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14.1.07

O WESTERN, QUEM DIRIA, JÁ FOI REVOLUCIONÁRIO E CONTESTADOR... (nov/2006)

Muitos dos que hoje se deslumbram com as estilizações de duelos e a extraordinária trilha musical de “Kill Bill” (Kill Bill: Vol. 1, 2003, e Kill Bill: Vol.2, 2004, d. Quentin Tarantino), ignoram que as primeiras inspiraram-se diretamente nas coreografias dos filmes do diretor Sergio Leone, enquanto várias músicas foram compostas há quatro décadas atrás, por Ennio Morricone, para os bangue-bangues italianos. É que Quentin Tarantino estava prestando um comovido tributo a esses dois mestres, que devem ter-lhe inspirado sonhos e brincadeiras nos seus tempos de menino.

Nascido em meados da década de 1960, o spaghetti-western lavou a alma de todos nós que gostávamos dos bangue-bangues, mas não da caretice dos norte-americanos. Teve surpreendente sucesso nas bilheterias: "O Dólar Furado" (Un Dollaro Bucato, 1965, d. Giorgio Ferroni), p. ex., chegou a ficar em cartaz por cerca de um ano num cinema de São Paulo. Isto se deveu não só a ter ocupado um espaço vazio, já que os norte-americanos haviam deixado de fazer westerns, como também a haver trazido um novo enfoque e uma nova moldura para o gênero.

Tirando obras de exceção como "Matar ou Morrer" (High Noon, 1952, d. Fred Zinneman), "Sem Lei e Sem Alma" (Gunfight at O.K. Corral, 1957, d. John Sturges), "O Matador" (The Gunfighter, 1950, d. Henry King), "Estigma da Crueldade" (The Bravados, 1958, d. Henry King) e "Rastros do Ódio" (The Searchers, 1956, d. John Ford), os faroestes made in USA de até então tinham o insuportável defeito de tentarem nos impingir aquela ladainha da luta eterna do Bem contra o Mal -- um tédio!

O mocinho não fumava, não bebia, não praguejava e nem trepava. A mocinha era recatada donzela. O xerife, pachorrento mas digno. Os índios, selvagens bestiais que tinham de ser tirados do caminho para não atrapalharem o progresso. Os mexicanos, beberrões subumanos.
Mesmo no mato, conduzindo boiada, o mocinho tinha a decência de manter-se sempre limpo e escanhoado. Bah!

O western italiano surgiu meio por acaso. A indústria cinematográfica italiana conseguira nos anos anteriores faturar uma boa grana com filmes épicos e mitológicos. Hércules, Maciste, Ursus, Golias, fundação de Roma, guerra de Tróia, etc. O filão, entretanto, estava esgotando-se e a Cinecittà saiu à cata de um novo produto.

Sergio Leone, então com 34 anos, tinha começado a carreira no neo-realismo italiano (como assistente de direção e diretor de segunda unidade), mas não conseguira alçar-se à direção. Era difícil abrir um espaço entre mestres como Vittorio De Sica, Lucchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, etc.

Então, entre atuar eternamente à sombra dos medalhões do cinema de arte e mostrar seu trabalho no cinema dito comercial, escolheu a segunda opção. Depois de dirigir os épicos “Os Últimos Dias de Pompéia” (Gli Ultimi Giorni di Pompei, 1959, creditado, entretanto, a Mario Bonnard) e “O Colosso de Rodes” (Il Colosso di Rodi, 1961, d. Sergio Leone), teve a sorte de estar no lugar certo, no momento exato, para dar o pontapé de partida num novo ciclo.

Adaptou para o Oeste a história de “Yojimbo” (Yojimbo, 1961), um filme de Akira Kurosawa sobre samurai que açula a discórdia entre dois senhores feudais para prestar-lhes serviço alternadamente, sem que percebam seu jogo duplo. O que Leone fez em “Por Um Punhado de Dólares” ((Per un Pugno di Dollari, 1964), basicamente, foi mudar a ambientação e colocar um pistoleiro caça-prêmios no lugar do samurai.

O protagonista também teve aí seu grande golpe de sorte. Clint Eastwood não emplacara em Hollywood como mocinho, ficando relegado a papéis secundários em séries de TV e a filminhos classe “B” e “C”. Leone percebeu nele um bom anti-herói. Compôs seu personagem (o “Estranho Sem Nome”) com barba rala, chapéu sobre os olhos, charuto na boca, fala arrastada e um poncho. Com isto, acabou alçando-o ao estrelato e fazendo jus à homenagem que depois Eastwood lhe prestaria, ao dedicar-lhe sua obra-prima “Os Imperdoáveis” (Unforgiven, 1992, d. Clint Eastwood).

O que diferenciou o western italiano foi exatamente ter sido feito por cineastas bem diferentes dos tarefeiros hollywoodescos (os ditos “artesãos”, que se limitavam ao feijão-com-arroz artístico que lhes garantisse o dito cujo gastronômico).

