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Clint Eastwood no clássico "Três homens em conflito" |
Um
dos gêneros cinematográficos que mais falou da revolução para platéias
amplas foi o western italiano. Poucos, hoje, sabem disso.
Nascido em meados da década de 1960, o
spaghetti-western foi também muito caro para a minha geração noutro aspecto:
lavou a alma de todos que gostávamos dos bangue-bangues, mas não da caretice dos estadunidenses.
Teve surpreendente sucesso nas bilheterias:
O Dólar Furado
(1), p. ex., chegou a ficar em cartaz durante cerca de um ano num
cinema de São Paulo. Isto se deveu não só a ter ocupado um espaço vazio,
já que os norte-americanos haviam deixado de fazer westerns, como
também a haver trazido um novo enfoque e uma nova moldura para o gênero.
Tirando obras de exceção como
Matar ou Morrer (2),
Sem Lei e Sem Alma (3),
O Matador (4),
Estigma da Crueldade (5) e
Rastros do Ódio (6), os faroestes
made in USA de
até então tinham o insuportável defeito de tentarem nos impingir aquela
ladainha da luta eterna do Bem contra o Mal -- um tédio!
O
mocinho não fumava, não bebia, não praguejava e nem trepava. A
mocinha era
recatada donzela. O xerife, pachorrento mas digno. Os índios, selvagens
bestiais que tinham de ser tirados do caminho para não atrapalharem o
progresso. Os mexicanos, beberrões subumanos.
Mesmo no mato, conduzindo boiada, o mocinho tinha a decência de manter-se sempre limpo e escanhoado. Bah!
O
western italiano surgiu meio por acaso. A indústria cinematográfica
italiana conseguira nos anos anteriores faturar uma boa grana com filmes
épicos e mitológicos. Hércules, Maciste, Ursus, Golias, fundação de
Roma, guerra de Tróia, etc. O filão, entretanto, estava esgotando-se e a
Cinecittà saiu à cata de um novo produto.
Sergio
Leone, então com 34 anos, tinha começado a carreira no neo-realismo
italiano (como assistente de direção e diretor de segunda unidade), mas
não conseguira alçar-se à direção. Era difícil abrir um espaço entre
mestres como Vittorio De Sica, Lucchino Visconti, Pier Paolo Pasolini,
Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, etc.
Então, entre atuar eternamente à sombra dos medalhões do
cinema de arte ou mostrar seu trabalho no cinema dito comercial, escolheu a segunda opção. Depois de dirigir os épicos
Os Últimos Dias de Pompéia (7) e
O Colosso de Rodes (8), teve a sorte de estar no lugar certo, no momento exato, para dar o pontapé de partida num novo ciclo.
Adaptou para o Oeste a história de
Yojimbo (9),
um filme de Akira Kurosawa sobre samurai que açula a discórdia entre
dois senhores feudais para prestar-lhes serviço alternadamente, sem que
percebam seu jogo duplo. O que Leone fez em
Por Um Punhado de Dólares (10), basicamente, foi mudar a ambientação e colocar um pistoleiro caça-prêmios no lugar do samurai.
O
protagonista também teve aí seu grande golpe de sorte. Clint Eastwood
não emplacara em Hollywood como mocinho, ficando relegado a séries de TV
e a filminhos classe “B” e “C”.
Leone percebeu nele um bom anti-herói. Compôs seu personagem (o
Estranho Sem Nome)
com barba rala, chapéu sobre os olhos, charuto na boca, fala arrastada e
um poncho. Com isto, acabou alçando-o ao estrelato e fazendo jus à
homenagem que depois Eastwood lhe prestaria, ao dedicar-lhe sua
obra-prima
Os Imperdoáveis (11).
O
que diferenciou o western italiano foi exatamente ter sido feito por
cineastas bem diferentes dos tarefeiros hollywoodescos (os ditos
artesãos, que se limitavam ao feijão-com-arroz artístico que lhes garantisse o dito cujo gastronômico).
