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27.5.09

VOLTANDO AOS MAUS TEMPOS

CHARGE DE CLEUBER (clique para ampliar)
http://www.tracodeguerrilha.blogspot.com/

O mês é outubro e o ano, 1962. Em todos os países há pessoas com o ouvido colado nos rádios e lançando olhares angustiados para o céu, à beira do pânico.

Nunca estiveram tão presentes nas mentes e tão opressivas nos corações as imagens dantescas dos genocídios de Hiroshima e Nagasaki. Era concreta a possibilidade de repetição daqueles horrores em escala muito mais ampla.

É que os EUA, ao obterem provas fotográficas da existência de silos de mísseis soviéticos em Cuba, deram um ultimato à URSS, exigindo sua imediata remoção.

A União Soviética, inicialmente, não cedeu. Pelo contrário, ao saber que os norte-americanos haviam iniciado um bloqueio naval e aéreo de cuba, despachou uma frota que o tentaria romper.

Um único disparo e começaria a reação em cadeia! Estava-se a um passo da guerra nuclear entre duas nações que acumulavam poder destrutivo suficiente para exterminar a espécie humana.

Foram 13 dias que apavoraram o mundo, enquanto se desenvolviam tensas negociações entre os governos de John Kennedy e Nikita Kruschev. Nunca os estadunidenses compraram tanto cimento e tijolo como nesse período em que construíram sofregamente abrigos nucleares em suas casas.

A histeria coletiva inspirou um episódio magistral da série de TV Além da Imaginação, sobre vizinhos que, ao confraternizarem numa festa, recebem a notícia de que a guerra atômica pode estar começando.

O único que havia transformado seu porão em abrigo, nele entrincheira-se com a família, negando acesso aos demais, por não haver mantimentos, água e espaço físico para tanta gente.

Quando os outros estão pondo abaixo a porta, empunhando tacos de beisebol e outras armas improvisadas, chega o desmentido: rebate falso. Mas, suas reações primitivas e egoístas durante a emergência revelara a todos como eles realmente eram, sob o verniz da hipocrisia social.

KRUSCHEV OBTÉM CONCESSÕES.
KENNEDY, HOLOFOTES


A crise dos mísseis cubanos terminou com cada lado cedendo um pouco e o mundo suspirando aliviado.

Os EUA concordaram em, posteriormente e sem alarde, retirarem mísseis similares que haviam instalado na Turquia. Comprometeram-se, ainda, a nunca mais realizarem ou estimularem invasões de Cuba, como a que a CIA e exilados cubanos haviam tentado em abril daquele ano na Baía dos Porcos. Eram estes os acontecimentos que haviam motivado os soviéticos a exibirem também o muque.

Krushev, por sua vez, ordenou o desmantelamento dos silos e a retirada dos mísseis, saindo do episódio com uma vitória real (obtivera as contrapartidas desejadas) e uma derrota propagandística, pois concordou em manter secretas as cláusulas que lhe eram favoráveis.

De quebra, as superpotências decidiram colaborar para que novos sobressaltos fossem evitados, tendo sido instalada uma ligação telefônica direta (o famoso telefone vermelho) entre Kennedy e Kruschev, para que se entendessem antes dos pequenos problemas virarem grandes crises.

Nos EUA e em grandes capitais européias, houve júbilo incontido. Cidadãos festejavam nas praças e parques, lotavam os bares. Casais redescobriram a atração sexual, estranhos iam para a cama depois de trocarem duas palavras [O número de crianças nascidas nove meses depois foi muito superior ao habitual...].

A explosão de vida sucedeu aos augúrios de morte. Emblematicamente, a música até então ignorada de quatro jovens de Liverpool decolaria para a consagração mundial, tornando-se a trilha sonora da maior revolução de costumes que o mundo já vivenciou.

CHERNOBIL: 6,6 MILHÕES
FORAM CONTAMINADOS

Mas, se diminuiu consideravalmente a ameaça de que a guerra fria entre EUA e URSS se tornasse quente e radioativa, nem por isso a energia atômica deixou de provocar pesadelos e paranóias.

Em abril de 1986, um acidente nuclear na usina soviética de Chernobil, na Ucrânia, liberou uma nuvem de radioatividade que atingiria a URSS, Europa Oriental, Escandinávia e Reino Unido.

Grandes áreas da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia foram muito contaminadas, expondo 6,6 milhões de pessoas e tornando necessárias a evacuação e reassentamento de aproximadamente 200 mil habitantes.

A ONU computou 56 mortes decorrentes do acidente na primeira década, estimando que outras 4 mil ainda viriam a ocorrer; o Greenpeace retrucou que esses números eram bem inferiores aos reais. A usina foi desativada.

