeitosamente,

CELSO LUNGARETTI
19/12/2007

11.12.07

SENHOR DEUS DOS DESGRAÇADOS

“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!”
(“Navio Negreiro”, Castro Alves)

Celso Lungaretti (*)


A greve de fome de dom Luiz Flávio Cappio não admite meio-termo. Ou nos posicionamos com a dignidade de verdadeiros cidadãos ou nos igualamos aos seres abjetos que outrora compactuaram com a escravidão e hoje ignoram as súplicas de uma menina barbarizada à sombra do poder.

Passamos a vida recriminando a sordidez da política oficial e as negociatas que colocam recursos públicos a serviço de interesses privados. Como procedemos, no entanto, quando um bispo sexagenário ousa confrontar os abutres que saqueiam uma das regiões mais miseráveis do País e arrisca a vida em defesa do seu rebanho? O que estamos fazendo para apoiar esse altaneiro desafio às práticas viciadas e viciosas de nossa democracia? Pouco, quase nada.

De quantos outros escândalos e mares de lama precisamos para aprendermos a desconfiar de empreendimentos que governos tentam enfiar pela goela da comunidade adentro? Desta vez, até o Exército foi requisitado, para reforçar ainda mais a semelhança com os projetos faraônicos e as práticas totalitárias da ditadura militar...

Há fundadas suspeitas de que essa interligação das águas do rio São Francisco seja uma péssima aplicação dos recursos públicos, perdendo de longe para opções de menor custo e maior benefício, além de poder causar enorme dano ecológico.

A arrogância com que o Governo Federal trata as vozes dissonantes é uma confissão involuntária de que seu projeto não sobreviveria a um debate franco – aquele com que acenaram a dom Cappio para que encerrasse sua greve de fome de 2005, esquivando-se, depois, de cumprirem a promessa.

É uma falácia a pretensão do ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, de que a vitória nas urnas equivalha a um cheque em branco para o Governo agir como bem entender durante quatro anos, sem prestar contas à comunidade.

E chega a ser risível sua afirmação de que “o diálogo não pode impedir que políticas públicas sejam implementadas”. Ou seja, dom Cappio poderia passar o tempo que quisesse dialogando com Geddel, enquanto os soldados estivessem tocando o projeto em ritmo de marcha acelerada, para torná-lo irreversível em proveito daquelas elites que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tanto vitupera na retórica e tão bem atende na prática.

É claro que o gesto extremo de dom Cappio seria desnecessário se o TCU e o Congresso Nacional cumprissem realmente sua missão de defender os interesses dos cidadãos. Mas, sabemos todos, há muito a cidadania está órfã.

Então, à luz dos ensinamentos cristãos, o bispo de Barra (BA) tem todos os motivos para tentar evitar que as verbas destinadas à região sejam novamente mal empregadas. Pois, em última análise, a vida dos humildes está colocada na balança e, na ótica oficiosa das autoridades oficiais, pesa muito menos do que os lucros dos poderosos.

Finalmente, aos áulicos e fariseus que invocam a Bíblia para proteger os vendilhões do templo, lembro que jamais Gandhi, dom Cappio e nem mesmo Bobby Sands buscaram o suicídio. Sua aposta foi sempre em despertar o senso de justiça que, diz Platão, é inerente ao ser humano.

Se o nosso senso de justiça continuar embotado e deixarmos dom Cappio morrer, nem mesmo o Deus dos desgraçados nos perdoará.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

5.12.07

LULA VAI MIRAR-SE EM CRISTO OU PILATOS?

Celso Lungaretti (*)

Qualquer semelhança entre as frases abaixo NÃO é mera coincidência:

“Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso.” (Mateus 27:24)

“Eu tenho de escolher entre ele, que está fazendo uma greve de fome premeditada, e 12 milhões de nordestinos (...) que precisam da água para sobreviver. E não tenha dúvida que eu ficarei com os pobres." (presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lavando as mãos diante do novo protesto de dom Luiz Flávio Cappio contra o projeto da transposição das águas do rio São Francisco, iniciado no último dia 27)

Resta sempre a esperança de que Lula ponha a mão na consciência e faça a opção correta: não a de repetir Pilatos, que, mesmo não vendo culpa nenhuma em Cristo, foi responsável por seu açoitamento e crucificação; mas sim a de repetir Cristo, que expulsou os vendilhões do templo para evitar que continuasse servindo de covil a ladrões.

O bravo bispo de Barra (BA), que já ficara 11 dias sem alimentar-se em 2005, sustenta que “essa água não é para 12 milhões de pessoas, é para pequenos grupos do capital”, acusando o Governo Federal de difundir “propaganda falsa” e Lula, de desrespeitar o acordo que pôs fim à greve de fome anterior:

– Nós só suspendemos o jejum lá em Cabrobó porque houve um compromisso para que fossem paralisadas as obras e houvesse negociações. Nós confiamos na palavra do governo. O diálogo teve início, mas logo se acabou. Nós acreditávamos que fosse devido ao ano eleitoral. Quando Lula foi reeleito, nós o procuramos, pedindo a reabertura do diálogo. A resposta do presidente foi o início das obras de transposição, usando o Exército. O governo manteve-se surdo. As coisas ficaram piores. Este é o motivo pelo qual retomei o jejum.

Segundo os opositores, a transposição vai ter impacto extremamente negativo sobre o rio São Francisco (que já está fragilizado e necessitando de urgente revitalização) ao levar suas águas para os grandes açudes do Nordeste, com a principal finalidade de favorecer empreendimentos privados.

Alegam que, pela metade do custo, poderia ser implementados projetos como o da Agência Nacional de Águas, para beneficiar os 32 milhões de habitantes de mais de mil municípios; e as obras da Articulação do Semi-árido Brasileiro, voltadas para outros 10 milhões.

Então, tanto em termos ambientais quanto econômicos, seria uma péssima destinação dos recursos públicos. "O governo se tornou a voz de um pequeno grupo da elite e, infelizmente, o presidente Lula se tornou refém do capital internacional", afirma dom Cappio, que desta vez se diz disposto a levar seu protesto até a morte, se não for retirado o Exército e arquivado o projeto. “O rio e o povo merecem.”

Ele também rebateu as críticas dos que o acusam de suicida, como o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, para quem “essa postura fundamentalista do bispo vai contra ensinamentos da igreja, como saber que é pecado atentar contra a vida”:

– Eu recomendaria que conhecessem um pouquinho mais a pessoa de Jesus Cristo e a sua doutrina. Que lessem o Evangelho de João 10:10, onde Jesus diz que ele é o bom pastor, que veio pra doar a vida às suas ovelhas. A história da Igreja é uma história de mártires, de homens e mulheres que deram a vida por amor à sua fé, por amor a seus irmãos.

Finalmente, vale lembrar que personagens históricos da grandeza do Mahatma Gandhi também consideraram válida uma “greve de fome premeditada”, como recurso extremo para tentarem fazer com que a justiça prevalecesse, quando todos os outros caminhos estavam bloqueados.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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