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James Coburn e Rod Steiger em "Quando explode a vingança" |
Damiano Damiani, Carlo Lizzani e Sergio Corbucci eram outros talentos com a cabeça feita pelo
cinema de arte,
assim como o superlativo roteirista Sergio Donatti (aliás, até os
grandes diretores Bernardo Bertolucci e Dario Argento chegaram a
escrever histórias para westerns).
Então, não se
limitaram a realizar filmes com muita ação e nenhuma vida inteligente;
fizeram questão de deixar sua marca, passando mensagens cifradas, dando
toques, propondo outra abordagem para o gênero.
Em vez de um palco em que o Bem vence sempre o Mal, o bangue-bangue italiano mostrou o
velho Oeste como uma terra de ninguém, primitiva e selvagem, em que todos perseguem seus objetivos como podem.
Evidentemente,
há muito mais verossimilhança nesse enfoque do que no norte-americano. O
Oeste do século 19 seria algo como o garimpo de Serra Pelada no seu
apogeu. Um grotão selvagem onde prevalecia a lei do mais forte.
No lugar do herói, o western italiano consagrou o anti-herói: barbudo,
desgrenhado, com roupas sinistras, muitas vezes um caça-prêmios, quase
sempre um mau-caráter. No fundo, só se diferenciando dos bandidos por
agir sozinho enquanto os outros atuam em bando.
Lembrem-se:
era a década de 1960, quando havia um imenso desencanto com a ordem
estabelecida. Rebeldes eram tudo que queríamos ver. Não suportávamos
mais os heroizinhos c.d.f. de Hollywood, daí termos sido imediatamente
cativados pela alternativa européia, os Djangos, Sabatas e Sartanas (os
únicos
mocinhos nos moldes estadunidenses eram os protagonizados por Giuliano Gemma).
E,
enquanto os poderosos viraram vilãos, os índios e os peões mexicanos
passaram a ser mostrados como vítimas e heróis. Afinal, vários cineastas
italianos tinham inclinações revolucionárias, mas não havia nada
revolucionário para destacar nos EUA do século 19.
A solução foi transferir a ação para o efervescente México, como em
Quando Explode a Vingança (12),
Gringo (13),
Reze a Deus e Cave Sua Sepultura (14),
Réquiem Para Matar (15),
Os Violentos Vão Para o Inferno (16),
Companheiros (17),
O Dia da Desforra (18) e
Tepepa (19).
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Franco Nero como Keoma: de arrepiar! |
Toques esquerdistas, sim, eles podiam inserir em filmes cuja ação transcorria nos EUA:
- o próprio Django (20), no qual os vilãos são flagrantemente inspirados na Ku-Klux-Khan;
- Quando os Brutos Se Defrontam (21), reflexão sobre a gênese de líderes oportunistas;
- O Especialista (22), que coloca jovens rebeldes (referência às barricadas francesas de 1968) em ação no Oeste;
- O Vingador Silencioso (23),
denunciando o massacre de Johnson Country, quando centenas de
imigrantes eslavos foram dizimados pelos barões de gado do Wyoming – o
mesmo episódio histórico que seria depois retratado na superprodução O Portal do Paraíso (24);
- e o extraordinário Três Homens em Conflito (25), com algumas das mais marcantes seqüências antibelicistas do cinema em todos os tempos.
Uma última característica
notável foi libertar a trilha musical da tirania do country. Não mais o
que realmente existia nos EUA do século retrasado, como violões,
violinos, banjos, gaitas e sanfonas, mas também flauta, saxofone, órgão,
sintetizadores, castanholas -- tudo que se harmonizasse com o clima
daquela seqüência, pouco importando se tais instrumentos eram
encontrados ou não no velho Oeste.
Para completar, o
uso criativo de sinos, caixas de música, assobios e outros achados.
Morricone é, com certeza, o melhor criador de trilhas musicais de todos
os tempos.