Por que estou evocando dois episódios tão deprimentes? Pelo simples motivo de que isso pode acontecer de novo. Está no noticiário:
  • a Coréia do Norte realiza testes nucleares repudiados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e vistos com apreensão pela Coréia do Sul e Japão;
  • um vazamento de material radioativo na usina de Angra 2, ocorrido em 15 de maio último, só foi comunicado à população 11 dias depois, com a garantia de que os seis empregados afetados não correm maiores riscos [Houve tempo para se preparar bem a versão tranquilizadora, mas não me surpreenderei se a história estiver sendo malcontada].
O acidente no reator de Three Mile Island, bem menos grave que o de Chernobil, motivou nos EUA o lançamento da campanha No Nukes, com a participação de músicos famosos como Jackson Browne, Bonnie Raitt e Graham Nash.

Três décadas depois eles continuam protestando, agora contra um projeto de lei que amplia o estímulo a empreendimentos ligados à energia nuclear.

É mais do que tempo de fazermos algo semelhante por aqui. A população de Angra dos Reis e municípios próximos seria a primeira a agradecer.

22.5.09

COM CESARE NA "PAPUDA"

Foi emocionante o encontro com Cesare Battisti, que relato no longo texto hoje colocado no ar pelo site Congresso em Foco (veja aqui ou na reprodução integral do texto, abaixo).

Como ele dissera, numa mensagem a mim repassada pelos companheiros do comitê, mesmo havendo um oceano de distância e a diferença de uma década, nossas experiências tinham sido muito parecidas: "Alegrias e misérias, sonhos quebrados, decepções, mas o coração aguenta e os sentimentos se fortalecem, são mais claros".

Pessoalmente, Battisti é um sujeito afável e, sem sombra de dúvida, inofensivo. Conheci os homens de ferro da esquerda e deu para perceber claramente que nosso companheiro italiano não é um deles.

Nem eu. Se fosse sincero comigo mesmo, teria reconhecido que a luta armada não era para mim no exato instante em que, participando da equipe precursora para a instalação de uma escola de guerrilhas no Vale do Ribeira (SP), coloquei um animalzinho na minha mira e, vendo-o tão gracioso e inconsciente do perigo, não tive forças para apertar o gatilho.

"Nós sabemos: / o ódio contra a baixeza / também endurece os rostos! / A cólera contra a injustiça / faz a voz ficar rouca!", disse o grande Brecht. Mas, não é bem assim. Os humanistas estão predispostos a sofrerem como vítimas, mas não a matarem como os guerreiros.

Num filme recente sobre Nelson Mandella, atribui-se a ele uma resposta exemplar, a um interlocutor que lhe pergunta se seria capaz de matar por seus ideais: "Eu seria capaz de morrer por esses ideais".

Da mesma forma, Battisti e eu somos do tipo dos que morrem por suas causas. Demo-nos mal por iludirmos a nós mesmos, querendo acreditar que fôssemos também capazes de matar. Pagamos um preço bem alto por isso.

De resto, foi emocionante escrever novamente uma matéria jornalística tão complicada, depois de dois anos. A última havia sido aquela em que narrei minha visita à reitoria da USP ocupada pelos estudantes.

A orientação do Congresso em Foco foi de fazer não uma entrevista, mas relatar o encontro de dois personagens com trajetórias de vida similares. Fácil de falar, difícil de fazer.

Mais ainda tendo de levar em conta a rede de difamação da extrema-direita, que certamente me acusará de cabotinismo (o que já faz, aliás, tentando desqualificar minha atuação como porta-voz do Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti).

Então, tinha de colocar meus sentimentos na matéria, mas não a ponto de ofuscar o personagem principal.

Teria ficado mais apropriado, jornalisticamente, se um terceiro descrevesse o nosso encontro, mas não havia como viabilizar isso.

Pensei até em narrar tudo na terceira pessoa, referindo-me a mim mesmo como "Celso", mas conclui que soaria artificial.

Enfim, fiz o possível para sair-me bem da empreitada, tentando conciliar os três papéis que estava desempenhando simultaneamente: o de revolucionário solidário ao Cesare, o de porta-voz do Cesare Livre e o de jornalista.

Não dava para posar de repórter imparcial: eu já tomei partido há muito tempo. Então, só me restava deixar bem claro para os leitores (boa parte dos quais já deveria saber disto, aliás) que se tratava do relato de alguém engajado, não de um observador neutro.

Aliás, não existem observadores neutros. O que existem são jornalistas simulando uma isenção que verdadeiramente não têm.

Eu sempre preferi o jogo franco.

