Celso Lungaretti (*)
Ao aproximar-se o 43º aniversário do golpe militar que colocou nosso País à margem da civilização durante 21 longos anos, decidi alinhavar, num artigo, algumas características básicas do totalitarismo à brasileira versão 1964.
Por se tratarem de acontecimentos sobre os quais o veredito da História já foi inapelavelmente dado, eu não esperava que o texto “Há 43 Anos o País Entrava nas Trevas” tivesse grande repercussão.
Quis, no entanto, repassar aos jovens informações que são lugares-comuns para quem atravessou esse terrível período com percepção crítica e acompanhou o intenso trabalho de resgate da verdade nas décadas de 1980 e 1990, quando os pesquisadores deixaram de ser tolhidos pela censura e intimidações.
Surpreendentemente, “Há 43 anos...” deflagrou discussões exacerbadas nas comunidades do Orkut, fazendo-me lembrar a frase de Oscar Wilde sobre “a raiva de Calibã ao ver sua face no espelho”. Os calibãs da extrema-direita detestaram sua imagem sem retoques e tentaram quebrar o espelho.
Minhas intervenções nos debates virtuais acabaram reunidas num novo artigo, “O Ovo da Serpente”. Aí, sem argumentos para desqualificarem minhas posições, os neo-integralistas da Internet tentaram desqualificar-me pessoalmente, como antigo terrorista. Ou seja, o que eu fiz aos 18/19 anos, na limitadíssima visão dessa gente, constituiria motivo suficiente para eu não ser levado a sério aos 56 anos.
Fui obrigado, então, a esclarecer de uma vez por todas quem foi e quem não foi terrorista durante os anos de chumbo. E isto acabou servindo de base para este terceiro e último artigo da trilogia sobre o período mais brutal e vergonhoso da história brasileira recente.
A PROPAGANDA ARMADA - O terrorismo foi uma prática característica da segunda metade do século XIX, quando revoltosos impotentes para conduzir seus povos à tomada de poder decidiram intimidar os governantes, atentando contra suas vidas.
Então, em vez de conquistar as massas para a revolução, eles optaram por tornar impossível à classe dominante continuar governando. Tentavam criar o caos. O termo terrorista definia com exatidão a atuação política desses cidadãos.
Os terroristas mais característicos foram os narodniks da Rússia, que cometeram um sem-número de atentados contra o czar e seus ministros, à bala e com bombas.
Já os movimentos de resistência aos regimes militares latino-americanos, tanto quanto os que combateram o nazi-fascismo na Europa, sempre objetivaram conquistar o apoio das massas para sua causa. Nunca quiseram criar o caos. Designavam suas ações com uma expressão que fala por si mesma: propaganda armada.
Expropriavam bancos para manter a luta e sustentar militantes nas condições de rigorosa clandestinidade. Seqüestravam diplomatas para trocá-los pelos resistentes que estavam presos e sofrendo torturas atrozes. Ocupavam estações de rádio para obrigar a colocação no ar de seus manifestos. Tomavam supermercados e convidavam os trabalhadores a saqueá-los. Seqüestravam empresários e condicionavam sua libertação à distribuição de gêneros alimentícios em favelas. Criavam guerrilhas na esperança de que se tornassem o embrião de um exército de libertação.
Como em toda luta desse tipo, houve um ou outro excesso, como a bomba contra o jornal O Estado de S. Paulo (que só chamuscou o mural) e o atentado contra o QG do II Exército (que vitimou um recruta e foi criticadíssimo pela própria esquerda).
No entanto, o Comando de Caça aos Comunistas (organização paramilitar consentida pela ditadura), sozinho, cometeu muito mais ações caracteristicamente terroristas do que todos os grupos de esquerda juntos.
Idem, os integrantes dos órgãos de segurança da ditadura que tentaram sabotar a abertura de Geisel, com bombas, atentados e agressões covardes aos jornaleiros que ousavam vender veículos alternativos (suas bancas eram incendiadas!).
Centenas, talvez milhares, de inocentes teriam morrido no Riocentro, se o feitiço não houvesse virado contra o feiticeiro.
E, claro, que moral tinha a ditadura militar brasileira para rotular alguém de terrorista?! Com absoluto desprezo pelos direitos humanos, cometeu atrocidades que incluíram o seqüestro e a execução de opositores, capturados com vida e levados a centros clandestinos de tortura, para sofrerem suplícios terríveis e depois receberem o tiro de misericórdia; e a ocultação de seus cadáveres, tanto que, até hoje, famílias continuam em busca dos restos mortais dos seus entes queridos.