Damiano Damiani, Carlo Lizzani e Sergio Corbucci eram outros talentos com a cabeça feita pelo cinema de arte, assim como o superlativo roteirista Sergio Donatti (aliás, até os grandes diretores Bernardo Bertolucci e Dario Argento chegaram a desenvolver uma história para western). Então, não se limitaram a realizar filmes com muita ação e nenhuma vida inteligente; fizeram questão de deixar sua marca, passando mensagens cifradas, dando toques, propondo outra abordagem para o western.

Em vez de um palco em que o Bem vence sempre o Mal, o bangue-bangue italiano mostrou o velho Oeste como uma terra de ninguém, primitiva e selvagem, em que todos perseguem seus objetivos como podem. Evidentemente, há muito mais verossimilhança nesse enfoque do que no norte-americano. O Oeste do século 19 seria algo como o garimpo de Serra Pelada no seu apogeu. Um grotão selvagem e sem lei.

Em vez do herói, o western italiano consagrou o anti-herói: barbudo, desgrenhado, com roupas sinistras, muitas vezes um caça-prêmios, quase sempre um mau-caráter. No fundo, só se diferencia dos bandidos por agir sozinho enquanto os outros atuam em bando.

Lembrem-se: era a década de 1960, quando havia um imenso desencanto com a ordem estabelecida. Rebeldes eram tudo que queríamos ver Não suportávamos mais os heroizinhos c.d.f. de Hollywood. Os Djangos, Sabatas e Sartanas nos cativaram à primeira vista (os únicos mocinhos nos moldes estadunidenses eram os protagonizados por Giuliano Gemma).

E, enquanto os poderosos viraram vilãos, os índios e os peões mexicanos passaram a ser mostrados como vítimas e heróis. Afinal, vários cineastas italianos tinham inclinações revolucionárias, mas não havia nada revolucionário para destacar nos EUA do século 19. A solução foi transferir a ação para o efervescente México, como em "Quando Explode a Vingança" (Giù la Testa, 1971, d. Sergio Leone), "Gringo" (El Chuncho, Quién Sabe?, 1967, d. Damiano Damiani), "Reze a Deus e Cave Sua Sepultura" (Prega Dio... e scavati la fossa, 1968, d. Edoardo Mulagia), "Réquiem Para Matar" (Requiescant, 1967, d. Carlo Lizzani), "Companheiros" (Vamos a Matar, Compañeros, 1970, d. Sergio Corbucci) e "O Dia da Desforra" (La Resa dei Conti, 1966, d. Sergio Sollima).

Toques esquerdistas, sim, eles podiam inserir em filmes ambientados nos EUA:
• o próprio "Django" (Django, 1966, d. Sergio Corbucci), no qual os vilãos são visivelmente inspirados na Ku-Klux-Khan;
• "Quando os Brutos Se Defrontam" (Faccia a Faccia, 1967, d. Sergio Sollima), reflexão sobre a gênese de líderes oportunistas;
• "O Especialista" (Gli Specialisti, 1969, d. Sergio Corbucci), que coloca jovens rebeldes (referência às barricadas francesas de 1968) em ação no Oeste;
• "O Vingador Silencioso" (Il Grande Silenzio, 1968, d. Sergio Corbucci), denunciando o massacre de Johnson Country, quando centenas de imigrantes eslavos foram dizimados pelos barões de gado do Wyoming – o mesmo episódio histórico que foi depois retratado em "O Portal do Paraíso" (Heaven’s Gate, 1980, d. Michael Cimino);
• e o extraordinário "Três Homens em Conflito" (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, 1966, d. Sergio Leone), com algumas das mais marcantes seqüências antibelicistas do cinema.

Uma última característica notável foi libertar a trilha musical da tirania do country. Não mais o que realmente existia nos EUA do século retrasado, como violões, violinos, banjos, gaitas e sanfonas, mas também flauta, saxofone, órgão, sintetizadores, castanholas -- tudo que se harmonizasse com o clima daquela seqüência, pouco importando se tais instrumentos eram encontrados ou não no velho Oeste. Para completar, o uso criativo de sinos, caixas de música, assobios e outros achados. Morricone é, com certeza, o melhor criador de trilhas musicais de todos os tempos.
FILMES INESQUECÍVEIS

"Quando Explode a Vingança" está entre os melhores filmes do Leone. É, na verdade, o segundo da trilogia "era uma vez", que inclui “Era Uma Vez No Oeste” (C’Era Uma Volta il West, 1968, d. Sergio Leone) e “Era Uma Vez Na América” (Once Upon a Time in América, 1984, d. Sergio Leone). Deveria ter-se chamado "Era Uma Vez A Revolução", mas acabou com um título que em italiano significa "abaixe a cabeça" e, nos EUA, "abaixe-se, otário".

Na visão do Leone, os verdadeiros heróis da revolução são os anônimos homens do povo, enquanto os líderes acabam sempre traindo a causa -- seja no México (o médico interpretado por Romolo Valli) ou na Irlanda (o dirigente do IRA que é amigo do John/James Coburn).