CESARE BATTISTI: DA DEPRESSÃO À ESPERANÇA

Estou à espera de que Cesare Battisti seja trazido a um escritório do Centro de Internamento e Reeducação "Papuda", para que nós (vim com uma deputada e uma companheira do comitê de solidariedade) conversemos com ele numa mesa de canto, enquanto funcionários prosseguirão com seus afazares de rotina, ao redor.

Meus sentimentos são contraditórios. Para começar, fiquei surpreso com as características pouco opressivas deste presídio-modelo. Em 1970/71, quando fui preso político da ditadura militar, estive em terríveis centros de tortura como os DOI-Codi's de SP e RJ, e o quartel da PE na Vila Militar (RJ); e, de passagem, fiquei conhecendo o Presídio Tiradentes e o Deops de SP, igualmente soturnos. Além de haver mais tarde visitado um amigo, preso comum que cumpria pena no Carandiru, captando tanta energia negativa no ar que em nada me surpreendeu, em 1992, o massacre dos 111 detentos, iniciado exatamente no Pavilhão 9 que impressão tão má me causara.

E, depois de escrever mais de 60 textos em defesa de Battisti nos últimos meses, acabando por me tornar porta-voz do "Cesare Livre", inquieta-me a possibilidade de não ter tanta empatia com o homem como tenho com sua causa. Várias vezes já me decepcionei ao travar contato com os famosos do noticiário.

Battisti não me reconhece de imediato, mas abre um largo sorriso quando somos apresentados. Abraçamo-nos, sem que nenhum segurança se preocupe com a possibilidade de eu lhe passar sorrateiramente algum contrabando. Decididamente, não o consideram perigoso.

Aparenta exatamente os 54 anos que tem. É loquaz, fala rapidamente e enfatiza suas palavras com gestos, como bom italiano. Na sua agitação, às vezes assume, de relance, poses meio caricatas.

Tendo atuado como jornalista profissional nos 34 anos seguintes à minha passagem pelos porões e prisões da ditadura, sei que uma série de fotos do Cesare, feitas por um profissional, invariavelmente conterá muitas que o tornarão simpático aos leitores, enquanto outras tantas vão lhe dar aparência esquisita, desagradável. Invariavelmente, são as segundas que a grande imprensa brasileira pinça para ilustar as notícias sobre ele. Goebbels explica...

Olho no olho, percebo ser Cesare um homem pacato, do tipo não-faz-mal-nem-a-uma mosca. Nada do olhar de pedra dos verdadeiros assassinos, seja os que matam por dinheiro, seja os que o fazem em nome de causas (conheci exemplares dos dois universos). Pelo que valer, saí de lá convencido de que seria mesmo incapaz de haver cometido os três-assassinatos-que-eram-quatro a ele tardiamente imputados pela Justiça italiana.

Crimes simultâneos

É que, anos depois de condená-lo pelo que ele realmente fez (ter militado num grupúsculo de ultraesquerda e participado de algumas das chamadas expropriações, sem que nelas fosse derramado sangue), a Itália o levou de volta ao tribunal, a partir unicamente do testemunho de delatores premiados: o que o acusou e os que foram incumbidos de corroborar a acusação. Sabendo como eram montados os processos brasileiros dos anos de chumbo, bastou-me ler esse material para sentir o cheiro inconfundível de armação...

Parece que os Torquemadas brasileiros tinham mais zelo na montagem de suas farsas. Duas ações armadas em que Cesare haveria apertado o gatilho ocorreram no mesmo dia, em localidades distantes, de forma que sua presença física em ambas era materialmente impossível. Então, os trapalhões italianos trataram de tapar o sol com a peneira, reescrevendo a acusação de forma que ele passasse a figurar apenas como autor intelectual de um dos crimes -- o que não impede nossos jornalões e revistonas de continuarem até hoje atribuindo-lhe quatro homicídios, sem ressalvas.

Quando o refúgio humanitário que o ministro da Justiça Tarso Genro concedeu a Battisti foi publicado no Diário Oficial, em janeiro último, ele e todos nós começamos a preparar-nos para sua libertação. Até montamos esquemas de segurança para o Dia D, temerosos de algum atentado articulado pela extrema-direita italiana ou pelas viúvas da ditadura brasileira.

Dá para imaginar-se o impacto que lhe causou a estapafúrdia decisão do Supremo Tribunal Federal de mantê-lo preso, contra a lógica jurídica e o bom-senso dos leigos. Afinal, já se haviam passado quase dois anos desde que fora aprisionado no território brasileiro, a mando do STF, por crimes supostamente cometidos alhures.