FILMES INESQUECÍVEIS
Quando Explode a Vingança está entre os melhores filmes do Leone. É, na verdade, o segundo da trilogia
era uma vez, que inclui
Era Uma Vez No Oeste (26) e
Era Uma Vez Na América (27). Deveria ter-se chamado
Era Uma Vez a Revolução, mas acabou com um título que em italiano significa "abaixe a cabeça" e, nos EUA, "agache-se, otário!".
Na
visão do Leone, os verdadeiros heróis da revolução são os anônimos
homens do povo, enquanto os líderes acabam sempre traindo a causa --
seja no México (o médico interpretado por Romolo Valli) ou na Irlanda (o
dirigente do IRA que é amigo do John/James Coburn).
Foi
feito em 1971, quando os movimentos revolucionários pipocavam na
Itália, radicalizando-se progressivamente. Parece expressar o desencanto
do Leone com o Partido Comunista Italiano e ser um alerta de que as
Brigadas Vermelhas e congêneres teriam destino trágico.
Um
lance interessante é mostrar de forma totalmente desumanizada o
comandante das forças contra-revolucionárias: ele é visto escovando
repulsivamente os dentes, chupando um ovo, olhando pelo binóculo. Leone
não lhe concede sequer a dignidade da fala. De sua forma sutil, expressa
o desprezo absoluto que tinha pela direita troglodita.
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Thomas Milian e Lee Van Cleef no cult "O Dia da Desforra" |
Outra
grande sacada do Leone é ressaltar que a História nunca fixa a versão
correta dos fatos. A frase que o Irlandês sempre repete, sobre "os
grandes e gloriosos heróis da revolução", é um primor de sarcasmo.
* * *
Três Homens em Conflito foi,
claramente, o divisor de águas na carreira de Sergio Leone, o momento
em que ele mostrou ser muito mais do que um (brilhante) artesão.
Até então, em
Por um Punhado de Dólares ele
introduzira a figura do anti-herói no centro da trama; a amoralidade
básica dos tipos e das situações; a apresentação criativa dos letreiros
iniciais, valorizada com vários recursos, inclusive o uso de animação; a
nova concepção musical que Morricone trouxe para os westerns; e um dos
personagens mais emblemáticos do bangue-bangue à italiana, o pistoleiro
oportunista interpretado por Clint Eastwood.
Depois, em
Por Uns Dólares a Mais (28),
todas essas características foram desenvolvidas e aprimoradas. É um
filme muito melhor do que o anterior, mas, paradoxalmente, não
apresentou novidades significativas.
A única que vale a
pena citar é a colocação de dois personagens em destaque, em vez de um.
A partir daí, os filmes de Leone trariam sempre essa dupla de
anti-heróis ocupando o espaço dos antigos
mocinhos.
Depois dos personagens interpretados por Clint Eastwood/Lee Van Cleef em
Por Uns Dólares a Mais, tivemos Clint Eastwood/Eli Walash (
Três Homens em Conflito), Charles Bronson/Jason Robards (
Era Uma Vez no Oeste), Rod Steiger/James Coburn (
Quando Explode a Vingança) e Robert De Niro/James Woods (
Era Uma Vez na América).
Aí, finalmente, estava pronto para seu
tour-de-force:
Três Homens em Conflito foi
a obra em que Leone definiu e afirmou seu estilo, embutindo no cinema
de ação discussões mais profundas, sem prejuízo do entretenimento
propriamente dito. É um tipo de obra em camadas. De acordo com sua
sensibilidade, o espectador pode se divertir apenas com o básico ou
captar os muitos toques subjacentes.
E é grandiosa a
crítica que Leone fez ao belicismo, com algumas das seqüências mais
comoventes que o cinema já apresentou: o oficial bêbado sem coragem para
destruir a ponte, a orquestra do campo de prisioneiros tocando para
abafar os ruídos da tortura, o jovem soldado agonizante a quem o
Estranho Sem Nome dá seu charuto.