Quem levou a grau extremo a prática do terrorismo de estado não deveria nem sequer tocar nesse assunto...
ROLO COMPRESSOR - O rótulo de terrorista, portanto, não passou de uma deturpação da História com fins propagandísticos. Assim como chamavam de terroristas quem não o era e nunca foi, os militares brasileiros chegaram até a distribuir por todo o País cartazes acusando de assassinos pessoas que jamais haviam matado uma mosca -- como eu.
Era, sim, a mais vil e infame aplicação, no Brasil, dos conceitos de Goebbels: repetir tantas vezes uma mentira até que ela passasse por verdade.
Tudo isso ficou para trás quando os historiadores esclareceram a verdade sobre os anos de chumbo, os juristas reconheceram que a ação dos grupos armados se deu em conformidade com o princípio de resistência à tirania e o Estado brasileiro admitiu e começou a reparar sua culpa pelos maus feitos da turba de delinqüentes que agiu em seu nome durante 21 anos.
No entanto, a extrema-direita se reagrupou e passou a desenvolver uma propaganda avassaladora e massacrante, principalmente na internet. E voltou a tratar os resistentes como terroristas, exumando o velho clichê propagandístico, que já estava desmoralizado e banido do debate civilizado.
Não tenta mudar conceitos no ambiente acadêmico, pois sabe que seria exposta ao ridículo. Seu alvo preferencial, ao buscar prosélitos, são os incultos, os fracassados, os medíocres, os frustrados e os ressentidos -- a mesmíssima escória que respaldou a ascensão de Mussolini e Hitler.
Aproveitando a justa indignação contra o Governo Lula -- que é tudo, menos um governo de esquerda --, desenvolve uma pregação totalitária sem sutileza nenhuma. Se a justiça fosse séria no Brasil, muitos néo-integralistas já estariam presos por pregarem ostensivamente o fim da democracia.
Essa corja atua como rolo compressor, intimidando as pessoas equilibradas, que acabam deixando de participar dos fóruns de discussão política na internet para não terem de enfrentar uma malta de adversários que não hesita em recorrer a intimidações e grosserias.
Ou seja, fazem na internet o que os primeiros fascistas e nazistas faziam nas ruas: amedrontavam as pessoas de bem, para que não reagissem à escalada do arbítrio.
Como devemos nos comportar?
Não é próprio dos seres humanos decentes ficarmos discutindo com seres tão destituídos de humanidade, solidariedade, compaixão e, até, compostura. Pessoas capazes de vituperar de forma demagógica e virulenta o que um grande homem como o rabino Henry Sobel fez em decorrência de uma moléstia, só nos causam o mais profundo asco.
Mas, quem deixar o terreno livre para os obscurantistas será cúmplice de todos os retrocessos que vierem a ocorrer. Então, não podemos nos acovardar nem continuar cedendo terreno.
Tampando o nariz, devemos reagir. Marcar posição. Afirmar nossa crença na civilização e nosso repúdio à barbárie.
Pois eles, com suas mentiras e calúnias, são muito mais fracos do que nós, com nossos ideais e verdades. Podemos expulsá-los de volta para as trevas das quais nunca deveriam ter saído.
Lembrem-se: é fácil esmagar o ovo da serpente, mas muito difícil matar a víbora depois.
* jornalista, escritor e ex-preso político. Os outros artigos desta trilogia, “Há 43 Anos o País Entrava nas Trevas” e “O ovo da Serpente”, estão em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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12.4.07
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4 comentários:
Olá Celso...
Cheguei ao seu nome e ao seu blog através do professor Jorge Marum, que teceu longos elogios a você e sua história.
Li "filhos de goebbels" e acredito que a referência ao cinema alemão é válida, visto que nossa "propaganda" hoje não é nada além de repetição irrefletida e irresponsável.
Gostaria que você visitasse meu blog e lesse alguma das coisas que escrevo, coincidentemente, dias atrás, comparei Lula à Costa e Silva, o texto está disponível no blog.
Que tal se mantivéssemos contato, poderíamos pensar em produzir alguma coisa que fosse possível utilizar para trazer a tona o pessoal com quem estudo, não só à respeito do regime militar, mas sobre vários dos embustes que nos cercam?
Um abraço
http://blogdofernandooucamerata.blogspot.com
que volte o regime...
volta ccc para a nossa alegria!
Já dizia Lênin:
"Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz"
Celso:
Parabéns pelo brilhante trabalho que vem desenvolvendo na internet.
tenho lido os textos, são muito bons.
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