Concedido o refúgio, que até agora tem sido invariavelmente reconhecido pelo próprio Supremo como fator determinante do arquivamento de processos de extradição, era de esperar-se que, no mínimo, aguardasse em liberdade o cumprimento das últimas formalidades jurídicas.

Negativo. O STF manteve a prisão e até sinalizou que poderia neste caso adotar decisão diferente de todos que lhe foram até hoje submetidos. De quebra, a Itália articulou uma das mais avassaladoras pressões a que uma decisão soberana do Executivo brasileiro foi submetida por governo estrangeiro, com o apoio explícito de boa parte da mídia brasileira.

Battisti mergulhou em profunda depressão, tendo de tomar medicamentos pesados, não conseguindo mais um sono repousante nem tendo paciência para ler seja lá o que fosse.

Então, fico comovido quando ele me confessa: ao receber meu livro Náufrago da Utopia, que lhe remeti pelo correio, obrigou-se a lê-lo, por considerar ser essa sua obrigação. Mas, a narrativa o prendeu tanto que acabou devorando-o e... retomando o gosto pela leitura. O bloqueio fora quebrado.

Fez-me lembrar meu próprio tempo de preso. Passado o pior período da tortura e incomunicabilidade, que para mim durou dois meses e meio, continuava com a mente turvada pelos traumas, misturando realidade e imaginação.

Mas, o companheiro da cela ao lado conseguiu que lhe trouxessem os livros existentes no quartel, pois, cardíaco, precisava de algo que o acalmasse. Reivindiquei e acabei obtendo o mesmo tratamento.

Foi a leitura dos chatíssimos manuais militares e relatos sobre Caxias, e depois dos volumes de Julio Verne (uma dádiva dos céus: sua obra completa estava pegando pó naquela biblioteca marcial!), que me devolveu a clareza de raciocínio.

Não esperava que, um dia, seria o Julio Verne de alguém. Nem mesmo quando o pessoal do comitê me enviou a mensagem de Battisti, com um parágrafo marcante:
“Acabo de ler seu livro. Um mergulho no passado, através das grades. Como tudo se parece! Alegrias e misérias, sonhos quebrados, decepções, mas o coração aguenta e os sentimentos se fortalecem, são mais claros. O sonho continua, são os meios para realizá-los que mudam”.
Aos 58 anos, já não tenho confiança irrestrita no que dizem pessoas a quem, por um ou outro motivo, convém me agradar. Daí a satisfação que senti ao captar sinceridade em Battisti! Meu passado de repórter me faz acreditar, aí sim totalmente, na leitura que faço das expressões dos interlocutores.

Outro motivo para eu citar esta frase é o de que as entrevistas com Battisti estão proibidas na “Papuda”, então sou obrigado a reconstituir nossa conversa pelas anotações que fiz precariamente (para não dar muito na vista) e pelo que retive na memória. Então, é algo inteiramente dele, para dar uma idéia de como se expressa.

Motivos da perseguição

Passemos à sua visão sobre a via crucis que percorre desde a prisão na Itália em 1979, passando por exílios no México, França e Brasil, afora os países que atravessou na fuga (Espanha, Portugal, Ilha da Madeira, Ilhas Canárias). Vou reproduzir, entre aspas, as frases de Battisti que consegui anotar, transmitindo o restante com minhas palavras, mas seguindo sua linha de raciocínio.

“Eu não sou ninguém, sou só um instrumento para a luta contra o que representou 1968 na história da humanidade”, diz ele, aludindo à pouca importância que teve durante a militância. Seu grupo, os Proletários Armados para o Comunismo, estava a anos-luz de distância das poderosas Brigadas Vermelhas, p. ex., não passando de mais um entre os aproximadamente 500 agrupamentos de ultraesquerda na Itália dos anos de chumbo.

Por que passou depois a sofrer perseguição tão encarniçada? Porque “1968 ainda não acabou”, deixando sementes que continuam a inspirar projetos de mudança, alternativas ao capitalismo globalizado que aí está. Então, as forças reacionárias querem desacreditar esse legado, “caracterizando 1968 como um movimento criminoso”.

Atirar Battisti numa masmorra italiana teria, portanto, alto valor simbólico: “Eu represento a criminalização do pós-1968”.

E como se explica o fato de que muitos dos que querem ver Cesare extraditado são antigos comunistas, como o presidente Giorgio Napolitano? “Nosso enfrentamento nas fábricas era contra o sindicalismo do PCI, não contra a democracia cristã.” Antes de pegarem em armas, os grupos de ultraesquerda já tinham como inimigos diretos os comunistas italianos, que tentavam de todas as formas evitar o crescimento da influência dos autônomos.