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Gian-Maria Volonté (centro) como bandido mexicano em "Gringo" |
Nos
três filmes seguintes ele dissecaria a lenda (vinganças) e a realidade
(construção da ferrovia) no Velho Oeste; as verdades e mentiras de uma
revolução; e a transição da época glamourosa do aventureirismo para a
hegemonia insípida das corporações.
Foi o cineasta que
conseguiu ir mais longe na proposta de mesclar entretenimento e
reflexão, saindo-se tão bem nas bilheterias quanto em termos de
qualidade cinematográfica.
* * *
Keoma (29)
foi o canto do cisne do western italiano. E encerrou o ciclo com
extrema dignidade. Trata-se daquela única obra-prima que, às vezes, um
diretor convencional faz na vida, como que para provar que tinha talento
para voos maiores.
O subtexto é riquíssimo:
- a briga entre os quatro irmãos remete, evidentemente, a Freud e suas teorias sobre a horda primitiva;
- o nascimento da criança num estábulo é um paralelo bíblico, assim como a crucificação do herói;
- a presença da velha índia nos momentos culminantes do filme vem da mitologia grega, ela é um tipo de deusa do destino;
- o herói errante em busca de um desígnio que justifique sua vida também tem inspiração mitológica;
- a peste se constituiu num elemento
bíblico e mitológico ao mesmo tempo, além de estabelecer uma ponte com o
escritor Albert Camus (A Peste, O Estrangeiro), cujas obras são uma óbvia referência no delineamento do personagem principal;
- finalmente, Castellari reverencia seus mitos cinematográficos -- Keoma é filho de Shane, o herói protagonizado por Alan Ladd em Os Brutos Também Amam (30), enquanto a presença de Woody Strode no elenco constitui uma homenagem a John Ford, de quem era um dos atores prediletos.
E não foi só Castellari quem
se superou, atingindo uma qualidade de que ninguém o suporia capaz. A
dupla de compositores Guido e Maurizio de Angelis fez uma trilha musical
extraordinária, capaz de rivalizar com as melhores de Morricone. O
contraste do baixo com a soprano chega a nos arrepiar, as letras se
casam maravilhosamente com o filme.
Em suma: trata-se de um clássico ainda não reconhecido.
Filmes citados:
- Un Dollaro Bucato, 1965, d. Giorgio Ferroni
- High Noon, 1952, d. Fred Zinneman
- Gunfight at O.K. Corral, 1957, d. John Sturges
- The Gunfighter, 1950, d. Henry King
- The Bravados, 1958, d. Henry King
- The Searchers, 1956, d. John Ford
- Gli Ultimi Giorni di Pompei, 1959, creditado, entretanto, a Mario Bonnard
- Il Colosso di Rodi, 1961, d. Sergio Leone
- Yojimbo, 1961, d. Akira Kurosawa
- Per un Pugno di Dollari, 1964
- Unforgiven, 1992, d. Clint Eastwood
- Giù la Testa, 1971, d. Sergio Leone
- El Chuncho, Quién Sabe?, 1967, d. Damiano Damiani
- Prega Dio... e scavati la fossa, 1968, d. Edoardo Mulagia
- Requiescant, 1967, d. Carlo Lizzani
- Il Mercenario, 1968, d. Sergio Corbucci
- Vamos a Matar, Compañeros, 1970, d. Sergio Corbucci
- La Resa dei Conti, 1966, d. Sergio Sollima
- Tepepa, 1969, d. Giulio Petroni
- Django, 1966, d. Sergio Corbucci
- Faccia a Faccia, 1967, d. Sergio Sollima
- Gli Specialisti, 1969, d. Sergio Corbucci
- Il Grande Silenzio, 1968, d. Sergio Corbucci
- Heaven’s Gate, 1980, d. Michael Cimino
- Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, 1966, d. Sergio Leone
- C’Era Uma Volta il West, 1968, d. Sergio Leone
- Once Upon a Time in América, 1984, d. Sergio Leone
- Per Qualche Dollaro in Più, 1965, d. Sergio Leone
- Keoma, 1976, d. Enzo G. Castellari
- Shane, 1953, d. George Stevens