Foi feito em 1971, quando os movimentos revolucionários pipocavam na Itália, radicalizando-se progressivamente. Parece expressar o desencanto do Leone com o Partido Comunista Italiano e ser um alerta de que as Brigadas Vermelhas e congêneres teriam destino trágico.

Um lance interessante é mostrar de forma totalmente desumanizada o comandante das forças contra-revolucionárias: ele é visto escovando repulsivamente os dentes, chupando um ovo, olhando pelo binóculo. Leone não lhe concede sequer a dignidade da fala. De sua forma sutil, expressa o desprezo absoluto que tinha pela direita troglodita.

Outra grande sacada do Leone é ressaltar que a História nunca fixa a versão correta dos fatos. A frase que o Irlandês sempre repete, sobre "os grandes e gloriosos heróis da revolução", é um primor de sarcasmo.

* * *

"Três Homens em Conflito" foi, claramente, o divisor de águas na carreira de Sergio Leone, o momento em que ele mostrou ser muito mais do que um (brilhante) artesão.

"Por um Punhado de Dólares" introduziu a figura do anti-herói no centro da trama; a amoralidade básica dos tipos e das situações; a apresentação criativa dos letreiros iniciais, com o uso de animação; a nova concepção musical que Morricone trouxe para os westerns; e um dos personagens mais emblemáticos do bangue-bangue à italiana, o pistoleiro oportunista interpretado por Clint Eastwood.

Em "Por Uns Dólares a Mais" (Per Qualche Dollaro in Più, 1965, d. Sergio Leone), todas essas características foram desenvolvidas e aprimoradas. É um filme muito melhor do que o anterior, mas, paradoxalmente, não apresentou novidades significativas.

A única que vale a pena citar é a colocação de dois personagens em destaque, em vez de um. A partir daí, os filmes de Leone trariam sempre essa dupla de anti-heróis ocupando o espaço dos antigos mocinhos. Depois dos personagens interpretados por Clint Eastwood/Lee Van Cleef em “Por Uns Dólares a Mais”, tivemos Charles Bronson/Jason Robards (“Era Uma Vez no Oeste”), Rod Steiger/James Coburn (“Quando Explode a Vingança”) e Robert De Niro/James Woods (“Era Uma Vez na América”).

"Três Homens em Conflito" foi a obra em que Leone definiu e afirmou seu estilo, embutindo no cinema de ação discussões mais profundas, sem prejuízo do entretenimento propriamente dito. É um tipo de obra em camadas. De acordo com sua sensibilidade, o espectador pode se divertir apenas com o básico ou captar os muitos toques subjacentes.

E é grandiosa a crítica que Leone fez ao belicismo, com algumas das seqüências mais comoventes que o cinema já apresentou: o oficial bêbado sem coragem para destruir a ponte, a orquestra do campo de prisioneiros tocando para abafar os ruídos da tortura, o jovem soldado agonizante a quem o Estranho Sem Nome dá seu charuto.

Nos três filmes seguintes ele dissecaria a lenda (vinganças) e a realidade (construção da ferrovia) no Velho Oeste, as verdades e mentiras de uma revolução e a transição da época glamourosa do aventureirismo para a hegemonia insípida das grandes organizações. Foi o cineasta que conseguiu ir mais longe na proposta de mesclar entretenimento e reflexão, saindo-se tão bem nas bilheterias quanto em termos de qualidade cinematográfica.


* * *

“Keoma” (Keoma, 1976, d. Enzo G. Castellari) foi o canto do cisne do western italiano. E encerrou o ciclo com extrema dignidade. Trata-se daquela única obra-prima que, às vezes, um diretor convencional faz na vida, como que para provar que tinha talento para vôos maiores.

O subtexto é riquíssimo:
• a briga entre os quatro irmãos remete, evidentemente, a Freud e suas teorias sobre a horda primitiva;
• o nascimento da criança num estábulo é um paralelo bíblico, assim como a crucificação do herói;
• a presença da velha índia nos momentos culminantes do filme vem da mitologia grega, ela é um tipo de deusa do destino;
• o herói errante em busca de um desígnio que justifique sua vida também tem inspiração mitológica;
• a peste se constituiu num elemento bíblico e mitológico ao mesmo tempo, além de estabelecer uma ponte com o escritor Albert Camus ("A Peste", "O Estrangeiro"), cujas obras são uma óbvia referência no delineamento do personagem principal;
• finalmente, Castellari reverencia seus mitos cinematográficos -- Keoma é filho de Shane, o herói protagonizado por Alan Ladd em "Os Brutos Também Amam" (Shane, 1953, d. George Stevens), enquanto a presença de Woody Strode no elenco constitui uma homenagem a John Ford, de quem o negro era um dos atores prediletos.

E não foi só Castellari quem se superou, atingindo uma qualidade de que ninguém o suporia capaz. A dupla de compositores Guido e Maurizio de Angelis fez uma trilha musical extraordinária, capaz de rivalizar com as melhores de Morricone. O contraste do baixo com a soprano chega a nos arrepiar, as letras se casam maravilhosamente com o filme.

Em suma: trata-se de um clássico ainda não reconhecido.

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