Estes adquiriam cada vez peso, conseguiam colocar “mil pessoas na rua de um dia para outro”, enquanto os comunistas não empolgavam mais os trabalhadores jovens. “Houve um episódio muito noticiado na época, em que o PCI convocou um congresso para reagir à ascensão dos autônomos nas fábricas, mas seus representantes acabaram sendo escorraçados.”

Então, quando parte desses autônomos pegaram em armas contra os atentados direitistas e contra a aliança histórica entre o comunismo e a democracia-cristã, tiveram pela frente, como principais repressores, os próprios comunistas. Por conta da experiência acumulada na luta contra Mussolini, “o PCI é que tinha experiência de guerrilha, não a democracia-cristã; foi nosso inimigo nº 1”.

É para evitar que seja trazido à tona o papel histórico deplorável do PCI durante as décadas de 1970 e 1980 que antigos comunistas desenvolvem tamanho esforço para encarcerar quem conquistou prestígio literário. “Poucos têm credibilidade para falar nisso em nível internacional. Quando eu me tornei escritor, virei uma ameaça.”

Neste sentido, um dos nomes mais emblemáticos dos excessos cometidos pela Itália durante a repressão aos ultras, o subprocurador Armando Spataro, é quem municia Walter Maierovitch com as informações (extraídas de inquéritos e processos) que este repassa em sua coluna da CartaCapital. “É um torturador documentado. Quantos morreram por causa dele, executados nas ruas! Ele é quem deveria ir preso, da mesma forma como os torturadores da Argentina estão sendo presos agora!”

Solidariedade financeira dos amigos

A companheira que me acompanhou na visita garantiu que Cesare estava bem mais animado quando saímos. Sem ter parâmetros para julgar, também tive a impressão de que seus passos eram mais leves na despedida, quase como quem quisesse dançar.

Faz sentido. Transmiti-lhe a avaliação de que tudo converge para o arquivamento do processo de extradição, sem análise de mérito, no julgamento que o STF deverá marcar para junho.

Como ele sabe que já participei de várias cruzadas semelhantes, deve ter levado a sério meu prognóstico. Tanto que, meio relutante a princípio, acabou revelando o que fará quando reconquistar a liberdade.

Viverá de e para a literatura. “Mesmo porque estou precisando muito de recursos, desde 2004, por causa das perseguições, não consigo ganhar a vida trabalhando. Hoje estou vivendo da solidariedade dos amigos.”

Neste sentido, pretende morar no Rio de Janeiro ou São Paulo, “que é onde as editoras estão”. Quer atuar na divulgação dos seus livros, pois, deixados ao léu, sem empenho do autor, “não acontece nada”.

Convidará sua filha mais velha, Valentina, para vir morar com ele no Brasil, mesmo porque ela é biogeneticista e aqui encontrará bom campo para seu trabalho.

Quanto à outra filha, de 14 anos, “é melhor que, por enquanto, continue morando com a mãe”.

De resto, o fim da depressão veio acompanhado por uma trégua que a hepatite B concedeu a Cesare: “Nos últimos dois meses ela me deixou em paz...”.

E, aliviado com a liberação, por ordem judicial, do livro cuja única cópia estava na memória do computador apreendido pela Polícia Federal, Battisti trata agora de escrever os dois capítulos que faltam. Seu título: Ao pé do muro.

Trata-se do segundo volume da trilogia sobre suas andanças e desventuras desde que lhe cancelaram o asilo político na França, entremeadas por lembranças da militância.

O já lançado Minha Fuga Sem Fim aborda, exatamente, a atuação (muitas vezes escusa) do lobby italiano junto aos políticos, a Justiça e a mídia franceses, no sentido de que fosse desconsiderada no seu caso a legislação de forte conteúdo humanístico do tempo de François Mitterrand.

O terceiro também já tem nome: Ser Bambu, aludindo à flexibilidade do caniço, como símbolo do jogo-de-cintura necessário para quem enfrenta adversidades como as de Cesare.

17.5.09

MINO JOGA SUA ÚLTIMA CARTA: IGUALA BATTISTI A BIN LADEN (!)

Meninos mimados nos irritam, mas lhes damos um desconto por serem imaturos.

Já septuagenários mimados, quando não têm sequer a atenuante da senilidade, são insuportáveis.

Mino Carta acostumou a ver-se como os bajuladores o apresentam, ou seja, algo entre Júpiter Capitolino e um imperador da Roma dos césares.

Então, as evidências de que o Caso Cesare Battisti marcha para o único desfecho possível à luz da lei e jurisprudência brasileiras – o arquivamento do processo de extradição movido pela Itália e a imediata libertação do escritor italiano – fizeram Mino Carta perder as estribeiras e até o senso de ridículo: acaba de cometer um artigo sarcástico na aparência, furibundo na essência, cujo principal objetivo é induzir os leitores a associarem a imagem de Battisti à de Osama Bin Laden ( Asilo Político a Bin Laden, http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=8&i=4091 ).

Secundariamente, ele desfere o que pensa serem raios, mas não passam de resmungos de mau perdedor, contra o ministro da Justiça Tarso Genro, a quem culpa pelo fracasso de sua cruzada rancorosa.

Segundo Mino, há uma “doutrina, clara e insofismável, a assemelhar profundamente Cesare Battisti e Bin Laden, ambos combatentes de uma causa bélica”. Este sofisma infame o acompanhará ao túmulo, como contraponto aos méritos que acumulou na defesa da liberdade de expressão durante a ditadura militar.

É o simplismo habitual dos caçadores de bruxas: 1) pega-se um demônio; 2) forçam-se comparações fantasiosas entre ele e um ser humano; 3) condena-se o último à fogueira.

Então, como Bin Laden hoje é o estereótipo do terrorista aos olhos do cidadão comum, Mino Carta atropela a verossimilhança para equipará-lo a Battisti, comportando-se como um aprendiz de Maquiavel a aplicar a lógica de Torquemada.

TERRORISTA E GENOCIDA COMO BUSH - Bin Laden tem o perfil clássico do terrorista. É um cidadão que, exasperado com as matanças infligidas à população civil dos países árabes, resolveu pagar na mesma moeda: ao invés de lutar ao lado do povo, isolou-se numa clandestinidade extrema e foi travar sua guerra particular contra o eixo Israel/EUA.

Ao erigir os civis em alvo de uma vingança genocida, Bin Laden fez-se merecedor da execração universal, tanto quanto deveria ser execrado o terrorista George W. Bush pelos massacres de civis no Iraque (praticados sob falso pretexto, o que o igualou a Hitler no episódio do incêndio do Reichstag) e Afeganistão.

Já Battisti integrou, na década de 1970, um dos aproximadamente 500 grupúsculos de esquerda que pegaram em armas contra o terrorismo da extrema-direita (muito mais letal!) e a aliança espúria do Partido Comunista Italiano com a mafiosa Democracia-Cristã, que levou ao desespero os autênticos revolucionários, ao garantir a sobrevida do capitalismo até onde a vista alcançasse.

Foi um fenômeno político, indubitavelmente um desatino, mas não uma escalada de marginalidade. Assim a Itália o entendeu na época, ao introduzir uma legislação de exceção para combater a subversão contra o Estado (enquanto a tortura grassava solta e impune nos porões, seguindo as pegadas das ditaduras sul-americanas).

E assim reza a sentença expedida contra Battisti em processo de cartas marcadas, sem provas materiais, lastreado unicamente em delações premiadas e com lei aplicada retroativamente para agravar a pena.

Ao perceber que, face às especificações da Lei do Refúgio brasileira, jamais obteria a extradição de Battisti pelo que ele é e pelo que reconheceu ser ao condená-lo, a Itália tentou mesmerizar os tupiniquins com uma mágica canhestra, maquilando crimes políticos como comuns.

Mino Carta e Wálter Maierovitch engajaram-se de corpo e alma na campanha goebbeliana de satanização de Battisti. Não só deturparam os fatos referentes à sua militância nos Proletários Armados para o Comunismo, como repassaram aos brasileiros as mentiras italianas sobre o passado de Battisti, apresentando como marginal quem era esquerdista desde criancinha, seguindo a tradição familiar.

Agora, vendo seu castelo de cartas ruir, Mino ousa comparar um homem que recuou horrorizado diante das matanças cometidas por seus companheiros, com outro que as considera justificadas pelos objetivos maiores; um homem que depôs as armas há três décadas e desde então leva existência pacata e produtiva, com um guerreiro que jamais abdicou da luta; um homem que desempenhou papel dos mais secundários nos anos de chumbo e só atingiu a notoriedade ao ser erigido em bode expiatório pela Itália, com um dos carbonários que mais impactaram a História em todos os tempos.

Aqueles a quem os deuses querem perder, primeiramente enlouquecem. Mino acaba de atingir o ponto mais baixo da longa carreira.

Em benefício de sua biografia, é hora de resignar-se à derrota iminente como o adulto amadurecido que deveria ser, ao invés de continuar reagindo com pirraças de criança mimada.

11.5.09

A MORAL DOS FIGURÕES: COM O DEDO NA FERIDA

Deu na coluna de Fernando Rodrigues, na Folha de S. Paulo de 11/05/2009: magistrados da Justiça do Trabalho e respectivos(as) cônjuges passaram o último feriadão de Tiradentes num hotel de luxo baiano (o Tivoli Ecoresort Praia do Forte), com hospedagem e todas as mordomias pagas pela Febraban, a federação dos bancos brasileiros.

Em setembro de 2006 uma iniciativa semelhante, da mesma Febraban e na mesma Bahia (ilha de Comandatuba), ganhou as páginas da imprensa. Na ocasião, Antonio de Pádua Ribeiro, corregedor nacional do CNJ - Conselho Nacional de Justiça, deu uma justificativa hilária: "Procurei, com o sacrifício do meu fim de semana, dar cumprimento ao preceito constitucional de ser o CNJ um órgão de interlocução do Judiciário com a sociedade".

Pouco original, João Oreste Dalazen, vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho e membro do CNJ, usou palavras semelhantes para qualificar o uso que deu a seu 21 de abril: teria sido "um sacrifício muito grande".

Sacrifício fez Tiradentes, no cativeiro e no cadafalso, não esses togados refestelados na piscina, por conta de uma entidade que representa péssimos patrões. Os bancários que ponham as barbas de molho, pois a Justiça do Trabalho ficou sob suspeição.

Trabalhando numa agência de comunicação empresarial, presenciei exatamente a mesma prática, no caso de grandes laboratórios que convidavam médicos importantes para desfrutarem do bom e do melhor.

Não era exigida nenhuma contrapartida explícita, mas, claro, os doutores sabiam muito bem o que deles se esperava. E receitavam os medicamentos do laboratório anfitrião.

Mais: incumbido de resenhar lançamentos literários em algumas revistas, eu recebia toneladas de paradidáticos medíocres que as editoras conseguiam fazer com que os professores recomendassem a cada nova temporada, em substituição a idêntico lixo adotado no ano letivo anterior.

Ou seja, há toda uma engrenagem perversa funcionando para impedir que os livros do primogênito sejam passados para os irmãos mais novos, primos, amigos, vizinhos, etc., dispensando uma nova compra, como acontecia no passado.

E, com isto, os clássicos da literatura são deixados de lado, substituídos por obras produzidas às dezenas por autores de aluguel.

Se queres um monumento, olha em torno. Capitalismo é isso: podridão globalizada.

O VERDADEIRO VILÃO - Na mesma edição da Folha, a carta de uma leitora de Maringá/PR me chamou a atenção: "Sempre que alguém falava mal dos políticos, eu pensava: ainda bem que há o Fernando Gabeira, o Eduardo Suplicy, o Osmar Dias. Agora, após saber que eles também usaram as passagens, estou me sentindo meio órfã, pois, quando elejo alguém, espero que ele faça o que é certo, e não o que todo mundo faz".

Sei que tal desencanto é compartilhado por muitos e muitos brasileiros decentes, então vou entrar neste tema em relação ao qual meu primeiro impulso foi o de guardar distância.

Não por temer que venha à tona algo a meu respeito -- acostumei-me desde cedo a viver de acordo com a moral revolucionária --, mas por respeitar o que o Gabeira foi e o que o Suplicy é.

Honestamente, acrescento que o segundo me ajudou muito quando travei uma luta dramática pela anistia política, à beira da miséria, em 2004/05. É justo que o leitor saiba disto e tire sua conclusão sobre se minha argumentação está ou não embutindo um sentimento de gratidão pessoal.

Paulo Francis estava certíssimo ao criticar, na década de 1960, a adoção por alguns setores da esquerda de uma bandeira eminentemente direitista: a moralização política.

Pois a corrupção é íntrínseca ao capitalismo. Enquanto os cidadãos forem levados a competir insana e inutilmente uns com os outros, compelidos a buscar sempre a diferenciação e o privilégio, nenhuma medida política, judicial ou policial a erradicará. Haverá sempre jeitinhos para driblar as restrições.

Quando os valores supremos da sociedade forem a igualdade, a solidariedade e a comunhão de esforços em prol do bem comum, a corrupção desaparecerá por desuso.

Então, a meta dos idealistas tem de ser a de tornar realidade a frase célebre: a ética é a estética do futuro. Não a de tentarem, em vão, remendar o capitalismo, que é amoral em essência.

Mesmo tendo uma infinidade de exemplos históricos para alertá-la de que a bandeira moralista serve mesmo é para justificar golpes de estado reacionários, a esquerda cedeu à tentação do comodismo. Utilizou-a para desmoralizar os Malufs da vida.

Poderia obter o mesmo resultado, com um pouco mais de trabalho, combatendo suas políticas; preferiu, entretanto, o caminho fácil.

O resultado aí está: atualmente são colocadas na alça de mira as pessoas, e não o sistema que gera a cultura da corrupção.

Médicos, juízes e professores, pilares da sociedade de outrora, hoje se vendem por um prato de lentilhas. Porque são intrinsecamente corruptos? Não, porque os condicionamentos sociais os estão levando a isto.

Então, é hora de pararmos de priorizar comportamentos pessoais e passarmos a centrar fogo no verdadeiro vilão: o capitalismo.

5.5.09

ÓTIMA PROPOSTA: UMA LEI PARA PUNIR QUEM NEGA AS ATROCIDADES DA DITADURA

No calor do tiroteio com a Folha de S. Paulo, quando o jornal ousou referir-se ao pior período totalitário da nossa história republicana como uma mera ditabranda, passou despercebida a ótima proposta do jornalista Rui Martins, que defendeu a criação de uma lei, "com o mesmo peso da lei anti-racista", para coibir-se a negação das atrocidades cometidas pelo regime militar.

Ou seja: que, a exemplo das leis aplicadas no mundo civilizado contra quem nega o Holocausto, seja introduzido em nosso país um instrumento legal para punirem-se os defensores do festival de horrores que, guardadas as proporções, pode ser considerado a versão brasileira do Holocausto.

Concordo plenamente com as ponderações do Rui, expostas no artigo O Negacionismo Político da Folha de SP (publicado em 25/02/2009 no site Direto da Redação: http://www.diretodaredacao.com/ ), cujos principais trechos reproduzo abaixo, excluindo o que já foi muito repisado quando do repúdio unânime dos brasileiros conscientes e íntegros ao jornal da ditabranda:

"O bispo inglês Richard Wiliamsson acabou expulso da Argentina por negar a existência do Holocausto e das câmaras de gás na Alemanha nazista, fazendo nisso parceria com o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. Diversos professores universitários europeus, militantes da extrema-direita, tiveram processos, perderam a cátedra e foram condenados por terem colocado em dúvida a solução final de Hitler.

"(...) Reescrever a história, apagar todos os traços de crimes cometidos para deixar uma imagem positiva e favorável à posteridade, sempre foi o desejo dos ditadores. Donde a necessidade de se preservar a memória da população do nosso planeta, para que não se esqueça dos crimes hediondos cometidos. A memória viva é a garantia da não repetição das atrocidades do passado e a possiblidade de se impedir a tempo qualquer tentativa semelhante.

"Para isso se constróem museus, erguem-se memoriais e monumentos, gravam-se os nomes das vítimas no mármore, filmam-se os sobreviventes, escrevem-se livros com depoimentos, em diversos lugares do mundo, e, ao mesmo tempo, não se permite demolir provas capitais como o campo de Auschwitz. O objetivo é o de preservar a memória para se evitar a repetição dos crimes.

"E para se evitar que saudosistas dos carrascos neguem as evidências, decidiu-se, em respeito às vítimas, punir os chamados negacionistas desejosos de reescrever a história sem os crimes cometidos por seus heróis.

"Quando o falecido pastor James Wright e o cardeal Evaristo Arns empreenderam a tarefa de coordenar a documentação histórica dos crimes da ditadura militar brasileira, surgiu o nome Nunca Mais. Ou seja, que isso não possa nunca mais se repetir, que as novas gerações sejam informadas de como uma ditadura militar derrubou um governo legalmente eleito, prendeu, torturou e matou milhares de brasileiros...

"A Operação Condor e as ditaduras militares do Cone Sul que agiam de maneira coordenada na repressão a todos os aspirantes da democracia e liberdade, na nossa América Latina, foram fatos históricos, com seus crimes registrados e os nomes dos torturadores e assassinos arquivados. A juventude de hoje, vivendo uma outra realidade, poderia desconhecer totalmente o período sombrio da censura nos jornais e nas artes, cinema e teatro, das prisões na madrugada e dos desaparecidos ou napalmados se todos os crimes, abusos e violências não fossem repertoriados, gravados e transformados em depoimentos históricos.

"Negar ou tentar amenizar os anos da ditadura militar, considerando-a ter sido uma ditadura branda é cometer crime de negacionismo. É tentar minimizar os malefícios do período discricionário com a intenção de deixar aberta a porta para novas ditaduras. É querer reescrever a história, para logo mais transformar os criminosos em heróis e as vítimas em culpados.

"(...)A bem da história e para se evitar repetições criminosas e desastrosas é preciso punir-se o negacionismo político daqueles que negam ou procuram minimizar nossos vinte anos de ditadura.

"(...) Uma lei com o mesmo peso da lei anti-racista acabaria com o saudosismo da Folha de São Paulo, que numerosos depoimentos confirmam ter colaborado com a ditadura."
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